Lugares templários na Normandia

Quando os cavaleiros-monges da Ordem do Templo foram detidos em França na noite de 13 de Outubro de 1307 por ordem do rei Filipe IV, o Belo, a Normandia usufruía um período de paz nas períódicas contendas militares anglo-francesas e com isso era notavelmente próspera. Nessa data, Geoffroy de Charney era o preceptor da Ordem Templária na Normandia rica e próspera. A riqueza da província normanda por certo seria uma das melhores bases da Milícia, além de ser um sector estratégico importante e via de acesso às possessões templárias inglesas do outro lado do Canal da Mancha, pelos portos marítimos de Berfleur, Harfleur e Dieppe.

Certamente o rei francês Filipe IV sabia disso e, ambicioso das riquezas dos templários, depois de Paris foi na Normandia onde mais mostrou a sua crueldade desmedida, não olhando a meios para alcançar os fins, prendendo, torturando e matando quantos templários houvessem. Depois da abolição da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão pelo papa Clemente V, no concílio de Viena que decorreu entre 1311 e 1312, os bens imóveis dos templários (castelos, igrejas, casas, terrenos, etc.) foram entregues ao cuidados da Ordem de São João do Hospital, vulgo Hospitalários, que logo os ocuparam. É por isso que ainda hoje se vê, em muitos imóveis que foram templários, a cruz aspada dos hospitalários sobreposta ou junta à do Templo.

Os documentos disponíveis fazem referência aos múltiplos bens prediais e imobiliários que pertenciam a Ordem do Templo: florestas, herdades, moinhos, capelas, hospitais, etc. Quanto às numerosas “casas dos templários”, um certo número de textos históricos assimila-as às comendas ou comendadorias (que correspondiam às abadias de outras ordens monásticas), pelo que a designação simples de casa significa anexa de uma comendadorias (que poderá ter sido casa de recolhimento religioso ou, então, casa comercial destinada a transações).

Além do castelo e igreja de Gisors, há ainda outros vestígios monumentais e históricos da presença templária na Normandia medieval. Caudebec em Caux apresenta o seu famoso Museu Biochet-Bréchot, sim, mas ocupando o edifício civil mais antigo da Normandia que ainda hoje é chamado Casa dos Templários. Esta soberba construção do século XIII foi construída para albergar os monges de Saint-Wandrille (a cinco quilómetros) que gozavam da protecção directa dos cavaleiros templários. O edifício apresenta espaços surpreendentes da arte de construção medieval e possui muito vestígios arqueológicos normandos que preenchem o seu museu.

Casa dos Templários em Caux

Entre 1123 e 1125, os cavaleiros da Ordem do Templo fundaram a comendadoria de Valcanville, a pedido do rei anglo-normando Henry I Beauclerc, segundo uma carta datada de 1213 (Archives Nationales, MM 1092, N.º 37) confirmada pelo documento de doação à comendadoria (Archives Nationales, S 5466) estabelecida por Guillaume, bispo de Coutances, indicando que o senhor Hugues de Agre concedia à Ordem do Templo a igreja de Valcanville, com o padroado e todos os seus direitos, passando a chamar-se Notre-Dame du Temple (hoje é consagrada a Saint-Firmin). Desta poderosa comenda ocupando um vasto domínio, ainda subsistem algumas ruínas: várias chaminés e muros espessos flanqueados por seteiras. Estas ruínas estão num espaço espaço privado cujos proprietários, meritosamente, incitam o público a visitá-las.

Da antiga preceptoria de Breteville le Rabet (outrora chamada la Rabelle), fundada em 1154 e que foi cabeça dos bailios de Caen e de Alençon, nada resta, excepto a igreja paroquial muitíssimo alterada, ainda assim com um e outro pormenor recuando aos séculos XII e XIII, como o interessante relógio de sol de Saint-Alban, além da torre medieval que possivelmente também recuará à época dos templários.

Em Baugy, cerca de 16 quilómetros a sudoeste de Bayeux e a 20 a noroeste de Saint-Lô, antigas possessões templárias, houve uma comendadoria templária fundada em 1148 fundada por Roger III Bacon, e ainda subsiste uma parte da capela primitiva, consagrada a Notre-Dame du Temple, assim como as fundações da casa senhorial. Originalmente a capela era composta por uma nave com cinco arcos. O edífício tem um ar austero que lhe retira a elegância e simplicidade de outrora. Flanqueado por contrafortes massivos, a oeste abre-se uma porta do século XIII em cujo tímpano está esculpido o Cordeiro de Deus carregando a cruz templária. Esta antiga comendadoria está hoje numa propriedade privada, mas os proprietários deixam visitá-la mediante marcação prévia.

Em Courval ou Corval, a 4 quilómetros ao Este de Vassy, está o lugar chamado de Hospital (por certo remetendo para a Ordem dos Hospitalários), onde se vêem os edifícios da antiga comendadoria templária, fundada em Junho de 1226 por Guillaume d´Aquila, preceptor das casas do Templo na Normandia, após um acordo estabelecido com as autoridades senhoriais e eclesiásticas locais. O lugar é hoje propriedade privada mas pode-se visitá-lo. A primitiva casa senhorial ou do comendador que hoje se vê, é já uma reconstrução do século XV durante o período hospitalário. A capela, classificada monumento histórico em 2 de Setembro de 1994, é uma construção da metade do século XII e ainda possui alguns fragmentos de esculturas e de frescos, tudo carecendo de restauros urgentes.

Comenda Templária de Courval

Há registo histórico da implantação de uma comendadoria templária em Louvagny, no século XIII, mas por ser pobre não podia sustentar senão um único cavaleiro, Guy Pasnaye. A sua igreja de Saint-Vigor, do século XIV, ainda conserva alguns elementos iconográficos que poderão ser atribuídos aos templários, desde uma cruz resplandecente a um anjo peregrino.

Em Caen pode visitar-se as ruínas da igreja de Saint-Julien, recuando ao século VII e que foi reconstruída muitas vezes. No século XII foi possessão dos templários cuja primeira notícia data de 1150. Nessa altura fazia parte da comendadoria templária de Voismer, instalada em Fontaine-le-Pin. Quando a Ordem do Templo foi abolida nos inícios do século XIV, esta igreja paroquial de Saint-Julien foi doada à Ordem do Hospital. Do facto desse padroado de Saint-Julien Hospitalário, o título de cura comendador (ou “guia de almas”, em latim, cura animarum) era dado ao prior de Saint-Julien. Foi igualmente nesta igreja que se celebraram as cerimónias de entronização à Ordem de São João do Hospital (depois chamada de Malta) dos novos cavaleiros originários de Caen. Memória ainda da tradição cavaleiresca heterodoxa da Ordem Templária, vê-se na igreja de Saint-Pierre de Caen, entre outros elementos simbólicos esculpidos, o cavaleiro arturiano Lancelot du Lac passando por cima da espada mágica excalibur ou caliburna, que lhe serve de ponte entre a antiga tradição celta (representada por uma espécie de dragão marinho) e o cristianismo (representado pelo leão no qual a ponta da lâmina se finca).

Lancelot du Lac – Saint-Pierre de Caen

Além da comenda de Saint-Vicent-des-Bois, fundador em 1231 pelo comendador dos templários de Bourgoult, instalada desde 1219 em Harquency, perto de Andelys, das quais hoje não sobrevivem vestígios e se os há estão muito dispersos, em Val-de-la-Haye sobrevivem os restos da antiga comenda templária de Saint-Vaubourg que depois pertenceu aos hospitalários, e que em 27 de Dezembro de 1972 tornou-se monumento histórico de interesse público. Tanto o castelo como a igreja de São João Baptista são edifícios coevos dos templários, mas estão hoje alterados por terem sofrido remodelações sobre alterações.

Por fim, sendo impossível assinalar todas, a maioria nem sequer aparecendo nos documentos históricos, tem-se a comendadoria templária de Villedieu-la-Montagne. Dela resta a antiga capela que é hoje a igreja paroquial de  Villedieu, com a sua torre hexagonal e alguns elementos arquitectónicos do edifício original bem conservados dentro deste templo.

Mistérios da catedral de Gisors

A construção da igreja colegial de Gisors, desde o início do século XX considerada catedral em diversas brochuras turísticas, apesar da sede episcopal ter sido sempre em Évreux, recua à época dos templários e das confrarias de monges-construtores protegidas por eles. Constituindo um monumento notável cuja arquitectura é uma síntese de diferentes estilos, indo do gótico flamejante ao estilo renascença, foi consagrado pelo Papa Calixto II em 1119. Em 1123 um incêndio devorou a sua nave, tendo os trabalhos de restauro começado cerca de 1160. Graças ao financiamento da rainha Branca de Castela, o seu coro gótico foi consagrado em 1249.

Com a ajuda dos financiamentos das confrarias de caridade e das corporações de ofícios, a igreja conheceu numerosas transformações desde o século XII até ao final do século XV. Confiada aos Grappin, uma família de arquitectos do Vexin, os trabalhos prosseguiram no século XVI, com a reconstrução da nave e das capelas laterais em estilo gótico flamejante e a fachada ornada com motivos renascentistas.

