O Sagrado e Secreto do Jazigo da Família Carvalho Monteiro – Por Vitor Manuel Adrião Domingo, Jan 15 2017 

O jazigo monumental da família Carvalho Monteiro encontra-se no Cemitério dos Prazeres, Lisboa, com o número 1382 na rua 11, lado esquerdo. É o segundo jazigo desta família, cuja responsabilidade da sua manutenção foi confiada em 1863 por Francisco Augusto Mendes Monteiro ao seu filho António Augusto Carvalho Monteiro, cujo despojo mortal entrou nele a 2 de Abril de 1922 transladado do anterior, onde entrara às 17 horas do dia 27 de Outubro de 1920[1].

Nascido em 27 de Novembro de 1848 segundo a sua certidão de baptismo em 1849 no Rio de Janeiro[2], capital do Brasil por decreto do marquês de Pombal, substituindo a anterior de São Salvador da Bahia, após uma vida bastante preenchida António Augusto Carvalho Monteiro veio a falecer na sua Quinta da Regaleira de Sintra, vítima de hemorragia cerebral, às 00:15 horas da noite de domingo para segunda-feira de 25 de Outubro de 1920, portanto, com a idade de 72 anos. No dia imediato, o Diário de Notícias (26.10.1920) anunciou na sua primeira página o falecimento do culto milionário e mecenas, dizendo que a causa da morte havia sido “[…] uma comoção […] de tal ordem […] que a ciência não conseguiu dominar, a despeito dos esforços do senhor Dr. (Francisco José de Jesus) Cambournac”.

Também o jornal O Século (26.10.1920), na sua primeira página, deu a notícia do falecimento do “abastado capitalista e proprietário” em Sintra, acompanhando o artigo com uma fotografia de Carvalho Monteiro, de longas barbas brancas e chapéu alto. Fazendo o elogio fúnebre, o articulista escreveu: “O sr. Carvalho Monteiro era extremamente económico, no que não dissesse respeito às suas colecções ou à protecção que dispensava à pobreza envergonhada e aos artistas que a ele recorriam”. O mesmo jornal informou ainda, na sua edição de 28.10.1020, quando fez a descrição do serviço fúnebre no dia anterior, que duas grandes coroas de crisântemos e malmequeres brancos foram depostas sobre a urna, uma da família e outra dos “antigos joalheiros da Coroa” da Casa Leitão & Irmão.

O funeral religioso do Dr. Carvalho Monteiro foi organizado pelo seu genro, D. Francisco de Assis Nazaré de Almeida, e no seu velório na Regaleira participaram, além dos familiares, os artífices que trabalharam na quinta, os empregados, os pobres da vila (acompanhando chorosos o seu benfeitor à última morada), os bombeiros voluntários de Sintra e da Amadora (também muito beneficiados por ele) e inúmeras personalidades da vida cultural e social do país. A urna foi coberta com a bandeira da Sociedade de Geografia de Lisboa, notícia atestada por Vasco Callixto[3]. Houve mesmo um comboio especial para os convidados, amigos e restante povo que quiseram acompanhar o cortejo fúnebre até ao Cemitério de Nossa Senhora dos Prazeres, que tendo partido do Rossio para Sintra repleto de rostos amigos entristecidos voltou ainda mais cheio para Lisboa no fim da manhã de 27.

Notícia das exéquias fúnebres de António Augusto Carvalho Monteiro publicada na "Illustração Portuguesa" nos fins de Outubro de 1920

Notícia das exéquias fúnebres de António Augusto Carvalho Monteiro publicada na “Illustração Portuguesa” nos fins de Outubro de 1920

Já Francisco Augusto Mendes Monteiro faleceu, devido a problemas de fígado, no seu Palácio da Rua do Alecrim, em Lisboa, em 1 de Novembro de 1890, tendo deixado a sua Quinta da Torre ou do Vadre de São Domingos de Benfica, a qual o padre Álvaro Proença não deixou de assinalar[4], como que apercebendo ou suspeitando da intenção oculta do proprietário: “Em meados do século XIX aparece-nos nas mãos do doutor Carvalho Monteiro, com um pórtico acastelado e rodeado por um muro cheio de ameias, tudo de gosto […] tresandando a pretensões”. Ainda cheguei a conhecer esta Quinta do Vadre e a sua torre neomedieval antes de serem demolidas. Ficavam nas traseiras do Instituto Militar dos Pupilos do Exército, à beira da antiga e já também desaparecida estação ferroviária de Cruz da Pedra.

