O jazigo monumental da família Carvalho Monteiro encontra-se no Cemitério dos Prazeres, Lisboa, com o número 1382 na rua 11, lado esquerdo. É o segundo jazigo desta família, cuja responsabilidade da sua manutenção foi confiada em 1863 por Francisco Augusto Mendes Monteiro ao seu filho António Augusto Carvalho Monteiro, cujo despojo mortal entrou nele a 2 de Abril de 1922 transladado do anterior, onde entrara às 17 horas do dia 27 de Outubro de 1920[1].
Nascido em 27 de Novembro de 1848 segundo a sua certidão de baptismo em 1849 no Rio de Janeiro[2], capital do Brasil por decreto do marquês de Pombal, substituindo a anterior de São Salvador da Bahia, após uma vida bastante preenchida António Augusto Carvalho Monteiro veio a falecer na sua Quinta da Regaleira de Sintra, vítima de hemorragia cerebral, às 00:15 horas da noite de domingo para segunda-feira de 25 de Outubro de 1920, portanto, com a idade de 72 anos. No dia imediato, o Diário de Notícias (26.10.1920) anunciou na sua primeira página o falecimento do culto milionário e mecenas, dizendo que a causa da morte havia sido “[…] uma comoção […] de tal ordem […] que a ciência não conseguiu dominar, a despeito dos esforços do senhor Dr. (Francisco José de Jesus) Cambournac”.
Também o jornal O Século (26.10.1920), na sua primeira página, deu a notícia do falecimento do “abastado capitalista e proprietário” em Sintra, acompanhando o artigo com uma fotografia de Carvalho Monteiro, de longas barbas brancas e chapéu alto. Fazendo o elogio fúnebre, o articulista escreveu: “O sr. Carvalho Monteiro era extremamente económico, no que não dissesse respeito às suas colecções ou à protecção que dispensava à pobreza envergonhada e aos artistas que a ele recorriam”. O mesmo jornal informou ainda, na sua edição de 28.10.1020, quando fez a descrição do serviço fúnebre no dia anterior, que duas grandes coroas de crisântemos e malmequeres brancos foram depostas sobre a urna, uma da família e outra dos “antigos joalheiros da Coroa” da Casa Leitão & Irmão.
O funeral religioso do Dr. Carvalho Monteiro foi organizado pelo seu genro, D. Francisco de Assis Nazaré de Almeida, e no seu velório na Regaleira participaram, além dos familiares, os artífices que trabalharam na quinta, os empregados, os pobres da vila (acompanhando chorosos o seu benfeitor à última morada), os bombeiros voluntários de Sintra e da Amadora (também muito beneficiados por ele) e inúmeras personalidades da vida cultural e social do país. A urna foi coberta com a bandeira da Sociedade de Geografia de Lisboa, notícia atestada por Vasco Callixto[3]. Houve mesmo um comboio especial para os convidados, amigos e restante povo que quiseram acompanhar o cortejo fúnebre até ao Cemitério de Nossa Senhora dos Prazeres, que tendo partido do Rossio para Sintra repleto de rostos amigos entristecidos voltou ainda mais cheio para Lisboa no fim da manhã de 27.
Já Francisco Augusto Mendes Monteiro faleceu, devido a problemas de fígado, no seu Palácio da Rua do Alecrim, em Lisboa, em 1 de Novembro de 1890, tendo deixado a sua Quinta da Torre ou do Vadre de São Domingos de Benfica, a qual o padre Álvaro Proença não deixou de assinalar[4], como que apercebendo ou suspeitando da intenção oculta do proprietário: “Em meados do século XIX aparece-nos nas mãos do doutor Carvalho Monteiro, com um pórtico acastelado e rodeado por um muro cheio de ameias, tudo de gosto […] tresandando a pretensões”. Ainda cheguei a conhecer esta Quinta do Vadre e a sua torre neomedieval antes de serem demolidas. Ficavam nas traseiras do Instituto Militar dos Pupilos do Exército, à beira da antiga e já também desaparecida estação ferroviária de Cruz da Pedra.