Desde a metade do século XX que esta pressuposta catedral de Gisors é associada à tradição esotérica dos templários, que inclusive teriam escondido aqui, num pressuposto subterrâneo, o seu tesouro fabuloso da ambição do rei francês Filipe IV, que os perseguiu até à extinção. Apesar das invenções urbanas pseudo-históricas, há um fundo de verdade em tudo isso, a começar pela presença templária desde a primeira hora nesta casa de religião. Também é verdade existirem registos históricos dando notícia de uma espécie de hipogeo ou sala subterrânea sob esta igreja e onde havia uma imagem de Santa Catarina do Monte Sinai, sabendo-se igualmente da existência dos subterrâneos de Gisors, uma rede de túneis alinhando no eixo norte-sul (cardus) permitindo supor haver ligação subterrânea entre o castelo de Gisors e esta igreja consagrada a Saint-Gervais e Saint-Protais.

Igualmente verdade é o facto de terem sido os próprios templários a elevar a patronos de Gisors os santos gémeos Gervais e Protais, filhos de São Vital e da bem-aventurada Valéria, que viveram junto de dois outros santos gémeos : Celso e Nazário. Foram martirizados no ano 57 por ordem do imperador Nero (Anzio, 15.12 de 37 d. C. – Roma, 9.6. de 68 d. C.), por recusarem abjurar à fé cristã e escusarem a idolatria romana. A presença dos gémeos remete para o duplo sentido da religião cristã conforme o entendimento templário: a crença ortodoxa, exotérica ou pública (a letra das escrituras), e a fé heterodoxa, esotérica ou privada (o espírito das escrituras).

É sob a invocação de Saint-Gervais e Saint-Protais que Jean de Gisors (1133-1220), vassalo do rei de Inglaterra, estabeleceu as pazes com o rei de França em 1188 com a mediação diplomática directa dos templários, chamando ao processo de “pazes do olmo” por ter sido firmado junto a um olmo que ainda hoje se vê junto ao castelo. Antes, quando acordos idênticos haviam sido quebrados entre os soberanos dos dois países à sombra da mesma árvore, às conversações fracassadas chamaram-se “corte do olmo”.

Além do sentido político diplomático, “corte do olmo” refere-se igualmente às confrarias de ofícios, principalmente as dos carpinteiros, sendo a madeira de olmo a mais utilizada na construção do castelo e igreja de Gisors. Quanto ao “corte”, indica a separação dos respectivos poderes e competências das confrarias de construtores e da Ordem do Templo, que no entanto lhes dava protecção e apoio. Talhada na madeira e esculpida da pedra, desde o século XII ao século XVI, apercebe-se um pouco por toda a parte nesta igreja os sinais heterodoxos da doutrina esotérica dos templários que as confrarias operativas de arquitectos, pedreiros e canteiros deixaram para a posteridade.

Dentre as muitas particularidades singulares presentes neste templo, tem-se logo à entrada, no frontíspicio, a inquietante frase latina: Terribilis est locus iste, «terrível é este lugar». Terrível tem aqui o sentido de temível ou temor ao Divino que aqui se manifesta, estando representado na ilustração a que a legenda se refere: o sonho de Jacob com os Anjos descendo e subindo por uma escada ligando o Céu à Terra (Génese, 28:12), o que remete para o sentido da Scalae Coeli, “Escada do Céu”, nome dado aos templos e mosteiros de reclusão espiritual ou, neste caso, de entendimento reservado à iluminação mental de alguns do que nele está exposto e só raros entenderão, “segundo o espírito que vivifica”. Aqui, a escada celeste é substituída pela Árvore de Jessé, pai do rei David, da qual o profeta Isaías (11:1-3) augurou que adviria o Cristo. Trata-se, portanto, de uma profecia relativa aos tempos futuros da Cristandade, por certo a ver com a Parúsia ou Segundo Advento do Messias.

Os Anjos repetem-se na abóbada e nas colunas da igreja, são uma constante. Significam que este templo foi erguido sobrenaturalmente, ou seja, mediante um conhecimento esotérico ou velado interdito ao comum dos mortais, de acordo com a gemetria e arquitectura sagradas de maneira que os símbolos viessem a expressar significados de elevada e oculta transcendência. Esses Anjos parecem-se Querubins, em hebraico Kerub, palavra esta significando Tesouro, por certo o Tesouro do Céu revelado como Sabedoria Divina na Terra (possivelmente será este o significado do lendário «tesouro dos templários»), a mesma Sophia grega aqui representada em Santa Maria, na capela da Virgem, com o Querubim aos pés e à sua volta os objectos simbólicos (fonte, poço, torre, estrela, etc.) com que é invocada na sua Ladainha sob variados atributos (Rosa Mística, Estrela do Mar, Fonte do Horto ou Paraíso, Torre ou Tronco de David, etc.).

A coluna dos Curtidores (Tanneurs) está decorada por inúmeras cenas dessa corporação, algumas de cariz iniciático por se tratar de iniciação de ofício, vendo-se numa um mestre curtidor com um bastão e junto a ele a palavra MARIA (por esta ser a padroeira da Arte Real, esta assinalada numa coluna por dois arquitectos abrindo um livro e ao lado um rei), logo seguida de uma outra : I S Z G, possivelmente as iniciais do nome do mestre canteiro renascentista que lavrou esta coluna.

A coluna dos Delfins (Dauphins), financiada pela Confraria Real de Saint-Louis, é uma representação do Poder Real representado por delfins ou golfinhos e flores-de-lis, igualmente aludindo à Realeza Divina de França iniciada com Clovis iluminado directamente pelo Espírito Santo que se lhe revelou, facto apologético reforçado pelo testemunho dos Apóstolos de Cristo que, segundo a Lenda Áurea, teriam buscado exclusivamente a França logo após a Morte e Ressurreição do Senhor. Posto assim, revela o Sang Royal apostólico que daria vazão ao eucarístico Saint Greal da Celebração, que na Idade Média era conhecido como Saint Vaisel, que os trovadores e jograis divulgaram como Santo Graal, a Taça Sagrada dos Mistérios Divinos. Esta coluna dos Delfins é torsa e termina numa apoteose de arcos de ogivas ilustradas por Anjos.

Na capela de Saint-Clair, datada de 1526, tem-se o Jacente, tratando-se do alto-relevo de um cadáver semi-decomposto num túmulo, apresentando à esquerda a seguinte frase latina: Quisquis ades tu morte cades sta, respice, plora, sum quodd eris, modicum cineris pro me, precor, ora, «Quem quer que seja tu, serás abatido pela Morte. Até lá, toma cuidado, arrepende-te. Eu sou o que tu serás, um monte de cinzas. Implora pedindo por mim». Tem-se aqui a figuração do rito de passagem, onde a Morte se manifesta como revelação e introdução ao Mundo Superior do Paraíso ou ao Mundo Inferior do Inferno, conforme a vida corporal que se levou. Todas as iniciações trqadicionais atravessam uma fase de morte, antes de abrir o acesso a uma vida nova. Libertadora das penas e preocupações terrenas, a Morte não é um fim em si, pois abre o acesso ao Reino do Espírito, à Vida verdadeira, facto que levou os antigos latinos a preferirem: mors janua vitae, «a morte, porta da vida». Esta frase dirige-se sobretudo ao homem que, sofrendo a crise da iniciação, morre como profano ou imperfeito e renasce como perfeito integrado numa vida superior mental, emocional e física. É isto que significa Saint-Clair, ou seja, Santa Luz, a Luz da Iniciação Crística, cujos Mistérios Sagrados acabam sendo retratados nesta catedral de Gisors.

Os grafitos misteriosos da Torre do Prisioneiro

Se há castelo encantado repleto de mistérios, sem dúvida que esse é o de Gisors. Situado no Vexin normando, é constituído por uma torre circular que foi acrescentada à fortaleza já existente, obra dos duques da Normandia dos séculos XI e XII, destinada a defender o domínio anglo-normando contra as pretensões do rei de França.

Quando em 1158 teve lugar o encontro entre o soberano inglês Henrique II Plantageneta e o rei francês Luís VII no castelo de Gisors, a fim de selarem a reconciliação entre os dois reinos, tendo o soberano capeto prometido ao filho do rei inglês a mão da sua filha Margarida de França, que então só tinha seis meses de idade, foi dado como dote o castelo de Gisors. Enquanto se esperava a celebração do casamento e para que nenhuma das partes agisse a seu próprio favor, o castelo foi entregue aos cuidados da Ordem do Templo, e três cavaleiros templários foram encarregados de cuidar dele: Robert de Piron, Tostes de Saint-Omer e Richard de Hastings. Cerca de 1160 Henrique II ordenou a celebração das núpcias, e o castelo de Gisors manteve-se sob a tutela inglesa, contudo, os templários mantiveram aí a sua posição diplomática de mediadores entre as partes.

Em 1188 dá-se a Terceira Cruzada à Terra Santa e no regresso da mesma o sucessor de Henrique II, Ricardo Coração de Leão, é feito prisioneiro em Dürnstein, na Áustria, por desentendimentos com o imperador germânico Henrique VI. O seu cativeiro durou de Dezembro de 1192 a 4 de Fevereiro de 1194. Nesse interregno, Filipe Augusto, rei de França, aproveitou a oportunidade para apoderar-se do castelo de Gisors, em 1193. Neste ano, o soberano francês mandou efectuar muitas remodelações e acréscimos na fortaleza, construindo-se a que veio a ser chamada Torre do Prisioneiro, inspirada na torre barbacã, orientada para a cidade, do castelo do Louvre, em Paris.