Pai e filho repousam com a restante família no citado jazigo, edificado de acordo com o projecto de Luigi Manini em 1907, escolhido e aprovado por Carvalho Monteiro, mas que só seria concretizado nos inícios de 1922, não esquecendo o artista de insculpir a assinatura de Manini no lado esquerdo da entrada dianteira. Durante muitos anos, a donatária responsável pelo jazigo foi a 7.ª marquesa de Pombal, que conheci e entrevistei, Sr.ª D. Maria Nazaré Monteiro de Almeida Carvalho Daun e Lorena, informando-me que a chave que abre o jazigo abria igualmente as das portas do Palácio da Rua do Alecrim e do Palácio da Quinta da Regaleira, facto insólito carregado de significados escondidos.

Esquisso do jazigo da Família Carvalho Monteiro feito por Luigi Manini

Planta do Jazigo da Família Carvalho Monteiro gizado por Luigi Manini

Sendo a família Lorena de origem franco-helvética, veio a unir-se por via de núpcias com a família Carvalho e, depois, com a Carvalho Monteiro. Isto é atestado pela presença de dois jazigos subterrâneos neste cemitério que ostentam o brasão dos Carvalho, ou seja, os túmulos de D. Francisca Maria de Lorena, 3.ª marquesa de Pombal, nascida em 28 de Novembro de 1758 e falecida em 12 de Setembro de 1837, que se distinguiu pelas suas virtudes e extraordinária caridade com os pobres; e de D. Maria Francisca de Carvalho e Lorena, filha dos 4.os marqueses de Pombal, falecida em 23 de Fevereiro de 1870, com treze anos.

Parte da família Carvalho e Melo emigrou para o Brasil aquando da administração de Sebastião José de Carvalho e Melo, o 1.º marquês de Pombal, e até um pouco depois, já durante a regência de D. João VI, tendo tido papel determinante na História Brasileira dos séculos XVIII-XIX, donde se verem vários personagem distintos do mesmo ramo familiar à dianteira dos destinos dessa nossa Pátria-Gémea: durante o período regencial do imperador D. Pedro II, vê-se um José da Costa Carvalho (1842) participando permanentemente do governo trino do Brasil; vê-se ainda um contra-almirante Custódio de Melo à frente da revolta da Armada em 1891, juntamente com o almirante Mariz e Barros, contra a Assembleia Constituinte. Também se vê antes, em 1823, D. Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos, favorita do imperador D. Pedro I, como a principal opositora à política liberal do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva, este representando a facção jacobina e progressista e aquela, como os outros afins, favorável à facção católica e conservadora[5].

D. Maria Nazaré Monteiro de Almeida Carvalho Daun e Lorena, 7.ª marquesa de Pombal, neta do dr. Carvalho Monteiro em entrevista a Vitor Manuel Adrião

D. Maria Nazaré Monteiro de Almeida Carvalho Daun e Lorena, 7.ª marquesa de Pombal, neta do dr. Carvalho Monteiro em entrevista a Vitor Manuel Adrião

O ano do nascimento de António Augusto Carvalho Monteiro, 1848, correspondeu ao período da fase de pacificação e conciliação (1840-1856) do reinado de D. Pedro II, tendo vindo para Portugal (1859) em plena fase de apogeu do Império (1856-1870), portanto, antes da decadência do regime monárquico no Brasil (1870-1889)[6]. Em 1873, ele casou com D. Perpétua Augusta Pereira de Melo (1852-1913).

A escolha do Cemitério dos Prazeres para última morada da família Carvalho Monteiro, não foi por acaso e houve dois motivos para a mesma, um social e outro, talvez o principal, religioso, de expressão mítica e milagreira. Começando pelo primeiro motivo, direi que o Cemitério dos Prazeres foi construído em 1833 depois de em Junho desse ano uma terrível epidemia de cholera morbus (cólera mórbida) ter assolado Lisboa, causando milhares de mortos, o que obrigou as autoridades sanitárias ao estabelecimento de dois cemitérios (este o do Alto de São João, na zona oriental da cidade) e à proibição dos enterramentos nos espaços religiosos, como tradicionalmente se realizavam. A legislação do governo de Costa Cabral regulamentou essa interdição (leis da saúde de 1844) que levaria à revolta popular da Maria da Fonte ou Revolta do Minho[7], em Maio de 1846, sublevação que se propagou a todo o país desembocando na guerra civil, a Patuleia, durante oito meses, só terminando em 30 de Junho de 1847. Servindo o lado ocidental de Lisboa, onde se implantavam os bairros das residências aristocráticas, desde o primeiro momento o Cemitério dos Prazeres tornou-se o das famílias dominantes da cidade, e uma personalidade com o peso social de António Augusto Carvalho Monteiro não poderia ter outro lugar para última morada. Assim nasceu uma cidade dos mortos dentro da cidade dos vivos.