Pai e filho repousam com a restante família no citado jazigo, edificado de acordo com o projecto de Luigi Manini em 1907, escolhido e aprovado por Carvalho Monteiro, mas que só seria concretizado nos inícios de 1922, não esquecendo o artista de insculpir a assinatura de Manini no lado esquerdo da entrada dianteira. Durante muitos anos, a donatária responsável pelo jazigo foi a 7.ª marquesa de Pombal, que conheci e entrevistei, Sr.ª D. Maria Nazaré Monteiro de Almeida Carvalho Daun e Lorena, informando-me que a chave que abre o jazigo abria igualmente as das portas do Palácio da Rua do Alecrim e do Palácio da Quinta da Regaleira, facto insólito carregado de significados escondidos.
Sendo a família Lorena de origem franco-helvética, veio a unir-se por via de núpcias com a família Carvalho e, depois, com a Carvalho Monteiro. Isto é atestado pela presença de dois jazigos subterrâneos neste cemitério que ostentam o brasão dos Carvalho, ou seja, os túmulos de D. Francisca Maria de Lorena, 3.ª marquesa de Pombal, nascida em 28 de Novembro de 1758 e falecida em 12 de Setembro de 1837, que se distinguiu pelas suas virtudes e extraordinária caridade com os pobres; e de D. Maria Francisca de Carvalho e Lorena, filha dos 4.os marqueses de Pombal, falecida em 23 de Fevereiro de 1870, com treze anos.
Parte da família Carvalho e Melo emigrou para o Brasil aquando da administração de Sebastião José de Carvalho e Melo, o 1.º marquês de Pombal, e até um pouco depois, já durante a regência de D. João VI, tendo tido papel determinante na História Brasileira dos séculos XVIII-XIX, donde se verem vários personagem distintos do mesmo ramo familiar à dianteira dos destinos dessa nossa Pátria-Gémea: durante o período regencial do imperador D. Pedro II, vê-se um José da Costa Carvalho (1842) participando permanentemente do governo trino do Brasil; vê-se ainda um contra-almirante Custódio de Melo à frente da revolta da Armada em 1891, juntamente com o almirante Mariz e Barros, contra a Assembleia Constituinte. Também se vê antes, em 1823, D. Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos, favorita do imperador D. Pedro I, como a principal opositora à política liberal do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva, este representando a facção jacobina e progressista e aquela, como os outros afins, favorável à facção católica e conservadora[5].
O ano do nascimento de António Augusto Carvalho Monteiro, 1848, correspondeu ao período da fase de pacificação e conciliação (1840-1856) do reinado de D. Pedro II, tendo vindo para Portugal (1859) em plena fase de apogeu do Império (1856-1870), portanto, antes da decadência do regime monárquico no Brasil (1870-1889)[6]. Em 1873, ele casou com D. Perpétua Augusta Pereira de Melo (1852-1913).
A escolha do Cemitério dos Prazeres para última morada da família Carvalho Monteiro, não foi por acaso e houve dois motivos para a mesma, um social e outro, talvez o principal, religioso, de expressão mítica e milagreira. Começando pelo primeiro motivo, direi que o Cemitério dos Prazeres foi construído em 1833 depois de em Junho desse ano uma terrível epidemia de cholera morbus (cólera mórbida) ter assolado Lisboa, causando milhares de mortos, o que obrigou as autoridades sanitárias ao estabelecimento de dois cemitérios (este o do Alto de São João, na zona oriental da cidade) e à proibição dos enterramentos nos espaços religiosos, como tradicionalmente se realizavam. A legislação do governo de Costa Cabral regulamentou essa interdição (leis da saúde de 1844) que levaria à revolta popular da Maria da Fonte ou Revolta do Minho[7], em Maio de 1846, sublevação que se propagou a todo o país desembocando na guerra civil, a Patuleia, durante oito meses, só terminando em 30 de Junho de 1847. Servindo o lado ocidental de Lisboa, onde se implantavam os bairros das residências aristocráticas, desde o primeiro momento o Cemitério dos Prazeres tornou-se o das famílias dominantes da cidade, e uma personalidade com o peso social de António Augusto Carvalho Monteiro não poderia ter outro lugar para última morada. Assim nasceu uma cidade dos mortos dentro da cidade dos vivos.