Quando Ricardo Coração de Leão foi libertado, tomou armas para recuperar o seu feudo normando, mas em 1195 as duas partes acabaram por assinar os tratados de paz de Vaudreuil e de Issoudun, completados no ano seguinte pelo tratado de Gaillon, que colocou o Vexin – logo Gisors – sob a autoridade da coroa de França.

Tendo perdido a sua posição de fortaleza estratégica, o castelo de Gisors foi então transformado em prisão de Estado, onde eram temporariamente encarcerados prisioneiros políticos antes de serem julgados. Quando em 13 de Outubro de 1307 o rei de França, Filipe IV, o Belo, mandou prender os templários sob os pretextos mais inverossímeis, esta fortaleza tornou-se lugar de detenção para muitos deles, a começar pelos mais importantes da Ordem do Templo: Jacques de Molay, o Grão-Mestre, Hugues de Pairaud, Geoffroy de Gonneville, preceptor do Poitou e da Aquitânia, e Geoffroy de Charney, preceptor da Normandia. Foram encarcerados numa cela na cave da torre do castelo. Em memória de Jacques de Molay, aí detido, é afirmado que desse episódio nasceu o apelido Torre do Prisioneiro.

Torre do Prisioneiro – castelo de Gisors

Há também quem diga que esse apelido da torre não se deve ao arresto de Jacques de Molay e dos seus companheiros, mas a um outro episódio mais recente: o do prisioneiro Nicolas Poulain, cirurgião na ilha de França que em 1587 denunciou uma conspiração da facção dita des Seize (dos 16) em Paris contra o rei Henrique III. Para se vingar, alguns membros da família Guise, envolvidos na intentona, fizeram com que Nicolas Poulain fosse detido, encarcerado e esquecido na célebre Torre do Prisioneiro de Gisors. Para passar o tempo, o pobre infeliz terá feito uma série enorme de grafitos, com motivos religiosos, nas paredes da prisão, dizendo-se que foi ele o autor efectivo dessas misteriosas inscrições, apesar de não estar decisivamente provado esse facto.

Esse conjunto de baixos-relevos ocupa o andar inferior da torre. A luz penetra tibiamente em certos momentos do dia por uma seteira a quatro metros de altura, o que deixa pressupor a realização desse trabalho só nos momentos da passagem rápida da luz, antes de tudo voltar a mergulhar nas trevas profundas. A pedra, fácil de trabalhar, era proveniente das pedreiras de Magny.

Entre os grafitos aparecem brasões absolutamente alheios à pessoa de Nicolas Poulain, mas não às dos templários aí detidos em Agosto de 1308, todos eles de nobreza reconhecida e fortemente brasonada. O facto é reforçado pela figura dum cavaleiro numa montada ricamente aparelhada, prova cabal da sua origem nobre. Tudo é atestado pela presença aqui e além, toscamente desenhadas mas facilmente identificáveis, das cruzes páteas da Ordem do Templo.

De forte sabor oriental, greco-bizantino, além de cenas relacionadas à vida de Jesus Cristo e Santa Maria, sua Mãe, aparecendo João Baptista no acto de baptizar o Senhor, Maria com o Menino ao colo revelando-se aos Apóstolos pósteros, neste caso, os templários, devotadíssimos à figura maternal da Senhora e que foram os primeiros a divulgar o seu culto no Ocidente, mormente através da Festa das Candeias por eles instituída, destaca-se em todo o conjunto as cenas da Paixão de Cristo, esta podendo ser transposta para a situação dramática por que estavam passando os templários.

O estilo greco-bizantino dos grafitos poderá muito bem recambiar para a influência oriental que caracterizou a Ordem Templária cuja maior parte da sua vida e actividade teve-as no Médio Oriente, onde manteve relações estreitas com diversos movimentos sociais e culturais daí.

As cenas da Paixão poderão ter um duplo sentido: além do imediato referente à Tragédia do Gólgota, igualmente recambiarão para o culto do Sangue Real que nessa ocasião foi recolhido por José de Arimateia numa Taça Sagrada, a mesma que os bizantinos chamavam Kratter e que depois, na linguagem provençal, foi transformada em Graal, este o Santo Vaso da Última Ceia e da Paixão de Cristo trazido para o Ocidente pelo mesmo Arimateia mas que depois, segundo a Lenda Dourada, voltou ao Oriente, a Jerusalém, em cujos subterrâneos das ruínas do Templo de Salomão os templários o terão encontrado e trazido de vez para o Ocidente europeu. Lenda ou não, o facto provado é que os templários tinham um especial apreço pela celebração da Paixão e Ressurreição pascal, e a Taça Eucarística (vista nestes grafitos de Gisors) era o principal dos seus objectos litúrgicos.

Uma outra dicotomia que transfere para o contexto heterodoxo da Tradição Iniciática, é a invocação angustiante, toda piedosa, que o prisioneiro escreveu em latim na parede: O Mater Dei memento mei, «Ó Mãe de Deus, lembra-te de mim». Nos lados da frase, as letras N P, que vários autores identificam como as iniciais de Nicolas Poulain. Contudo, por a frase ter duplo sentido, pois anagramaticamente lê-se: Amo Demeter enim timeo, «Amo Demeter, porque a temo», essas iniciais poderão ser lidas como Pater Noster, «Pai Nosso», sendo o início da jaculatória, primeiro evocando o Pai e depois dirigindo-se à Mãe. A Demeter grega, é a mesma Ísis egípcia ou a igual Cibele romana, depois gaulesa. Para todos os efeitos, trata-se da Deusa Mãe Primordial, cujas primitivas formas de reconhecimento cultual vieram a ser incorporadas e reconhecidas na Cristandade na pessoa única de Maria, com todos os predicatos de Misericórdia e Salvação os quais, afinal, eram motivo da invocação muda dos infelizes prisioneiros da torre do castelo Gisors, posto nenhum outro recurso de salvação terem senão o do Céu retratado na Mãe Divina.

Enigmas da abadia de Mortemer

Situada entre Lyons-la-Forêt e Lisors, no Eure, a abadia de Mortemer foi a primeira casa religiosa da Ordem de Cister na Normandia. Ajudou a fundá-la o rei de Inglaterra, Henry Beauclerc, em 1134. A sua história é descrita numa crónica num cartulário do início do século XIII, que relata a vida dos abades até 1205 e descreve as circunstâncias da fundação da abadia e da sua construção, como igualmente a proximidade dos monges cistercienses daqui aos cavaleiros da Ordem do Templo que lhes davam protecção.

Mas foi somente em 1209, após a conquista da Normandia (nome significando “terra do Norte”) por Filipe Augusto, rei de França, que o santuário principal deste mosteiro foi consagrado à Mãe de Deus. Aqui residiam cerca de 50 monges que viviam em completa austeridade sobrevivendo dos produtos da agricultura das terras que possuíam em volta do mosteiro. Certamente que o monge mais famoso de Mortemer foi o escritor Filipe d´Alcripe (1531-1581), conhecido pela sua obra La Nouvelle Fabrique des excellents traits de vérité.

Quando sobreveio a Revolução Francesa de 1789, a abadia já mostrava sinais acentuados de declínio e ruína, pelo que nela só viviam quatro monges. Os revolucionários venderam o imóvel como bem nacional após perseguirem e assassinarem esses religiosos, acusando-os de conspiração junto do povo. Depois a ruína do imóvel acentuou-se ainda mais e ele foi vendido muitas vezes, até que em 1985 o proprietário actual fundou aí um museu consagrado à vida dos monges cistercienses, cujas receitas servem para a manutenção desse espaço histórico.

Com o desaparecimento dos últimos religiosos de Mortemer começaram as lendas sobre eles, as quais envolvem a abadia num halo de mistério e sobrenatural até hoje, havendo mesmo quem jure ter visto os fantasmas dos monges passearem por entre as ruínas mais de uma vez, e também se deparado várias vezes com a aparição etérea de uma dama toda vestida de branco.

Uma das lendas da abadia de Mortemer é a da garrache, a mulher loba. Conta que o rendeiro Roger Saboureau, em data desconhecida, andava caçando à noite na floresta de Lyons (que rodeava o domínio de Mortemer) quando subitamente deparou com dois olhos jovens fixando-o intensamente. Então viu aparecer uma enorme loba. Assustado, ele disparou e matou o animal. Quando amanheceu, descobriu horrorizado o cadáver ensanguentado da sua esposa… ele matara uma garrache, mulher enfeitiçada que nas noites de Lua Cheia percorria o campo como punição pelos seus pecados. Ela havia sido condenada a transformar-se em loba sete vezes em sete vilas em volta da abadia de Mortemer. Acaso a garrache ainda ande por lá, penando os seus pecados…

O significado dessa lenda será o seguinte: a extirpação dos pecados do povo simples pelo modelo de virtude e santidade que a vivência monástica impelia à imitação geral no seu largo domínio. Por outro lado, a mulher loba poderá igualmente ser a própria loba itálica representada na Igreja Romana com quem a Ordem de Cister nem sempre teve as melhores relações no espiritual e no corporal, ante o luxo e espavento com que a cúria se envolvia. O cisterciense São Bernardo de Claraval, por exemplo, foi um crítico severo do pecado da vaidade e opulência que dominava a Igreja, tendo os templários, que deviam a sua Regra ao santo, tomado o partido tanto da opinão deste quanto a igual dos cistercienses, o que desagradou muito ao papado.

