O nome ou sobrenome Mavalankar tem dado origem a discussões infrutíferas acerca da verdadeira identidade de Damodar Karhâda Mavalankar confundido com Djwal Khul Mavalankar, ou de Mavalankar, dito Mestre Tibetano. Será que um é o outro ou será que por má interpretação das informações disponíveis confundiu-se um com o outro? Ou será que nas Cartas dos Mahatmas endereçadas a Helena Petrovna Blavatsky e seus pares da época (Henry Stell Olcott, Alfred Percy Sinnett, William Judge e uns poucos mais), é exactamente por esse pormenor que se poderá provar a falsidade dessas cartas e que afinal os ditos Mahatmas ou são tão falíveis como qualquer mortal, ou simplesmente não passam de uma gigantesca invenção, monstruosa impostura da mesma Blavatsky? É nisto que crêem os cépticos da Teosofia de todos as crenças positivistas e religiosas, todos unidos como inimigos declarados da mesma Mestra, sempre à cata de pormenores somenos onde a possam flagrar em contradição e mentira.

Déjà vu… sim, porque algo semelhante encontrei na Sociedade Teosófica de Adyar em Portugal quando cheguei a ela no início dos anos 80 do século findado, onde o colectivo do Ramo Alvorada andava acalorado de “candeias às avessas” sem se entender acerca do Karma, se ele provoca ou não dor física e moral, e se alguém pode ter uma vida inteiramente isenta de dor? Discussões inúteis, infrutíferas que respondi conforme sabia. Após, a discussão amainou e aos poucos regressou-se ao miolo invés de catar as possíveis fissuras da casca. Nisso, agora também aqui entra o sobrenome Mavalankar sobre que direi algumas palavras.

Primeiro que tudo: não discuto a Palavra dos Mestres de Sabedoria e não me atrevo a pô-la em causa, acredito neles como a principal razão da minha vida, provas pessoais não me faltam mas ficam só para mim que são minhas, e com isso sei que uma aparente incongruência ou um talvez equívoco da parte dos Mestres seja afinal o meu equívoco, a minha incongruência. O que parece, pode não ser, e que pode não ser, pode parecer. Razão para H. P. Blavatsky afirmar aos do Círculo Interno da S. T. fundado por ela e H. Olcott em moldes budistas (dogma) e maçónicos (ritual): “Por mais absurda que vos pareça uma ordem dos Mestres, não hesiteis em cumpri-la!” No mesmo sentido, isso reafirmou o Professor Henrique José de Souza, sobretudo durante o período de 1924-1928, quando dirigiu Dhâranâ – Sociedade Mental-Espiritualista em Niterói, Brasil. Nunca o discípulo, ou tão-só o candidato a tal, de sentidos limitados, poderá perceber as intenções animando o pensamento superior de um Adepto Independente cujas alturíssimas mentais e tirocínio certeiro está sempre muito além do imediatismo dos factos aparentes, indo prever os lances do futuro conformando a eles o presente.

Pois bem, Damodar Karhâda (Karada) Mavalankar nasceu em Setembro de 1857 em Ahmedabad, no Gujarat indiano, numa família rica de casta hindu superior, brahmane. Sobre a sua morte, a última notícia que se sabe dele é ter partido para os Himalaias em 1885 em busca dos Mestres de Sabedoria, desaparecendo para sempre nas entranhas do mistério. Em 1879 conheceu Helena P. Blavatsky e Henry S. Olcott em Bombaim, e ficou de tal modo fascinado pelos ensinamentos teosóficos que se afiliou à Sociedade Teosófica desistindo da sua casta em 1880, abraçando o budismo quando estava no Sri Lanka junto com o casal fundador da S. T. Essas suas atitudes e cortes radicais com a ortodoxia hindu familiar geraram conflito insanável com esta, sobretudo com o seu avô, o seu pai e o seu sogro que adiantara uma renda de 50.000 rupias como dote de casamento (combinado entre os progenitores masculinos) da sua filha ainda de tenra idade com ele. Damodar desistiu da herança, da segurança familiar e acabou deserdado, indo definitivamente viver e trabalhar com os fundadores da S. T. até ao momento de partir para o Tibete onde desapareceu misteriosamente (in Henry S. Olcott, Folhas de um Velho Diário – História Autêntica da Sociedade Teosófica, vol. II, 1900).