O segundo motivo da escolha, o religioso, é muito mais atractivo e inclusive explica o sentido do onomástico Prazeres, relacionado com a Fonte Santa que está entre os números 111-D e 13 na curva da Rua Coronel Ribeiro Viana, quase escondida entre os prédios modernos que modificaram por completo a paisagem. Esta fonte que deu nome ao lugar, Prazeres, é constituída por um espaldar liso de cor ocre, tendo na base inferior uma verga de mármore branco a toda a largura. Por debaixo desta verga fica o tanque, que ainda é o primitivo mas restaurado diversas vezes, dentro do qual se vê um bloco de pedra para descanso das bilhas, ainda com as marcas dos encaixes dos suportes de ferro. No espaldar, rematado por uma cruz, também ainda se vê, ao centro, uma pedra esculpida com uma nau cuja proa termina em cabeça de serpente. É uma pedra quinhentista colocada aqui em 1835, aquando das obras de restauro. A água que corre na fonte através de uma torneira metálica com mola já não é, porém, a da nascente que a alimentou e teve fama de curar enfermidades. A nascente, que parece ter secado devido às obras de construção dos edifícios nas proximidades, foi substituída pela água canalizada da EPAL.
Essa fonte anda ligada à lenda que reza ter aparecido a imagem da Senhora dos Prazeres sobre ela, muito antes de 1599, motivo para ter sido baptizada, bem como o sítio, com o nome de Fonte Santa, pelas grandes virtudes que a Virgem comunicou à água que ali corria e curava todas as enfermidades. O Senado da Câmara de Lisboa encarregou-se depois de mandar fazer a arca e o tanque, pondo na gárgula as Armas da cidade. Essa imagem de Nossa Senhora dos Prazeres foi depois colocada numa ermida construída para o efeito, mas que hoje já não existe. Permanece, sim, próxima dela a igreja quinhentista de Nossa Senhora do Paraíso e Senhor Jesus do Triunfo, epítetos alusivos à Ressurreição como derrota da Morte.
A ermida desaparecida estava dentro e deu o nome da Orago à Quinta dos Prazeres, na qual veio a talhar-se o actual cemitério. Era muito concorrida todos os domingos, principalmente no domingo e segunda-feira depois da oitava da Páscoa, pois todas as irmandades, clérigos e irmãos do Santíssimo da freguesia de Santos ali iam em procissão, de cruzes alçadas, cantar uma missa solene dentro dela. Estava situada um pouco acima da Fonte Santa, na actual Rua Coronel Ribeiro Viana e antes da Travessa dos Prazeres, onde hoje é o n.º 27.
A barca serpentária da Fonte Santa e o título Prazeres da Senhora, remetem para a conceição da felicidade post-mortem por um ritual hídrico ou lustral de águas santas, portadoras de propriedades minerais invulgares marcadas pela intensidade telúrica dos veios subterrâneos do lugar, que no entendimento simples popular eram sanadoras do corpo e da alma, das doenças corporais e morais[8].
Pois bem, tem-se nesta cidade dos mortos da freguesia de Campo de Ourique o jazigo monumental da família Carvalho Monteiro, feito de mármore fino de Carrara sobre o esquisso de Luigi Manini, garante a visibilidade grandiosa por estar na esquina da rua principal com a “praça pública” do Cemitério dos Prazeres. A composição assemelha-o a um catafalco-monumento mantendo a espetacularidade celebrativa e ganhando o carácter de permanência[9]. Manini encena a posse e a celebração através de uma composição simbológica de cariz cemiterial cuja interpretação mais uma vez dispõe o pensamento religioso do encomendante, Carvalho Monteiro, conciliando o confessional e o racional católico, neste último revelando a tendência gnóstico-sebástica onde os símbolos cemiteriais estão adaptados ao conceito de ressurreição e advento. A planta do jazigo configura um triângulo em lança, quase sugerindo a forma de uma borboleta saindo do casulo, este aqui o fúnebre transmitindo a ideia da alma alada e subtil ressuscitando para a vida eterna, motivo central da fé católica que é a de Cristo Ressuscitado. Assemelhando-se a uma “barca vogando sobre as águas da eternidade” (a mesma de São Pedro que é a Igreja), o conjunto configura um templo funerário, espécie de capela do culto ao além-vida, como se completasse aquela outra da Quinta da Regaleira, essa destinada ao alimento das almas no esforço dos corpos, e esta ao repouso dos corpos na evolação das almas. Ambas exprimindo os três Mundos de Causas, Leis e Efeitos pelos três patamares da sua composição arquitectónica:
Com efeito, no todo o jazigo parece um templo de imortais, uma capela só para almas que os corpos ficam no repouso eterno, composto por três corpos: Arcanjo Custódio, o Guardião das Almas de espada em guarda a assinalar a função psicopompa ou medianeira do próprio São Miguel sentado no Trono da Glória, assim representando o Céu, o Supramundo; o jazigo superior, com um pequeno altar ao fundo, onde se vê sobre a aldraba da porta a borboleta sobre a ampulheta, representação da transmigração da alma humana, do evolar da Terra, do Mundo; e o jazigo inferior, que é a cripta, o lugar subterrâneo dos imortais ou Submundo.