Fala-se também do gato Goblin (eul cat Goublin, em normando), que na realidade é um gnomo tomando a aparência desse animal e que guarda num subterrâneo o tesouro da abadia. Frequentemente vêem-se gatos errando por entre as ruínas, e não há como segui-los para descobrir o tesouro…

O tesouro cisterciense contém-se na fórmula latina ora et labora, «ora e trabalha», ou seja, o exercício espiritual e o labor intelectual e físico, pois que a Ordem em Mortemer deixou verdadeiros tesouros de vivência espiritual, de criação intelectual e prosperidade material através da agricultura e pastorícia, incrementando o desenvolvimento sócio-económico da região. Por outro lado, Goblin é corruptela do termo cabalístico Gob ou Gobi, o chamado rei dos gnomos ou seres elementais da terra vivendo em grutas ou próximos delas que se esquivam ao contacto com os seres humanos, e por essa faceta oculta ou subterrânea foi acrescentada a figura do gato, animal lunar ou nocturno cuja natureza felina tem o capricho de reservar-se à aceitação da presença humana só quando lhe apraz.

No museu da abadia encontra-se um lavabo do século XII que era onde os monges se lavavam. Conhecido como fonte dos celibatários, conta-se que as mulheres casadoiras procurando um marido se espargirem os cabelos com essa água, por certo casarão no ano seguinte. O facto é que muitas visitantes solteiras da abadia vieram a casar no ano seguinte… e por essa razão todos os anos, por ocasião da festa de Santa Catarina, inúmeras jovens vão banhar os seus cabelos na fonte miraculosa. É assim que na cultura local a jovem mulher casta e solteira converte-se em símbolo ascético e celibatário, desempenhando um papel importante tanto moral como ideal dispondo a castidade num estado sobrehumano distinguindo a virgindade como a mais alta virtude.

Santa Catarina é a Pura, tanto virginal como sobretudo espiritual, principalmente no entendimento e aplicação rigorosa da doutrina cristã por parte dos cistercienses, o que na Normandia chegou para os associar às ideias reformadoras da «heresia» cátara do Sul de França. O espargimento da água milagrosa sobre a cabeleira vem a ser sinal da regeneração mental e fortaleza corporal, cuja condição celibatária dos monges recebeu a alteração contrária, por via da lenda tão ao gosto popular, de proporcionar futuros bons casamentos.

Além dos fantasmas dos quatro monges assassinados durante a Revolução Francesa, as ruínas da abadia de Mortemer também estão encantadas pelas aparições da Dama Branca, ou seja, a imperatriz Matilde (7.2.1102 – 10.8. 1167), avó do rei Ricardo Coração de Leão. Herdeira do trono de Inglaterra e imperatriz do sacro império romano-germânico, o seu primo Étienne de Blois usurpou-lhe a coroa britânica em 1135, com a morte de Henry I, o que provocou na Inglaterra a guerra civil, por vezes chamada a anarquia, por ninguém se entender em coisa nenhuma. Vinda para terras normandas, Matilde tornou-se condessa d´Anjou e duquesa da Normandia. A sua educação em menina recebera-a na abadia cisterciense do Bec, e essa ligação à Ordem de Cister manteve-se durante toda a sua vida, tendo fundado numerosos mosteiros cistercienses em Inglaterra e na Normandia, sendo a mais importante benfeitora desta abadia de Mortemer e também a sua dedicada protectora, facto que as suas aparições sobrenaturais parecem confirmar. Quando morreu foi sepultada diante do altar maior da abadia do Bec, mas em 1846 os seus restos mortais foram trasladados para a catedral de Rouen.

Além dos factores imediatos relacionados com a presença histórica da imperatriz Matilde, a Dama Branca é parte intrínseca do imobiliário mítico templário, por certo herdando-o em parte dos cistercienses e por outras das narrativas tradicionais das antigas religiões, nomeadamente a judaica, a greco-romana e a celta. A Dama Branca representa aqui o aspecto temporal da Mãe Divina, a Imperactriz Universal como Rainha do Mundo ou Chakravartini para os orientais. Toda vestida de branco como as vestes cistercienses e templárias, representava a Pureza Viva do próprio Espírito Santo manifestado em forma feminina, condição que o judaísmo chama Shekinah, significando Deus manifestado no Mundo, em actividade junto da comunidade dos fiéis agindo sobre as almas dos mesmos tornando-as brancas, isto é, dotadas das mais elevadas virtudes. E é isto que significa Mortemer, a Mãe que dá a Morte, por certo a da condição vulgar a fim de se manifestar a consciência divina que dota e distingue todo o ser espiritual.

O templo das siglasde Chéronvilliers

A bonita comuna de Chéronvilliers, no departamento do Eure, na Alta Normandia, possui a sua igreja de São Pedro a qual revela-se um autêntico templo das siglas devido aos inúmeros sinais e símbolos da Maçonaria Operativa medieval traçados  e esculpidos nas suas paredes.

Tendo origem nos finais do século XII, esta igreja de São Pedro de Chéronvilliers recebeu restauros no século XVI, altura em que foi reconstruída a sua fachada oeste e o lado sul. Data desse último século o conjunto escultórico, bastante degradado, de três bustos e dois leões sobre a porta lateral sul.

Sendo o leão o rei dos animais e o signo astrológico do Sol, o astro-rei, e o Sol no reino mineral representado pelo ouro, o mais nobre dos metais, tanto bastou para ser associado como o animal representativo da realeza, e assim mesmo da Maçonaria Operativa que antigamente era chamada Arte Real. Este título fundamenta-se na lenda de terem sido iniciados maçons na arquitectura e geometria sagradas a construírem o Templo do Rei Salomão que mandava em todos os obreiros contratados para o efeito, nascendo assim o nome Arte Real, cuja prática operática desse processo iniciático exterior acompanhava a construção mística do Templo interior, o Templo da Alma, o que fazia do iniciado um «Rei», um «Mestre» de si próprio e da Natureza a quem dava expressão por essas ciências arquitectónica e geométrica.

Na Idade Média, os mestres pedreiros e os mestres canteiros ergueram primorosos palácios e igrejas a mandato dos reis e dos príncipes da Igreja, e novamente o sentido Arte Real justificou-se dessa maneira, aliando a ordem profissional à ordem mental e moral, o que marcou a Arquitectura como a Arte do próprio Verbo Solar manifestado na Matéria por via do apuramento e e desenvolvimento até à máxima pureza dos seus elementos químicos, função da Alquimia que por isto também era chamada Arte Real. Símbolos alquímicos decorando templos construídos com as medidas da arquitectura sagrada, não é raro verem-se tanto na Normandia como por toda a Europa, tendo origem numa das três fases em que se reparte a evolução maçónica, como seja: 1.ª) Maçonaria Primitiva (terminada com os Collegia Fabrorum, as escolas de artífices romanos iniciadas em 500 a. C. e findadas em 400 d. C.); Maçonaria Operativa (composta pelas várias corporações de ofícios: geómetras, arquitectos, pedreiros, canteiros, carpinteiros, etc.), que durou desde o início do século V até 1523; Maçonaria Especulativa (composta de intelectuais especuladores dos símbolos antigos de seus antecessores), fundada em 1717 vinda até à actualidade.

Os mestres pedreiros e canteiros das primitivas confrarias de construtores costumavam reconhecer-se entre si por símbolos e sinais que traçavam nas paredes dos edifícios onde exerciam o seu ofício, nascendo assim as siglas lapidárias. Estas siglas, abundantes nesta igreja de Chéronvilliers, serviam tanto para identificar o seu autor (uma espécie de rubrica pessoal) como a confraria a que pertencia, portanto, sendo um símbolo particular pertencente ao simbolismo de uma colectividade. Alguns autores advogam que as siglas lapidárias tinham como única finalidade utilitária a identificação do trabalhador para efeito de pagamento do seu trabalho. Essa opinião está correcta só parcialmente, pois que a maioria desses sinais insculpidos são positivamente identificados como pertencentes ao espólio da simbologia mística e esotérica, portanto, sendo símbolos sagrados, os quais, nos tempos medievais onde a intensidade espiritual e religiosa dominava a sociedade, certamente ninguém pensaria gravá-los como sinais de identificação pessoal só para fins salariais, profanos, em edifícios religiosos.

É também muito mais plausível que as siglas lapidárias ou petroglíficas, mais que há pessoa em si mesma expressassem a confraria companheiril que assim deixava a sua marca, o ex-libris, em determinada obra do seu empenho, ao mesmo tempo exprimindo em termos velados ou esotéricos, na linguagem universal da simbologia, o teor da doutrina perfilhada pela mesma corporação.