O episódio da deserdação familiar aparece igualmente num outro personagem que alguns confundem com Damodar, a ponto dos Adeptos também o apodarem nas suas Cartas, escritas em inglês, The Disinherited, “O Deserdado”. Refiro-me a Djwal Khul, dito o Tibetano. O Mahatma Koot Hoomi Lal Sing, brahmane de Cachemira, escreveu na Carta nº VIII datada de cerca de 20 de Fevereiro de 1881, recebida por Madame Blavatsky mas endereçada a Douglas Hume, que viria a preterir a Teosofia pelo mediunismo espiritista: “E agora, passemos a assuntos mais importantes. O tempo é precioso e os materiais (de que me sirvo para escrever) ainda mais. Sendo agora a “precipitação” proibida no que lhe respeita, a falta de tinta e papel não tem mais hipóteses de ser superada por tamasha, e estando muito longe de minha residência, em lugar onde uma papelaria é menos necessária que o ar respirável, a nossa correspondência ameaça cessar bruscamente, a menos que utilize judiciosamente a reserva que disponho. Um amigo prometeu fornecer-me, em caso de grande necessidade, algumas folhas separadas, relíquias do testamento de seu avô, no qual este o deserdou, fazendo assim a sua “fortuna”. Mas como nunca escreveu uma linha, salvo uma vez, declarou ele, nestes últimos onze anos…” o que não confere com Damodar e sim com Djwal Khul, que nessa mesma carta escreve uma curta nota assinando o Deserdado. Por seu turno, Damodar mantinha uma relação epistolar intensa com William Q. Judge, de que transcrevo trecho da sua carta endereçada àquele datada de 24 de Janeiro de 1880, descrevendo a sua apreciação de H. P. Blavatsky e a sua deslocação em corpo astral ao interior do Templo de seu Mestre:

“Sei que Madame Blavatsky, que eu venero como minha Guru, estimo como minha benfeitora e amo mais que uma mãe, e outros cuja simples recordação dá ao meu coração uma emoção que me faz tremer de veneração, faz-me favores de que não tenho o menor merecimento… Cerca de um mês depois de eu aderir à Sociedade, ouvi uma voz interior que me sussurrava que Madame Blavatsky não é o que descrevem ser… Eu penso que seja algum grande Adepto indiano que tomou essa forma ilusória.

“O Irmão ∴ ordenou-me para segui-lo. Após uma curta distância de meia milha, nós entrámos por uma passagem subterrânea natural que fica sob o Himalaia. O caminho é muito perigoso. Há um caminho natural que discorre por baixo do Rio Indo com toda a sua fúria. Somente uma pessoa de cada vez pode passar por ele, e um passo em falso marca o destino do viajante. Acima do caminho há vários vales a serem cruzados. Depois de andar uma distância considerável por esta passagem subterrânea, surge uma planície aberta em L—K. Há aí uma grande construção maciça com milhares de anos. Em frente dela um enorme Tau egípcio. O edifício apoia-se em sete grandes pilares em forma de pirâmides. A porta de entrada tem um grande arco triangular. No interior há vários compartimentos. O edifício é tão grande que eu penso que possa conter 20.000 pessoas. Foram-me mostrados alguns dos compartimentos. Este é a principal localização central onde todos os da nossa secção que foram preparados para a Iniciação nos Mistérios têm de ir para a cerimónia final, e ali permanecer durante o período requerido para isso. Eu entrei com o meu Guru no enorme salão. A grandiosidade e a serenidade do lugar é o suficiente para impressionar alguém, impondo-lhe respeito. A beleza do Altar que está na parte central e no qual cada candidato toma os seus votos no momento da sua Iniciação, certamente deslumbra o mais brilhante dos olhares. O esplendor do Trono do Senhor é incomparável. Todas as coisas estão estabelecidas num princípio geométrico e contendo vários símbolos que são explicados somente aos Iniciados. Mas não posso falar mais, agora que eu fiquei com a obrigação de Segredo que ∴ me fez tomar.”

Damodar voltava frequentemente ao assunto dos Adeptos, “porque é o único assunto em que estou interessado”, discorrendo longamente sobre eles mas sem admitir entusiasmos que o colocassem fora da sua discrição e devoção natural. Ainda em carta a W. Judge, conta a visita que lhe fez o seu Mestre em Maio de 1880, quando estava no Ceilão em companhia de Blavatsky e Olcott, tendo se instalado numa pousada onde havia lugar apenas para duas pessoas, tendo ele ficado na poltrona da sala de jantar. Mal se acomodara, ouviu uma batida leve na porta:

“Eu abri-a, e que grande alegria senti quando vi ∴ novamente! Num sussurro muito baixo, ele ordenou-me que me vestisse e o seguisse. Defronte à porta dos fundos da pousada está o mar. Eu seguiu-o, como me ordenou. Ele levou-me pela porta dos fundos da residência e andámos cerca de três quartos de hora pela beira do mar. Então nos dirigimos em direcção ao mar. Tudo à volta era água, mas por onde caminhávamos estava bem seco. Ele caminhava na frente e eu seguia-o. Assim andámos cerca de sete minutos, quando chegámos a um local que parecia uma pequena ilha. (…) Lá, num pequeno jardim em frente, encontrámos um dos Irmãos sentado. Eu o havia visto antes na Sala do Conselho, e é a ele que esse lugar pertence. ∴ sentou-se próximo dele e eu fiquei em pé defronte deles. Estivemos lá cerca de meia hora. (…) O Mestre desse lugar, cujo nome não sei, colocou a sua abençoada mão sobre a minha cabeça, e ∴ e eu viemos embora. Regressámos até perto da pousada onde eu iria dormir, e de imediato ele desapareceu subitamente.”