No topo deste monumento está a figura augusta do Anjo da Guarda desta família (o seu Genius Loci), o Arcanjo Custódio – o mesmo da Confraria de São Miguel das Almas de Lagos da Beira, terra natal do progenitor do dr. Carvalho Monteiro – de asas abertas e espada em guarda, erecta, encostada ao ombro direito, com as chaves na outra mão, sentado no Trono da Glória, expressivo da Merkabah, sobre o dossel, postura expressiva do domínio (sentado no trono) e da revelação (sobre o dossel), mas também da protecção que é o que significa o dossel ou pálio. Este assenta sobre quatro colunas dóricas e tem ao centro a urna funerária igualmente figurativa da Tebah, isto é, da Arca da Aliança de Deus com o Homem, mas aqui na expressão póstuma de aliança da alma do crente com Deus Único e Verdadeiro, o mesmo que Se revelou a Moisés no Monte Sinai através de São Miguel ou Mikael (“O Anjo no qual é Deus”, em hebreu, Maleak-Ha-Elohim)[10], já antes tendo sido o Guardião das portas do Paraíso, de onde foram expulsos Adão e Eva para darem a progénie humana, segundo as escrituras bíblicas. Mas aqui é o Guardião zeloso com as chaves da entrada no Céu, as do retorno eterno ao Éden, ao Paraíso como Parnaso de além-túmulo, a Jerusalém Celeste. Quatro tocheiros em volta da urna ao centro, assentes sobre colunas coríntias (estilo arquitectónico tradicionalmente preferido para o tipo de monumentos funerários), dão-na como urna ardente, assinalando a presença da alma imortal e assegurando o perdurar da luz de vigília, no aguardo da ressurreição final das almas familiares (manes) de Carvalho Monteiro. A toda a volta do pálio estende-se um listel decorado com flores de pétalas abertas em cruz, alegóricas da “fina-flor” da alma cristã que corporalmente animou aqueles cuja memória jacente é assinalada na própria urna.
Essa sinalética igualmente evoca São Miguel Arcanjo (Qui ust Deus, em latim, “Quem é Deus”) como padroeiro da antiga Ordem dos Templários no País e a sua aclamação como Anjo Custódio ou da Guarda – que é o seu significado literal neste jazigo dos Prazeres, repito – de Portugal e da Igreja, sendo igualmente o Orago da Sinagoga (Mikael) e da Mesquita (Mirrail), portanto, com a dupla função psicopompa de guardião e guia dos crentes e da “Terra da Luz” (Luxcitânia). Sobre isto, diz Pinharanda Gomes[11]:
“Um dos mais ricos documentos literários e teológicos do século XVII é o Tratado do Anjo da Guarda, do jesuíta António de Vasconcelos. Aí, a par de uma catequese angiológica, o autor documenta a natureza e a evolução do culto em Portugal, demonstrando a sua antiguidade e dignidade. Com efeito, embora a crença no Anjo da Guarda venha de longe, pelo menos dos Salmos, a festa desta invocação só aparece em Espanha no século XVII, sendo aprovada (1608) por Paulo V. Festa imperial da Casa de Áustria, tornou-se extensiva a toda a Igreja (1670), por decisão de Clemente X, e a festa ocorria inicialmente em 29 de Setembro e 8 de Maio (no Ocidente e no Oriente, respectivamente).
“Regressando ao plano do nosso país, esta fé e esta liturgia desenvolvem-se primordialmente em relação ao Anjo Custódio de Portugal, cujo culto se nos evidencia em duas fases: o início, até à decadência, e a revivescência, mediante as aparições de Fátima.