Tanto assim será que os signos canteiros não se perfilam num só tipo e sim dispõem-se em quatro classes gerais, conforme estão gravados tanto nos monumentos como nos incunábulos, como sejam: 1) signos paleocristãos; 2) signos mágico-cabalísticos; 3) signos astrológicos; 4) signos numéricos. Por vezes, invés de uma só classe aparecem todas e misturadas entre si, que é o que acontece aqui na igreja de São Pedro (ou a Pedra, de Petrus e Petra, em latim e grego) de Chéronvilliers.

Ao lado da porta lateral sul está uma janela gótica encimada por um brasão e dois medalhões laterais dum mesmo personagem, parecendo um nobre. Possivelmente será o busto daquele que encomendou esta obra no século XVI, e isto justifica-se pela inscultura de uma faixa cruzada a meio da base da janela, que na época tinha o mesmo significado de «eu mandei fazer e assim está feito», fechado ou cruzado (terminado).

Por seus conhecimentos superiores interditos a quem não fosse iniciado nos segredos da geometria e arquitectura que as confrarias de monges construtores e mestres canteiros detinham ciosamente, os mesmos eram considerados «criaturas diabólicas», isto é, possuídos de segredos sobrenaturais que nenhum mortal poderia possuir. Por esta razão, na porta lateral oeste vê-se esculpida a cabeça dum mestre construtor com cornos, associando-o ao Diabo. Na linguagem medieval e até na do início da Renascença, citar ou esculpir uma cabeça do Diabo não possuía a exclusiva interpretação de estar a referir-se ao príncipe das trevas, mas também e muitas vezes significando uma pessoa diáblica ou genial, com conhecimentos superiores aos comuns com que realizava obras incomuns. Sem dúvida que os mestres construtores eram seres diáblicos. Abaixo dessa cabeça esculpida, está gravada uma árvore com flores de trevo saindo de um jarro a que se sobrepõem um vaso.  É uma referência velada à Árvore Divina do Paraíso (sendo a prerrogativa divina assinalada pelo trevo ou “três folhas”, com isso designando a Santíssima Trindade), modelo usado pelos construtores medievais para fixarem as bases do edifício a erguer. Tal Árvore Paradisíaca era associada pelos antigos cabalistas judaico-cristãos à figura tradicional da Árvore das Sephiroths ou Emanações Divinas. O jarro, na mitologia grega, tem o significado de Providência Divina (que assiste à construção da obra), enquanto o vaso hermético, como se vê aqui, indica o lugar onde se operam as Maravilhas (da arte hermética dos mestres construtores).

Na mesma porta lateral oeste mas no lado oposto da cimalha onde está o grupo escultórico descrito acima, vê-se um pêndulo terminando num losango em cruz (assinalando os monges construtores como rectos e perfeitos cristãos), o qual está por cima dum coração atravessado por duas flechas cruzadas em aspa. Refere-se ao Coração de Maria, padroeira da Arte Real na Idade Média por representar a própria Matéria Prima que se revela após burilada a pedra bruta em blocos finamente esculpidos na mais real das artes: a da construção do edifício físico a par do espiritual. Dentro desse coração esculpido está um S e um M, possivelmente as iniciais do nome do mestre canteiro, além de serem, obviamente, as do nome de Santa Maria. Abaixo do coração está uma sigla, por certo a identificação companheiril tanto desse mestre como da corporação a que estaria afiliado.

Esta igreja de São Pedro será coeva e possível paroquial da Abadia Casa de Deus ou Chaise-Dieu, lugar próximo a Chéronvilliers, edificada no século XII e que era um eremitério chamado o Deserto. Em 1132, Hugues do Deserto tornou-se o primeiro abade da Casa de Deus da Ordem de Fontevrault, de inspiração beneditina. Casa de Deus ou Domus Dei, em latim, é o lugar onde se exerce a Arte Sacerdotal, enquanto Deserto é sinónimo de reclusão ou apartamento profano, para aprender sem ingerência essa mesma Arte Sacerdotal. Dela promanou a Arte Real, magnificamente representada nesta igreja paroquial dependente da abacial Casa de Deus.

Simbolismo maçónico no túmulo dos cardeais de Amboise

Na catedral primacial de Nossa Senhora da Assunção de Rouen, com origem recuando ao século III d. C., encontra-se a capela axial consagrada à Virgem, feita entre 1305 e 1311. É aqui que está o mausoléu monumental dos cardeais de Amboise, obra encomendada pelo célebre cardeal Georges I de Amboise (1460-1510) ao grande arquitecto Roland Le Roux, que a realizou de 1516 a 1521 sob a direcção do neto e sucessor daquele cardeal, Georges II de Amboise (1488-1550), ambos sepultados aqui. À sua cabeceira está um altar e um retábulo de madeira esculpida e dourada por Jean Racine em 1643.

Nos escultóricos, os dois cardeais aparecem ajoelhados, o avô adiante do neto, de mãos postas implorando à Virgem. No baldaquino aparecem o Cristo, a Virgem e os vários Apóstolos, e logo abaixo, no andar intermédio, têm-se os santos patronos desses religiosos, destacando-se São Jorge lanceando o Dragão, e por fim, no envasamento, aparecem as estatuetas representativas das Virtudes. Este monumento ilustra a evolução da arte nesse período extraordinário que foi a Renascença rouenense.

Contudo, por detrás da aparência piedosa deste conjunto monumental oculta-se uma mensagem pouco católica e muito maçónica, cuja autoria só pode ser atribuída ao escultor e pintor Jean Racine, que quis assim deixar a sua marca de iniciado na Ordem Maçónica mas sem colidir com o sentido tradicional, mental e moral, salvífico e confessional das figuras expostas. No baldaquino, vê-se Cristo entregando o esquadro ao Apóstolo Santo André, enquanto a Virtude Prudência exibe o compasso. Esquadro e compasso, acima e abaixo, são desde sempre os símbolos da Maçonaria, e neste sentido a sua interpretação iniciática vai muito além da piedade devocional reflectida pelo artista nos dois cardeais de Amboise.

Santo André é representado com a cruz em x, e segundo o Evangelho de São João era discípulo de João Baptista, mas chamado para o apostolado passou a seguir Jesus Cristo. Ele é considerado o intermediário entre o Anunciador (João Baptista) e o Anunciado (Jesus Cristo), e assim mesmo aquele que «falava duas línguas»: a cerrada ou esotérica do Baptista e a aberta ou universal do Cristo. Nisto, também a Maçonaria tem uma acção dupla: a iniciática dos seus rituais vedados ao mundo profano, e a pública das suas acções sociais. André provém do grego Andrós, significando «homem», que por sua vez é uma contracção de Alexandrós, «defendor de homens». Entre os iniciados maçons entendidos na doutrina cabalística judaico-cristã, Santo André é entendido como aquele que vai esquadrar as bases da Nova Jerusalém ou Jerusalém Celeste (objectivo espiritual do 29.º Grau de Grande Cavaleiro Escocês de Santo André do Rito Escocês Antigo e Aceite), e por isso toma do Cristo o esquadro como se vê na representação escultórica. Nos lados da cena, estão um nobre e uma dama cujas poses descrevem  um dos sete sinais secretos do Grau 29.º, ou seja, o Sinal da Água, colocando-se a mão direita sobre o coração e descendo-a até ficar lateral ao tronco. É pois, um sinal peitoral o que se vê aí.

A presença do Apóstolo Santo André na Maçonaria recua a 1593, quando Jacques VI da Escócia fundou a Rose-Croix Royal com 32 cavaleiros da Ordem de Santo André do Cardo. Nessa época, ele era Grão-Mestre dos maçons operativos da Escócia, mas será durante o exílio em França do seu sucessor Jacques II que neste país é fundada em 1659 a Ordem dos Mestres Escoceses de Santo André, nome desde então jamais abandonado pela Maçonaria.

No plano moral, o esquadro simboliza a Eqüidade, a Justiça e a Rectidão, e constitui a jóia do cargo de Venerável, porque ele deve ser o maçom mais recto e justo dentro da Loja maçónica, cumprindo o seu dever com absoluta eqüidade.

A Virtude Prudência (Sapientia), na base do retábulo, invés de se apresentar carregando o livro, cena comum na sua iconografia, prefere mostrar-se carregando o compasso maçónico, cena incomum só podendo ter um sentido ocultado. Na destra carrega o espelho da Sabedoria (speculum sapientia) no qual se mira. Este reflecte a sabedoria e a prudência, o reflectir sobre as consequências de acto passado e a sua possível reflexão no futuro. Esta Virtude é característica do verdadeiro homem sábio. De maneira que o relativo e o absoluto se acham representados pela acção simbólica do compasso, que figura a dualidade (hastes) e a união (a sua junção) dentro da Maçonaria, na qual é um dos seus símbolos maiores juntamente com o esquadro e a escritura sagrada. Os três são considerados as grandes jóias e as grandes luzes da Maçonaria. Como instrumento simbólico, representa a Medida e a Justiça.

A noção de Virtude na Maçonaria não é exactamente igual à do Catolicismo, é bom que se diga.  Sendo qualidades próprias do homem, as virtudes são “forças” ou skandhas, em sânscrito, que integradas ou assimiladas entram na formação do carácter superior do ser humano. Chama-se assim todos os hábitos constantes que levam o homem para a prática de operações honestas, tendentes para o bem. Podem ser classificadas como virtudes morais e virtudes mentais. As que são aplicadas para o bem honesto são morais, e as que são aplicadas para a verdade são mentais ou intelectuais. Aquelas são operativas, estas são especulativas, cuidam da cultura, enquanto as outras cuidam do carácter. Por exemplo, a caridade é uma das virtudes morais, enquanto a sabedoria e a ciência são virtudes mentais.