Esse Mestre de Damodar era o próprio Koot Hoomi Lal Sing, o mesmo de Djwal Khul, como aparece descrito nas Cartas de H. P. Blavatsky a A. P. Sinnett e ainda no volume III das Folhas de um Velho Dário, de H. Olcott, que inclusive dá a descrição física de Djwal Khul acrescentando que não era tibetano e sim hindu (tibetano será mais por adopção do lugar onde viveu e não do país onde nasceu) como o seu Mestre:

“Depois de esperar um pouco, ouvimos e vimos um Hindu de estatura alta aproximando-se pelo lado da planície aberta. Chegou a uns quantos metros de nós e fez sinais a Damodar para ir até junto dele, o que ele fez. Disse-lhe que o Mestre se apresentaria dentro de poucos minutos e que tinha alguns assuntos a tratar com Damodar. Era um aluno do Mestre K. H. Finalmente vimos chegar o Mestre proveniente da mesma direcção, passando junto ao seu aluno que se havia retirado para pouca distância. (…) Mais tarde, antes de deitar-me, encontrava-me na minha tenda de campanha quando o aluno, antes mencionado, de K. H. levantando a cortina da porta fez-me sinais para que eu saísse da tenda, apontando com o dedo para o Mestre que encontrava do lado de fora, esperando por mim debaixo da luz das estrelas.”

Adiantando: “Já encontrei o artigo que a Sociedade Teosófica publicou na sua revista narrando esse encontro, e por duas vezes estipula que o discípulo que acompanhou o Mahatma Kuthumi era efectivamente Djwal Khul: “O Mestre estava sendo acompanhado em pessoa pelo Irmão Djwal Khul” (p. 22); “O mensageiro de que falam era Djwal Khul” (p. 30)”. – In revista The Theosophist, Vol. V, n.º 351, 1883, artigo transcrito em The Blavatsky Collected Writings, Vol. VI, p. 21, 1883-1885.

Tem-se, pois, Damodar Mavalankar e Djwal Khul como duas personalidades distintas discípulas de um único Mestre. E duas personalidades distintas com dois factos iguais nas suas vidas, o de serem deserdados das respectivas famílias. Ambos da Corte de Arhats do Budismo do Norte – Mahayana – que cerceou Upasika (H.P.B.), onde Djwal Khul apoiou o despertar na infância espiritual de Damodar Mavalankar, servindo-lhe assim como prolongamento do Mestre e como Mestre ou Tutor, no que se sabe que a vida do discípulo reproduz sempre, ao seu nível, os principais lances daquela corporal do Mestre. Esta poderá muito bem ser a explicação iniciática para o deserdo familiar sofrido por ambos. Sabe-se que o discípulo quando se idêntica ao Mestre adopta tanto os seus hábitos como até os seus traços psicológicos e fisionómicos, sofrendo uma autêntica transformação interior e exterior. É natural, pois, que ele venha a reproduzir nos lances de sua vida os principais daquela do Mestre.

Por fim, o sobrenome Mavalankar, tanto para Damodar que assina com o nome inteiro a Carta 142 b do Mestre K. H. que o incumbira de o representar, como para Djwal Khul, cujo nome aparece por inteiro na Carta n.º XXXVII recebida em Allahabad, Janeiro de 1882, após assinar “O Deserdado”: “Se deseja escrever-lhe, se bem que não possa escrever por si mesmo, o Mestre receberá com prazer as suas cartas (as de A. P. Sinnett). Pode fazê-lo por intermédio de D. K. Mavalankar”. Algumas outras cartas também são assim assinadas, como a Carta n.º CXXV, “Djwal Khul M. XXX”.

Além dos laços espirituais entre Damodar e Djwal, que poderá explicar a adopção do sobrenome familiar Mavalankar do primeiro pelo último, não fica nisso o significado mais importante do termo, e para entendê-lo no sentido iniciático devo recorrer aos comparativos filológicos sânscritos: tem-se Mava e Lankar presentes em Mavalankar, sendo que Mava deriva de Maula provindo do radical Mûla, designativo de “Raça Pura”, Superior, Jina ou Jinashastra, moradora em Lankar ou Lanka, ilha do Ceilão que a Bhagavata Purana diz ser o primitivo cume do Monte Meru, a Montanha Primordial onde se formou a Raça dos Puros ou Bhante-Jauls, Irmãos de Pureza. Nisto, aparece Mauna, derivada de Muni, significando a “condição do Muni”, o Sábio, sendo que Mauna-Vrata é literalmente o “voto de silêncio do Muni”, enquanto Maunim é “o silencioso, o asceta ou retirado que pratica o silêncio”.

E retirado do palco do mundo profano foi Damodar Karhâda Mavalankar, místico abnegado da Causa dos Mestres de Sabedoria que desapareceu nas entranhas do Tibete, tal como o explorador inglês Percy Fawcett desapareceu misteriosamente no sertão brasileiro em busca da Cidade dos Deuses, desaparecimentos que interrogam severos os conhecimentos humanos do mundo que se crê de todo conhecido e, mais que isso, garantindo que a Fraternidade dos Santos e Sábios existe, só faltando ao comum das gentes saber o caminho para ela após conquistar os méritos por seus próprios esforços para chegar ao diapasão igual do Eldorado, a Shangri-La dos mais doces e esperançosos sonhos da Humanidade.