“Segundo António de Vasconcelos, na conquista de Santarém, D. Afonso Henriques invocou S. Miguel Arcanjo, aí tendo instituído a Ordem de S. Miguel da Ala. A insígnia desta Ordem era uma asa vermelha em campo branco, cercado a ouro. A devoção ao Anjo cresceu de tal modo que D. Manuel I o invocava como “anjo nosso guardador”, tendo-se antecipado ao movimento do culto em Espanha. De facto, D. Manuel solicitou (6-6-1504) de Leão X a instituição da festa do Anjo Custódio de Portugal, a celebrar no terceiro domingo de Julho, dando aso a uma tradição que ainda se mantém em várias localidades do país. Anteriormente (1480), ao fundir num só vários ofícios litúrgicos, o prior de Odivelas, Fr. António Castanheira, já encontrara o ofício do Anjo Custódio, pelo que o gesto de D. Manuel corresponde a um sancionamento de uma tendência cultual anterior, depois incorporada nas Ordenações Manuelinas (Liv. I, tit. 78), onde se determinam os actos da festa: procissão solene, missa e ofício particular em Lisboa e noutras terras. O estatuto passaria para as Ordenações Filipinas (Liv. I, tit. 66, & 48), mas antes alvarás foram expedidos por D. Manuel a várias câmaras do país para instituírem a festa, que obteve maior brilho nas dioceses de Braga, Coimbra e Évora, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. A partir de então, o culto decaiu, mas por decreto (28-6-1952) da Sagrada Congregação dos Ritos, a festa foi restaurada em todas as dioceses portuguesas (em Braga continuou a fazer-se em 9 de Julho), e fixada em 21 do mesmo mês. O decreto de 27-7-1952 trasladou-a para 10 de Junho e fixou o novo próprio de Portugal.”
As paredes laterais sob o dossel estão forradas por três lápides com inscrições evocativas das memórias jacentes de Francisco Augusto Mendes Monteiro e sua esposa, Teresa Carolina de Carvalho, e também de um seu filho falecido. Pelo interesse biográfico que importam ao conhecimento desta família cuja maioria dos dados cronológicos hoje são praticamente desconhecidos dos historiadores, transcreverei essas inscrições lapidares cujas letras foram pintadas a negro originalmente mas que hoje estão muito deterioradas, quase apagadas.
Primeira lápide
Ao lado dos restos mortais do filho descansam também aqui os da sua extremosa mãe D. Teresa Carolina de Carvalho Monteiro nascida no Rio de Janeiro a 1 de Outubro de 1810 e falecida em Coimbra a 2 de Abril de 1871 com 60 anos, 6 meses e 29 dias de idade. Foi na vida filha querida, esposa a mais dedicada, mãe extremosíssima e protectora dos pobres. A sua alma gozará de certo da bem-aventurança celeste, assim o crêem o seu desolado esposo Francisco Augusto Mendes Monteiro e os seus consternados filhos António Augusto de Carvalho Monteiro e José António de Carvalho Monteiro que à memória da finada tributam uma eterna saudade.
Segunda lápide
Ao lado dos restos mortais da esposa e mãe descansam também os do seu desvelado marido e pai Francisco Augusto Mendes Monteiro nascido em Lagos da Beira, Concelho de Oliveira do Hospital, em 9 de Março de 1816 e falecido em sua casa em Lisboa na Rua do Alecrim, Freguesia da Encarnação, no dia 1 de Novembro de 1890 contando 74 anos, 8 meses e 8 dias. Um português modelar, exemplar chefe de família, marido dedicado e pai extremoso praticando o bem esforçado à sua pátria. Para aqui foram os seus restos mandados trasladar pelo seu saudoso filho António Augusto de Carvalho Monteiro. Que eles descansem em paz juntos dos entes queridos que na vida teve.
Terceira lápide
Francisco Augusto Mendes Monteiro e a sua esposa D. Theresa Carolina, mandaram erigir este monumento de indelével saudade à memória do seu querido filho Francisco, que nasceu no Rio de Janeiro aos 23 de Dezembro de 1847, e faleceu na Vila da Figueira aos 5 de Outubro de 1860, com 12 anos, 9 meses e 13 dias de idade. Foram trasladadas as suas cinzas do Cemitério d´Moutela Vila para este jazigo em 13 de Outubro de 1868. Sob a guarda do R. P. Manoel Marouf Per. Ribeiro da cidade de Coimbra. Olatium obi in aeternum pax filli domi Domine.
Nos lados da porta frontal do jazigo, em guisa de “figuras de convite” cemiteriais, apresentam-se as esculturas de duas virtudes teologais: à esquerda (de quem olha de frente) a Fé, carregando a Cruz, e à direita a Esperança, portando o Cálice, esta com a cabeça descoberta e aquela coberta, por ser a Fé algo íntimo, feita só daquilo que o crente sabe, e a Esperança a sua suprema e derradeira afirmação.