A formação das virtudes acontece pela repetição de uma série de actos da mesma espécie, cujos exercício constante e perseverante converte-os em hábitos. Por esta razão, a virtude é uma conquista pessoal onde não há interferência hereditária. Para que o comportamento pessoal se transforme numa virtude, implica essencialmente duas condições: o conhecimento do dever a ser cumprido e a disposição firme e perseverante em realizá-lo. Conceitualmente, para a Maçonaria a virtude é disposição habitual para a prática do bem e do que é justo, e por isso ela é tida como prova da perfeição e o protótipo ideal do Maçom.

A Filosofia antiga reunia toda a Moral em quatro virtudes cardeais ou principais, em torno das quais todas as outras gravitam ou dependem, e que são: Justiça, Prudência, Fortaleza, Temperança, sendo as três últimas apenas qualidades de quem as possui e não virtudes relacionadas com o próximo, pois só a Justiça é uma virtude útil aos outros, mas não bastando ser justo porque também é preciso ser benfazejo. A Maçonaria reconhece e incentiva a prática das quatro virtudes cardeais, além das três virtudes teologais, representando-as por borlas pendentes nos quatro cantos da Loja.

Ao contrário das virtudes cardeais, adquiridas pelo hábito constante, as virtudes teologais não são adquiridas pelo esforço do homem. São virtudes ensinadas na teologia de São Paulo e por isso é que se chamam teologais (prevenientes de Deus). Chamam-se elas: Fé, Esperança, Caridade. Pelas mesmas o homem supera-se a si mesmo obtendo condições de alcançar a Suprema Perfeição.

Para a Teologia, a representa a expressão da crença esclarecida como acto lógico e fundamental da razão humana; a Esperança e a Caridade ou Amor, andam juntas e representam o sentimento amorável para com o próximo que se deve a uma disposição muito viva da alma, seja nas concepções filosóficas e morais, seja nos ideais religiosos e espirituais. Para a Moral, distinguem-se os deveres da Justiça e os deveres da Caridade: os primeiros consistem em respeitar os direitos de outrém; os segundos consistem em socorrer o próximo por todos os meios ao dispor. Posto tudo, concluiu-se que o mal é a antítese da virtude. E é ao mal do fanatismo, da ignorância e da superstição que todo o Maçom verdadeiro deve combater sempre e em toda a parte com tolerância, sabedoria e esclarecimento.

O estranho cadeiral da igreja de Saint-Martin

Esta igreja de Saint-Martin está na cidade de Nonancourt, situada na margem do Rio Avre entre Dreux e Verneuil-sur-Avre. Foi construída no início do século XII e reconstruída em 1205, sendo o campanário o principal vestígio desse período. Restaurada no século XVI, datam dessa época (1500-1530) os seus vitrais que hoje constituem um conjunto excepcional pelo seu número e qualidade. Mas não são os vitrais e sim o cadeiral no coro da igreja quem agora prende a atenção, por nele estarem esculpidas pequenas figuras grotescas cujo bizarro impele para interpretações nada conformadas à doutrina oficial da Igreja. Estão aí esculpidos um homem de cócoras fitando atentamente adiante, um macaco sentado absorvido na leitura de um livro, um diabo com corpo de lobo suportando um espaldar de braços abertos configurando um triângulo.

O cadeiral é obra do século XVI de alguma confraria de mestres carpinteiros (magister carpentarius) contratada para o efeito no laicato, que apesar de não pertencer ao clero não era alheio à doutrina cristã e à simbologia universal assistindo a essa. Parece ser um mestre carpinteiro quem, subalterno ou de cócoras ante a hierarquia eclesiástica, está esculpido no espaldar de uma das cadeiras. Ele observa atentamente defronte, e a sua postura com o cóccix destacado e posto na curvatura do assento, sugere bem que o sentido sagrado do mesmo, posto que o cóccix elevado destaca a região sacra ou sagrada do corpo humano, assim emitindo sub-repticiamente a condição de ser sagrado do personagem postado na curvatura para baixo, ou seja, para o solo e o subsolo, indicativo de algo escondido, subterrâneo, neste caso, por certo tratando-se do conhecimento oculto ou velado do mestre carpinteiro, à cabeça de uma iniciação de ofício tradicional fazendo parte do corpus operático da primitiva Maçonaria Operativa, onde carpinteiros e pedreiros laboravam juntos.

O macaco absorvido na leitura de um livro, está inteiramente de acordo com a simbologia egípcia reservada ao deus Thot (o mesmo Hermes grego), onde aparece sob a forma de grande cinocéfalo branco como patrono dos sábios e dos letrados. Na sua função de escriba divino toma nota da Palavra de Ptah, o Deus Criador, a qual transmite aos homens sob o aspecto moral e sapiencial, para que a Humanidade evolua no caminho para o Divino. Consequentemente, o livro que o macaco lê atentamente no escultórico será o Livro da Vida e do Destino de um e todos os seres viventes. Se na iconografia cristã o macaco é frequentemente a imagem do homem degradado pelos seus vícios, em particular pela luxúria e a malícia, aqui ele representa o oposto disso, facto assinalado no livro da sabedoria antítese da imoralidade, posto o homem sábio ser o oposto do homem pecador, este que pode conhecer mas não saber, isto é, não ter integrada na sua consciência a Sabedoria Divina e os seus princípios de estar em harmonia consigo, com tudo e todos; é assim que na sua função psicopompa de mestre instalado como Hermes ou Thot na encruzilhada do visível e invisível, o macaco leitor expressa o homem sábio, compreensivo e compassivo, facto que na iconografia hindu se reserva para figurar o macaco real Hanuman, descrito no livro sagrado Ramayana, que vem a ser representativo do Bodhisattva ou “Buda de Compaixão”, nascido do Céu e sofrendo por amor aos homens na Terra, ensinando-os e guiando-os para o seu superior e espiritual destino comum.

O diabo com corpo de lobo com um joelho em terra e suportando o ângulo espaldar triangular, é a prova maior desta ser obra de uma corporação iniciática conhecedora dos segredos da Tradição Primordial e de como a ocultar sob forma grotesca como esta é. O lobo é a forma animal usada tradicionalmente para designar os adoptados ou iniciados nos segredos dos conhecimentos diáblicos ou geniais da Arte Real, esta que está sob o padroado feminino de Maria mas que no Antigo Egipto estava sob o orago de Ísis, em cujos Mistérios os iniciados colocavam uma máscara dourada com a efígie de um lobo. Os iniciados de Ísis recebiam o nome de «chacais» ou «lobos». Ainda hoje esse é o nome eleito para as crianças adoptadas pela Fraternidade Maçónica, a quem chamam «lobinhos», designação que o maçom Robert Baden Powell, fundador do Escutismo, utilizou para aplicar aos escuteiros mais jovens, os «lobitos». Quanto à configuração triangular no escultórico, indica os três ofícios mores da Arte Real: Geometria – Arquitectura – Carpintaria, onde um giza, outro esculpe e o último talha o templo da alma acompanhando a edifícação física, ou seja, o templo ideal feito em simultâneo com o templo material.

O facto de se escolher o coro para esculpir essas figuras no cadeiral, também tem o seu significado. Esse é o o lugar do canto, da oração e da reflexão clerical comum ou em coro. Geralmente de formação rectangular, o coro apresenta à direita e à esquerda o cadeiral, grupos de cadeiras onde o clero toma assento durante o serviço religioso.

Geralmente composto por duas fileiras em cada lado, o cadeiral apresenta uma elevação dos espaldares das cadeiras da fila posterior que vai compor as paredes laterais do coro. Inicialmente essas cadeiras eram movíveis, mas com o passar do tempo tornaram-se parte integrante e fixa da arquitectura, onde cada assento podia apresentar apoios para os braços e uma divisória para os assentos contíguos.

O assento também pode ser recolhido de maneira a permitir a permanência de joelhos ou em pé. A extremidade esculpida do assento, quando recolhido verticalmente, oferece ao clérigo a possibilidade de repouso em caso de longas permanências em pé. Este elemento, designado de misericórdia, passou a ser decorado, especialmente durante a Idade Média mas passando à Renascença, com baixos-relevos de cenas religiosas ou da vida quotidiana, por vezes com formas grotescas e fantásticas como se vêem nesta igreja de Saint-Martin de Nonancourt. No período do Gótico, a mestria do trabalho do carpinteiro deu lugar a braços extremamente trabalhados e espaldares de filigrana complexa, podendo ser coroados por gabletes ou em forma de tabernáculo assente em colunelos e encimado por pináculos.

Não deve confundir-se cadeiral com cátedra. As basílicas e catedrais cristãs, que originalmente, a partir do ano 327 d. C. governando o imperador romano Constantino, seguiam o modelo arquitectónico dos edifícios religiosos gregos e depois os dos templos romanos da Síria importados para a capital do império, Roma, eram construídas com uma plataforma elevada acima do nível da congregação, figurando no centro da plataforma o altar e adiante deste a cadeira ou trono bispal, isto é, do bispo, chamada cátedra.