A virtude (virtus, em latim) é uma qualidade moral particular, como a inclinação natural para praticar o bem, e o conjunto virtuoso expressa todas as qualidades essenciais que constituem a natureza do chamado homem de bem, quer individualmente, quer colectivamente. Como disse Aristóteles, as virtudes são a disposição adquirida, pelo seu cultivo permanente, para praticar o bem, o bom e o belo, aperfeiçoando-se e desenvolvendo-se cada vez mais com o hábito. As virtudes ou skandhas, em sânscrito, são as normas, regras ou râgas como cimento moral da vida e em particular da ciência sacerdotal. Sem elas, o distinto sagrado do sacerdócio não poderá distinguir-se do vulgar profano e ordinário, como tampouco a sociedade humana se distinguirá do bruto irracional. Há dois grupos de virtudes: as virtudes teologais, cuja origem e objecto são o próprio Deus Espírito Santo revelado como Fé (Fides), Esperança (Spes) e Caridade (Charitas), ausente neste jazigo mas que poderá assinalar-se no Arcanjo caridoso protegendo a urna. E as virtudes cardeais, consideradas as principais dentre as virtudes humanas: Justiça (Iustitia), Prudência (Sapientia), Fortaleza (Fortitudo), Temperança (Temperantia), e mais a Obediência (Hobedientia) que, no caso de António Carvalho Monteiro, seria tanto à Igreja como à Coroa, ambas seculares. Disso conclui-se que até o bem-fazer não é feito sem ordem nem regra, e sim com a discriminação prudente que cada caso exige.
Como há quem veja, a meu ver imprudentemente, nessas esculturas do jazigo algum simbolismo esotérico de carácter maçónico ou afim[12], por bem adiantarei que a noção de virtude na Maçonaria não é exactamente igual à do Catolicismo. Sendo qualidades positivas próprias do homem, as virtudes são “forças” ou skandhas, que integradas ou assimiladas por ele entram na formação superior ou elevada do seu carácter. Como já disse, chama-se assim todos os hábitos constantes que levam o homem para a prática de operações honestas, tendentes para o bem comum. Podem ser classificadas como virtudes morais e virtudes mentais. As que são aplicadas para o bem honesto são morais, e as que são aplicadas para a verdade são mentais ou intelectuais. Aquelas são operativas, estas são especulativas, cuidam da cultura, enquanto as outras cuidam do carácter. Por exemplo, a caridade é uma virtude moral, enquanto a sabedoria é uma virtude mental. Como também já disse, a formação das virtudes acontece pela repetição de uma série de actos da mesma espécie, cujos exercício constante e perseverante os converte em hábitos. Por esta razão, a virtude é uma conquista pessoal em que não há interferência hereditária. Para o comportamento pessoal se transformar numa virtude, implica essencialmente duas condições: o conhecimento do dever a ser cumprido, e a disposição firme e perseverante em cumpri-lo. Conceitualmente, para a moral da Maçonaria a virtude é disposição habitual para a prática do bem e do que é justo, por isso é tida como prova da perfeição que deve caracterizar todo o maçom, culto e moral, mesmo não participando da profissão de crente e ficando-se só pelo exercício humanitário.
Desde Platão e Aristóteles que a Filosofia reúne toda a Moral em quatro virtudes cardeais ou principais, em torno das quais todas as outras gravitam ou dependem, e que são: Justiça, Prudência, Fortaleza, Temperança, as três últimas sendo apenas qualidades de quem as possui e não virtudes relacionadas com o próximo, porque só a Justiça é uma virtude útil aos outros, mas não bastando ser justo porque também é preciso ser benfazejo. A Maçonaria reconhece e incentiva a prática das quatro virtudes cardeais, além das três virtudes teologais, representando-as por borlas pendentes nos quatro cantos da Loja.
Ao contrário das virtudes cardeais, adquiridas pelo hábito constante, as virtudes teologais não são adquiridas pelo esforço do homem. São as virtudes ensinadas na teologia de São Paulo e é por isso que se chamam teologais (prevenientes de Deus), as mesmas Fé, Esperança, Caridade. Através delas o homem poderá superar-se a si mesmo no intento de alcançar a suprema perfeição que o identifique ou iguale ao Divino. Para a Teologia, a Fé representa a expressão da crença esclarecida como acto lógico e fundamental da razão humana; a Esperança e a Caridade ou Amor andam juntas e representam o sentimento amorável para com o próximo, que se deve a uma disposição muito viva da alma, seja nas concepções filosóficas e morais, seja nos ideais religiosos e espirituais. Para a Moral, distinguem-se os deveres da Justiça e os deveres da Caridade: os primeiros consistem em respeitar os direitos de outrem; os segundos consistem em socorrer o próximo por todos os meios ao dispor. Posto tudo, concluiu-se que o mal é a antítese da virtude. E é ao mal do fanatismo, da ignorância e da superstição que, afinal, todo o maçom verdadeiro deve combater sempre e em toda a parte com tolerância, prudência e sabedoria, seja por motivo religioso ou, o mais comum como laico e até ateu, só pelo bem-fazer à sociedade geral[13].
De ambos os lados da porta do jazigo estão duas tochas tombadas sobre papoilas dormideiras (envolventes do edifício). Representam o finis vitae, o fim da vida, anunciando o período de dormição, o sono profundo do justo que dorme na paz eterna. Adiante do óculo por cima da entrada, configura-se uma coroa funerária entrecruzada por uma cruz florlisada tíbia em esplendor. É sinalética indicativa do próprio como jazigo desta família que morreu crente na Luz e Triunfo da Cruz, vencendo a hora fatal da morte com a ressurreição em Cristo, motivo assinalado na cabeça do Querubim mais acima.
A aldraba da porta é decorada pelos motivos, tudo em ferro forjado, das papoilas dormideiras nos lados de um ampulheta em que assenta uma borboleta de asas abertas com um crânio no dorso, o que levou Manuel Joaquim Gandra a chamá-la de Esfinge da Morte. Não é só pelo facto de Carvalho Monteiro ter sido um grande borboletário que ela está representada aqui[14], mas sobretudo pelo seu significado transcendente afim ao simbolismo cemiterial. Este insecto existe realmente e chama-se acherontia atropos, mais conhecido como “borboleta-caveira”, por apresentar no seu dorso uma figura semelhante ao crânio humano. É uma borboleta nocturna (nisto tornando-se afim à associação simbólica da noite com a morte) que se alimenta, no estado adulto, de certas flores como o jasmim, a folha de tabaco e a folha de batata. Nas crenças populares, a presença da “borboleta-caveira” é sinal de notícias nefastas ou da morte de alguém, mas no simbolismo tradicional enuncia a transmigração da alma, acompanhando os ciclos da sua evolução, marcada pela ampulheta de Cronos ou Saturno, motivo por que a Antiguidade greco-romana dava à alma que deixava o corpo morto a forma de uma borboleta, e assim as borboletas passaram a ter o sentido de “espíritos viajantes”. Nos afrescos de Pompeia, Psique é representada como uma menina alada semelhante a uma borboleta. Um outro aspecto do seu simbolismo fundamenta-se nas suas metamorfoses: a crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser e a borboleta que sai dele torna-se símbolo de ressurreição, ou por outra, da saída do túmulo.
Na traseira, descendo poucos degraus, penetra-se na cripta, onde jazem os despojos mortais de alguns membros da família Carvalho Monteiro. Por cima da porta abre-se um óculo com cruz florlisada de ferro, e um pouco abaixo, dos lados, duas cabeças de Anjo com as asas fechadas, em oposição aos mochos laterais de asas abertas, espécie de vigias ladeando a entrada. Na cimalha desta estão três papoilas entrelaçadas por uma fita, e mais acima uma caveira sobre duas tíbias cruzadas, sinal da presença da morte. As três papoilas dormideiras representam o tríplice aspecto do Homem, como o seu Espírito subido, a sua Alma evolada e o seu Corpo falecido, além de representar a terra onde se operam as transmutações vitais: nascimento, morte, esquecimento e reaparecimento, segundo o simbolismo eleusino condizendo com a frase das Escrituras Sagradas: “da terra vieste e à terra voltarás” (Génese, 2:7; Eclesiastes, 3:20). De modo que a papoila dormideira oferecida a Deméter representa a força do sono e do esquecimento que toma os homens depois da morte e antes do renascimento. O mocho faz as vezes de guardião do Hades, o mundo subterrâneo onde volvem as almas dos vivos, e nessa função cemiterial está de asas abertas, vigilante, enquanto acima os Anjos estão de asas fechadas, assinalando que a alma volveu à eternidade, não está presente na matéria por o seu ciclo de vida corporal ter findado. Consequentemente, o Sol, o Espírito, representado pelo Anjo, está recolhido, e fica só a Lua, a Matéria, representada pelo mocho que é a ave de augúrio, como tal aquela que na noite da morte augura o dia da vida que será o da ressurreição final.