Provém da cátedra o termo latino ex cathedra, significando «desde o trono», politicamente aludindo ao trono do juiz romano, mas espiritualmente ao trono do Juiz da Igreja, o próprio Cristo, representado pelo bispo que assim ocupava o lugar mais privilegiado e honroso do templo.

Originalmente o bispo pregava sentado, ex cathedra, numa posição em que o Sol penetrando no ângulo oposto da igreja, pelo vitral a ocidente e incidindo a oriente no altar mor adiante do qual estava a cátedra, ia resplandecer no seu rosto enquanto falava à congregação ou assembleia, tornando-o assim a imagem vivo do Sol Espiritual que é Cristo, para todos os efeitos, sendo a herança ritualística do primitivo culto solar a essa outra divindade que dominou na Síria e chegou a predominar em Roma, o deus Mitra, consignado Solis Invictus, tal qual Cristo também o foi.

Finalmente, esta igreja de Saint-Martin de Nonancourt, onde brilha a arte dos magister carpentarius do século XVI, apresenta a flèche que é a obra mais notável de carpintaria dessa época, havendo ainda uma estátua representando São João Baptista, da mesma data, esse que é o patrono dos construtores livres cujas oficinas ou lugares de reuniões ainda hoje levam o nome de Lojas de São João, padroeiro masculino da Arte Real de, pedra a pedra e trave a trave, construir o Edifício da Humanidade nova, mais justa e perfeita.

A estranha Mansão da Anunciação

Em Rouen, na Rua Eugène Dutuit, junto ao Presbitério situado no n.º 5 e não muito longe da igreja de Saint-Maclou ou Malo (um dos sete santos da Bretanha), está uma estranha mansão gótica, bela mas de ar severo, do século XV.

Este edifício tem esculpida sobre o frontão da entrada a cena bíblica da Anunciação à Virgem, donde herda o seu nome, e em volta numerosos motivos alquímicos evocativos da Grande Obra.

Não se sabe quem mandou construir esta Mansão da Anunciação consagrada à Virgem. Mas sabe-se que recebeu grandes restauros após o incêndio de 1520 nesta antiga Rua Malpalu, que em 1886 passou a chamar-se Eugène Dutuit, o antiquário e mecenas que financiara as obras de reconstrução pós-incêndio neste quarteirão da igreja de Saint-Maclou.

A Mansão da Anunciação possivelmente terá sido construída por alguma família abastada próxima da Ordem Beneditina de Saint-Maclou, e por certo algum membro dessa família se dedicou à Arte Real ou Alquimia cuja padroeira é a própria Virgem Maria, esta a quem os beneditinos tinham especial devoção dedicando-lhe fólios preciosos, monumentos únicos e orações raras, não ignorando que vários alquimistas famosos também andaram de relações próximas com essa Ordem, e por vezes eles mesmos eram monges beneditinos, como foi o caso do célebre alquimista Basil Valentine no século XV.

 Mansão da Anunciação – Rouen

A Alquimia (matriz da Química moderna) fez parte das ciências tradicionais ou esotéricas que a Igreja Católica tolerou relativamente num dos seus três aspectos, a saber: a Externa ou Alquimia Metálica, portanto, laboratorial e física; a Interna ou Alquimia Mística, a ver com a mudança espiritual dos estados de consciência do homem, e era esta que a Igreja tolerava; finalmente, a Arte Magna, a mais perfeita, onde simultaneamente à transmutação da matéria dava-se a transformação da alma, sendo esta a preferida de todos os verdadeiros alquimistas.

A Alquimia processa-se por duas vias, chamadas Via Húmida e Via Seca. A primeira é um caminho de experimentações metálicas graduais, lentas mas seguras, sempre com a presença de um casal, cujo elemento principal nessas operações é a água que se vai fervendo num fogo que se intensifica gradualmente à medida que o crisol da Matéria Prima aparece no fundo da retorta. A esta fase chama-se Anunciação. A Matéria Prima é a Primordial ausente de metais impuros, e é com ela que se obtém a Pedra Filosofal, chamando-se este caminho para a fábrica da Pedra de Crisopeia, “obtenção do Ouro”, tanto místico como metálico. Enquanto na Via Húmida passa-se primeiro pela “obtenção da Prata”, chamada Argiopeia, na Via Seca não: o caminho é directo para a Crisopeia e o elemento dominante é o fogo, com o alquimista operando sozinho abreviando o tempo para alcançar o seu fim, o que não deixa de ser muito arriscado. A Via Seca é representa pela árvore seca com nós, estes os «nós» da alma que o Adepto do Fogo vai «desatando» de maneira radical ou ascética, ou seja, procurando alcançar a Iluminação espiritual no mais breve prazo de tempo possível, o que fica marcado pela obtenção externa do Ouro alquímico.

A fachada frontal em madeira da Mansão da Anunciação, sugere pelos seus lados nodosos e esculpidos a própria árvore seca, consequentemente a Via Seca. Seja como for, a cena da Anunciação à Virgem está presente tanto nessa como na Via Húmida, por ser o anúncio simbólico do nascimento próximo da Pedra Filosofal (assinalada no Cristo) de que está grávida a Matéria Prima (representada em Maria), após o Anjo (estado de consciência espiritual) lhe ter anunciado a Graça (ou meio para alcançar com segurança a finalidade).

A colagem dos processos das operações alquímicas, representadas por símbolos e emblemas astrológicos e mitológicos, a episódios especifícos dos Antigo e Novo Testamentos, principalmente aqueles onde domina a presença feminina seja como heroína ou como santa, ou ambas as coisas, recua ao ano 1100 na Europa quando as universidades árabes passaram a divulgar a ciência alquímica, tendo-as frequentado os místicos e sábios judeus e cristãos, adaptando os símbolos e alegorias herméticas a passagens demarcadas das escrituras sagradas, levando a leitura e interpretação destas para o campo da heterodoxia característica da Tradição Iniciática. Na Europa, foram precisamente os beneditinos, e depois os cistercienses seus descendentes, os primeiros a aceitar a ideia de ligar a Bíblia à Alquimia, mas que no mundo bizantino já era aceite desde Zózimo de Panápoles, que cerca do ano 300 d. C. deu início à Escola Alquímica em Alexandria e foi o primeiro a ser chamado Filósofo do Fogo. Ele havia recolhido esses conhecimentos herméticos junto dos sábios da Ásia, na China e sobretudo na Índia.

No pilar lateral esquerdo da Mansão da Anunciação está a Virgem Maria defronte para o oposto Arcanjo São Gabriel que lhe faz o divino anúncio. Esse tem abaixo o escultórico dum busto angélico (representando o solve, princípio espiritual), e aquela um busto humano (representando o coagula, princípio material). A Senhora é encimada por uma cabeça de querubim (marcando a subida ao solve) e o Arcanjo é encimado por uma cabeça de silvano, parente do fauno (marcando a descida ao coagula). Ao centro, a flor do lírio tendo por cima um dragão enrolado. Representa a Anunciação Alquímica, sentido hermético ou oculto dado pelo simbolismo do dragão, aqui símbolo da Sabedoria Secreta marcando o chamado Fogo Secreto da Magnus Opus. Abaixo do lírio, está um escudo onde se vê um cordame com nós e uma cruz, sendo uma possível alegoria da Via Seca que este edifício pretenderá retratar. A Virgem no pilar desta Mansão, apresenta o livro na mão direita. Este facto iconográfico deve-se ao Comentário sobre o Evangelho de São Lucas, de Orígenes, e que o Hino de Vésperas da Festa justifica: «Quando Maria aparece com o livro entre as mãos ou junto ao seu assento, há um significado próprio para isto: Ela gerou o Verbo, a Palavra, o Livro das nossas almas».

O evento da Anunciação à Virgem Maria pelo Arcanjo Gabriel da conceição pelo Espírito Santo de Jesus Cristo, é observado pelas Igrejas Ocidental e Oriental em 25 de Março, exactamente nove meses antes do Natal, sendo o tempo que dura a gravidez em toda a mulher. De acordo com o Novo Testamento (Lucas, 1,26), a Anunciação ocorreu no sexto mês de gravidez de Isabel, prima da Virgem Maria, que concebeu João Baptista. Segundo Thomas Talley, esta data baseia-se na tradição judaica e no pensamento rabínico relativas ao ciclo do nascimento e morte, início e fim, que já era celebrado numa data específica, o 14 de Nisan, quando se celebra a Páscoa judaica e que corresponde a Março no calendário gregoriano. Os cristãos no início do seu movimento, para marcarem o começo da sua história e realçarem que a mesma realizava o que o judaísmo anunciava, escolheram essa data próxima da Páscoa judaica, ou seja, a da Anunciação do advento de Jesus Cristo.  Talley toma por base o facto do Arcanjo Gabriel ter aparecido a Zacarias quando este oficiava no Santíssimo Altar do Templo em Jerusalém, como Sumo Sacerdote durante a festa do Yom Kippur, celebrada em Setembro, o que coloca a concepção de João Baptista na Festa dos Tabernáculos e o seu nascimento nove meses após, próximo ao Solstício de Verão. Mas como o Evangelho de São Lucas afirma que a Anunciação ocorreu no sexto mês de gravidez de Isabel, ele deve ter ocorrido próximo do Equinócio da Primavera, ou seja, da Festa da Páscoa judaica.