NOTAS
[1] Esta e outras informações afins constam dos registos de óbito e de entrada em jazigo do citado e seus familiares, as quais me foram cedidas pela Administração do Cemitério dos Prazeres.
[2] Vários autores dão com data de nascimento de Carvalho Monteiro o ano de 1850, induzidos no erro por Christopher C. Lund em O manuscrito caligráfico, único, de Os Lusíadas, feito por Manuel Nunes Godinho para o seu patrão António Augusto de Carvalho Monteiro. Leituras de Camões, São Paulo, 1982. Também o “de” Carvalho está a mais, ele não consta no registo de baptismo e só António Augusto Carvalho Monteiro.
[3] Vasco Callixto, As terras e os homens: onde nasceram, viveram e morreram. Lisboa: Universitária, 1999.
[4] Padre Álvaro Proença, Benfica através dos tempos. Depositária União Gráfica – Lisboa, 1964.
[5] João Ferreira Durão, Pequena História da Maçonaria no Brasil (1720-1882). Madras Editora Ltda., São Paulo, 2008.
[6] Vitor Manuel Adrião, História Secreta do Brasil (Flos Sanctorum Brasiliae). Madras Editora Ltda., São Paulo, 2004.
[7] A verdadeira Maria da Fonte, na Póvoa de Lanhoso, era a natural da terra chamada Maria Luísa Balaio, proprietária de uma hospedaria, “Maria da Fonte”, onde acorriam as mulheres que tomaram parte activa na revolta feminina que incendiou o país. Mas como a revolta eclodiu em Fontarcada, no Minho, o povo daqui identifica-a como Maria Angélica de Simães, ou uma outra mulher de nome Maria. Creio que Maria da Fonte são todas as Marias e demais mulheres que encabeçaram a revolta popular contra o governo liberal e cartista de António Bernardo da Costa Cabral (1803-1889), o famigerado “mata-frades” por ter sido quem assinou o decreto-lei de extinção das Ordens religiosas em Portugal.
[8] Vitor Manuel Adrião, Guia de Lisboa Insólita e Secreta. Editorial Jonglez, Versailles, Abril de 2010.
[9] Paula André, Modos de pensar e construir os cemitérios públicos oitocentistas em Lisboa: o caso do Cemitério dos Prazeres. Revista “História de Arte”, n.º 2, Lisboa, 2006.
[10] Esta última observação recorda igualmente as palavras adaptadas do texto de Isaías, 6:3, cantadas no Sanctus precedendo a Comunhão (Eucaristia) na liturgia romana: Benedictus qui venit in nomine Domine, “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Elas são aplicadas ao Cristo, cujos predicados os gnósticos cristãos e posteriormente os cabalistas igualmente cristãos revelavam idênticos aos do Arcanjo Mikael, compreendendo a relação existente entre o Messias e a Shekinah ou “Revelação Divina”. O Cristo é também designado por “Príncipe da Pax”, sendo, ao mesmo tempo, o “Juiz dos vivos e dos mortos”.
[11] J. Pinharanda Gomes, Povo e Religião no Termo de Loures. Paróquia de Santo António dos Cavaleiros, Loures, 1982.
[12] Pedro de Carvalho Daun e Lorena, Vida e Obra de Carvalho Monteiro na Métrica e Simbólica – Jazigo da Família Carvalho Monteiro. Dissertação apresentada para obtenção de grau de Mestre em Reabilitação da Arquitectura e Núcleos Urbanos. Universidade Técnica de Lisboa – Faculdade de Arquitectura de Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004.
[13] Vitor Manuel Adrião, Guide de Milan Insolite et Secrète. Editions Jonglez, Versailles, 2012.
[14] Nuno Rodrigues, Descrição e análise do jazigo da família Carvalho Monteiro, no Cemitério dos Prazeres. Revista “Lusíada: Arqueologia, História da Arte e Património”, série I, números 2-4, 2004, Universidade Lusíada, Lisboa.
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