As primeiras alusões à Festa da Anunciação encontram-se no cânone do Concílio de Toledo (ano 656), tendo o Concílio de Constantinopla (ano 692) proibido a celebração de festejos durante a Quaresma, excepto se coincidissem com um domingo (dia do Senhor), e um Sínodo da Igreja Católica de Inglaterra, em 1420, proibiu qualquer trabalho na data desta Festa.

Decorações alquímicas do Hotel d´Escoville

Reconstruído após a Segunda Guerra Mundial, o Hotel d´Escoville foi construído na Praça Saint-Pierre de Caen entre 1530 e 1535, seguindo o gosto italianisante da Renascença do seu proprietário original, Nicolas Le Valois d´Escoville (1475-1541), um dos mais ricos mercadores de Caen que conseguiu enriquecer rapidamente graças à exclusividade do comércio cerealífero com a Espanha.

Nicolas d´Escoville não foi só o negociante afortunado, foi sobretudo o alquimista renomeado escritor do liber mutus (livro mudo) que é este hotel repleto de alegorias da Grande Obra Hermética. O próprio nome primitivo do edifício, Hôtel du Grand Cheval, o “Grande Cavalo”, aponta logo à partida haver aqui uma Grande Cabala sob a aparência artística dos símbolos que, afinal, são reconhecida parte notável do imobiliário da simbologia hermética.

Como a Alquimia laboratorial ou prática química exige sempre a presença de um casal para que exprima o Sol e a Lua, o Subtil e o Espesso, a Mente e o Coração, etc., vindo o homem e a mulher a representar o futuro Andrógino Perfeito que em Alquimia chama-se Rebis e que, no fundo, vem a ser a humanização da própria Pedra Filosofal, eis que aparecem na fachada setentrional as estátuas de dois dos principais personagens do Antigo Testamento: à direita, o rei David segurando a cabeça decapitada do filisteu Golias ou Goliath; à esquerda, Judith, viúva de Esaú, ostentando a cabeça degolada de Holofernes, o comandante assírio que ela seduziu para o decapitar. Em simbologia alquímica a cabeça cortada tem o significado de separação dos elementos subtis (ou sagrados) dos grosseiros (ou profanos), e na Tradição Ocidental representa-se por personagens ligados a cenas  bíblicas do Antigo Testamento, a fim conferirem o sentido de estado primordial ou ancestral. Sendo cinco os elementos naturais (éter, ar, fogo, água, terra), igualmente está repartida em cinco partes esta fachada setentrional, o que é muito significativo. Por cima da estátua de David, dois Anjos masculinos sustêm um escudo armoriado, por certo referindo-se a Escoville e ao aspecto solar, ígneo ou masculino do Rebis. Por cima da estátua de Judith, repete-se a cena com dois Anjos femininos sustendo igual escudo armoriado, aqui aludindo ao aspecto lunar, volátil ou feminino do mesmo Rebis. Juntos são o Andrógino Perfeito, o Adepto Filosófico (Alquimista) ou a própria Pedra Filosofal viva.

Por cima de uma das janelas laterais aparece a alegoria escultórica da cabeça dum touro de cujas orelhas pendem grelhas, enquanto da boca sai a direito um bastão que passa por cima de uma faca e de um espeto. O touro é considerado o animal primordial por representar a própria Energia Vital da Natureza, e nesta ilustração ela representa a Força Criadora Universal a quem antigos hebreus chamaram El, Deus, e deram-lhe a forma inteira de um bovino ou de uma simples cabeça de touro, cujas estatuetas de bronze costumavam ser presas à extremidade de um bastão ou de uma haste pelos patriarcas hebreus no tempo de Moisés. Sacrificar o touro (assinalado na faca e no espeto) e comê-lo (representado nas grelhas para assar), para os alquimistas equivalia ao domínio das forças vivas naturais submetendo-as à vontade do filósofo hermético, que através de sucessivas operações químicas, acompanhando a transformação das suas próprias almas de espessas ou grosseiras em subtis ou elevadas, chegavam ao estado mais rarefeito dos elementos da Natureza e daí alcançando a síntese da mesma num único elemento em que reconheciam e se identificavam com Deus presente no Espírito da Natureza. A esse elemento único chamavam Pedra Filosofal, como aplicação do princípio supremo regenerador da Matéria, transformando o «chumbo» (grosseiro) em «ouro» (subtil). De maneira que a morte do touro às mãos do alquimista, equivale à «imolação» de Deus (representada no trigo e na vide ingeridos na celebração eucarística) às mãos do homem que procura alcançar o Seu Poder e Presença absolutos.

A busca do Poder e da Presença de Deus, com todo seu o significado, tem-se no topo da cimalha deste hotel na estátua de um homem malhando a matéria-prima, isto é, operando sobre a matéria visível para obter a subtileza da matéria invisível. Representa a fase labora, trabalha, da Alquimia, mas sempre acompanhada da fase ora, medita, para que a Realização alquímica seja justa e perfeita. Donde os alquimistas terem por lema ora et labora, medita e trabalha, frase que veio a originar a palavra laboratório, isto é em latim, labor+oratorium.

Esse ora et labora  aparece representado em duas pequenas figuras humanas esculpidas no pórtico de entrada do hotel, a da direita o ora e a da esquerda o labora. Ladeiam um friso ilustrado com a cena apocalíptica da Besta escarlate e a Virgem triunfante, dominada por homens e anjos, sobrepostos por outros anjos ao fundo da cena anunciando a Jerusalém Celeste.

Na simbologia alquímica a besta apocalíptica é associada ao animal mítico basilisco, com cabeça de pássaro e corpo de dragão, servindo de anúncio das fases espiritual e química da Grande Obra que vai ter início. Ambas as fases juntas têm o nome de conjunção e o seu processo inicial é chamado de Infância dos Filósofos. Por isso vê na ilustração um jovem prendendo por uma corrente um dragão submisso. Também por isto, este painel não poderia deixar de estar à entrada do hotel, como que indicando outras fases ou aspectos herméticos retratados no seu interior, assim dispondo-o como verdadeira Mansão Filosofal. O Apocalipse de São João diz que a besta escarlate (a matéria corruptível ou em estado não apurado) tem o número 666, cuja soma dá 18 e a soma deste o 9. Significa o Homem manifestado na Matéria (666) e o Homem elevado ao Espírito (999). Tem-se aqui o Homem Adâmico a caminho de se tornar Homem Crístico, pela transformação e superação da sua natureza inferior ou grosseira, humana, em superior ou subtil, angélica. Não deixa de ser curioso que entre os hebreus o nome Adão, Adam ou Adm é assinalado precisamente pelo número cabalístico 9 e tem o significado de Homem, neste caso, a Humanidade inteira.

A Virgem triunfante do dragão, representada com a Lua aos pés, é a Senhora da Conceição ou Concepção alquímica do espesso em subtil. Ela é a própria Alma do Mundo e do Universo, a quintessência da Matéria em quem os alquimistas reconheciam a Pedra Filosofal. Por isto, Maria sempre foi a Padroeira e Mãe dos Filósofos, a representação deífica da própria Alquimia ou Química Divina (Allah-Chêmia, em copta), cuja absorção na essência viva da Virgem Eterna equivale à entrada triunfal na Jerusalém Celeste, isto é, na dignidade de verdadeiro Alquimista ou Filósofo do Fogo Sagrado, este a essência última e prima-essência de toda a Natureza que, afinal, também ela é Obra do Espírito Santo tomando forma como Virgem triunfante.

No topo do cimalha, ladeando um nicho vazio, vêem-se duas serpentes coroadas. Representam as energias fundamentais masculina e feminina que se opõem e completam na Grande Obra, o que retorna novamente à presença do casal hermético. Há uma serpente verde celeste representando a Electricidade Cósmica que os hindus chamam Fohat, e há uma serpente vermelha terrestre designando o Electromagnetismo Planetário a quem os hindus chamam Kundalini. As serpentes coroadas ladeando o nicho, representam os três elementos ou princípios mais elevados da Alquimia, chamados “espíritos alquímicos”: Enxofre, Mercúrio e Sal, correlacionados no Homem ao Espírito, Alma e Corpo. Aqui, na entrada do hotel, tradicionalmente o Enxofre fica ao centro, o Mercúrio à direita e o Sal e à esquerda.

Hoje, este hotel é um lugar do poder político e administrativo e igualmente um dos principais foros culturais da cidade, sendo sede da Academia de Caen desde 1753. Desde o século XIX que a Sociedade Filarmónica de Calvados dá concertos aí, por motivo da Sociedade de Belas-Artes passar a reunir-se no hotel. Em 1862 o edifício foi classificado monumento histórico, e teve lugar uma primeira restauração do imóvel, seguindo-se outras três: de 1895 a 1905, por Anthime de la Rocque; de 1915 a 1925, por Gabriel Ruprich-Robert; finalmente, de 1933 a 1936, por Ernest Herpe. Pela singularidade notável que o distingue, este Hotel d´Escoville merece visita demorada e atenta pelo muito que esconde e revela como autêntica Mansão Filosofal.