O segundo motivo da escolha, o religioso, é muito mais atractivo e inclusive explica o sentido do onomástico Prazeres, relacionado com a Fonte Santa que está entre os números 111-D e 13 na curva da Rua Coronel Ribeiro Viana, quase escondida entre os prédios modernos que modificaram por completo a paisagem. Esta fonte que deu nome ao lugar, Prazeres, é constituída por um espaldar liso de cor ocre, tendo na base inferior uma verga de mármore branco a toda a largura. Por debaixo desta verga fica o tanque, que ainda é o primitivo mas restaurado diversas vezes, dentro do qual se vê um bloco de pedra para descanso das bilhas, ainda com as marcas dos encaixes dos suportes de ferro. No espaldar, rematado por uma cruz, também ainda se vê, ao centro, uma pedra esculpida com uma nau cuja proa termina em cabeça de serpente. É uma pedra quinhentista colocada aqui em 1835, aquando das obras de restauro. A água que corre na fonte através de uma torneira metálica com mola já não é, porém, a da nascente que a alimentou e teve fama de curar enfermidades. A nascente, que parece ter secado devido às obras de construção dos edifícios nas proximidades, foi substituída pela água canalizada da EPAL.

Essa fonte anda ligada à lenda que reza ter aparecido a imagem da Senhora dos Prazeres sobre ela, muito antes de 1599, motivo para ter sido baptizada, bem como o sítio, com o nome de Fonte Santa, pelas grandes virtudes que a Virgem comunicou à água que ali corria e curava todas as enfermidades. O Senado da Câmara de Lisboa encarregou-se depois de mandar fazer a arca e o tanque, pondo na gárgula as Armas da cidade. Essa imagem de Nossa Senhora dos Prazeres foi depois colocada numa ermida construída para o efeito, mas que hoje já não existe. Permanece, sim, próxima dela a igreja quinhentista de Nossa Senhora do Paraíso e Senhor Jesus do Triunfo, epítetos alusivos à Ressurreição como derrota da Morte.

A ermida desaparecida estava dentro e deu o nome da Orago à Quinta dos Prazeres, na qual veio a talhar-se o actual cemitério. Era muito concorrida todos os domingos, principalmente no domingo e segunda-feira depois da oitava da Páscoa, pois todas as irmandades, clérigos e irmãos do Santíssimo da freguesia de Santos ali iam em procissão, de cruzes alçadas, cantar uma missa solene dentro dela. Estava situada um pouco acima da Fonte Santa, na actual Rua Coronel Ribeiro Viana e antes da Travessa dos Prazeres, onde hoje é o n.º 27.

A barca serpentária da Fonte Santa e o título Prazeres da Senhora, remetem para a conceição da felicidade post-mortem por um ritual hídrico ou lustral de águas santas, portadoras de propriedades minerais invulgares marcadas pela intensidade telúrica dos veios subterrâneos do lugar, que no entendimento simples popular eram sanadoras do corpo e da alma, das doenças corporais e morais[8].

Fonte Santa dos Prazeres

Fonte Santa de Nossa Senhora dos Prazeres

Pois bem, tem-se nesta cidade dos mortos da freguesia de Campo de Ourique o jazigo monumental da família Carvalho Monteiro, feito de mármore fino de Carrara sobre o esquisso de Luigi Manini, garante a visibilidade grandiosa por estar na esquina da rua principal com a “praça pública” do Cemitério dos Prazeres. A composição assemelha-o a um catafalco-monumento mantendo a espetacularidade celebrativa e ganhando o carácter de permanência[9]. Manini encena a posse e a celebração através de uma composição simbológica de cariz cemiterial cuja interpretação mais uma vez dispõe o pensamento religioso do encomendante, Carvalho Monteiro, conciliando o confessional e o racional católico, neste último revelando a tendência gnóstico-sebástica onde os símbolos cemiteriais estão adaptados ao conceito de ressurreição e advento. A planta do jazigo configura um triângulo em lança, quase sugerindo a forma de uma borboleta saindo do casulo, este aqui o fúnebre transmitindo a ideia da alma alada e subtil ressuscitando para a vida eterna, motivo central da fé católica que é a de Cristo Ressuscitado. Assemelhando-se a uma “barca vogando sobre as águas da eternidade” (a mesma de São Pedro que é a Igreja), o conjunto configura um templo funerário, espécie de capela do culto ao além-vida, como se completasse aquela outra da Quinta da Regaleira, essa destinada ao alimento das almas no esforço dos corpos, e esta ao repouso dos corpos na evolação das almas. Ambas exprimindo os três Mundos de Causas, Leis e Efeitos pelos três patamares da sua composição arquitectónica:

Com efeito, no todo o jazigo parece um templo de imortais, uma capela só para almas que os corpos ficam no repouso eterno, composto por três corpos: Arcanjo Custódio, o Guardião das Almas de espada em guarda a assinalar a função psicopompa ou medianeira do próprio São Miguel sentado no Trono da Glória, assim representando o Céu, o Supramundo; o jazigo superior, com um pequeno altar ao fundo, onde se vê sobre a aldraba da porta a borboleta sobre a ampulheta, representação da transmigração da alma humana, do evolar da Terra, do Mundo; e o jazigo inferior, que é a cripta, o lugar subterrâneo dos imortais ou Submundo.

Dianteira do Jazigo da Família Carvalho Monteiro

Dianteira do Jazigo da Família Carvalho Monteiro

No topo deste monumento está a figura augusta do Anjo da Guarda desta família (o seu Genius Loci), o Arcanjo Custódio – o mesmo da Confraria de São Miguel das Almas de Lagos da Beira, terra natal do progenitor do dr. Carvalho Monteiro – de asas abertas e espada em guarda, erecta, encostada ao ombro direito, com as chaves na outra mão, sentado no Trono da Glória, expressivo da Merkabah, sobre o dossel, postura expressiva do domínio (sentado no trono) e da revelação (sobre o dossel), mas também da protecção que é o que significa o dossel ou pálio. Este assenta sobre quatro colunas dóricas e tem ao centro a urna funerária igualmente figurativa da Tebah, isto é, da Arca da Aliança de Deus com o Homem, mas aqui na expressão póstuma de aliança da alma do crente com Deus Único e Verdadeiro, o mesmo que Se revelou a Moisés no Monte Sinai através de São Miguel ou Mikael (“O Anjo no qual é Deus”, em hebreu, Maleak-Ha-Elohim)[10], já antes tendo sido o Guardião das portas do Paraíso, de onde foram expulsos Adão e Eva para darem a progénie humana, segundo as escrituras bíblicas. Mas aqui é o Guardião zeloso com as chaves da entrada no Céu, as do retorno eterno ao Éden, ao Paraíso como Parnaso de além-túmulo, a Jerusalém Celeste. Quatro tocheiros em volta da urna ao centro, assentes sobre colunas coríntias (estilo arquitectónico tradicionalmente preferido para o tipo de monumentos funerários), dão-na como urna ardente, assinalando a presença da alma imortal e assegurando o perdurar da luz de vigília, no aguardo da ressurreição final das almas familiares (manes) de Carvalho Monteiro. A toda a volta do pálio estende-se um listel decorado com flores de pétalas abertas em cruz, alegóricas da “fina-flor” da alma cristã que corporalmente animou aqueles cuja memória jacente é assinalada na própria urna.

Essa sinalética igualmente evoca São Miguel Arcanjo (Qui ust Deus, em latim, “Quem é Deus”) como padroeiro da antiga Ordem dos Templários no País e a sua aclamação como Anjo Custódio ou da Guarda – que é o seu significado literal neste jazigo dos Prazeres, repito – de Portugal e da Igreja, sendo igualmente o Orago da Sinagoga (Mikael) e da Mesquita (Mirrail), portanto, com a dupla função psicopompa de guardião e guia dos crentes e da “Terra da Luz” (Luxcitânia). Sobre isto, diz Pinharanda Gomes[11]:

“Um dos mais ricos documentos literários e teológicos do século XVII é o Tratado do Anjo da Guarda, do jesuíta António de Vasconcelos. Aí, a par de uma catequese angiológica, o autor documenta a natureza e a evolução do culto em Portugal, demonstrando a sua antiguidade e dignidade. Com efeito, embora a crença no Anjo da Guarda venha de longe, pelo menos dos Salmos, a festa desta invocação só aparece em Espanha no século XVII, sendo aprovada (1608) por Paulo V. Festa imperial da Casa de Áustria, tornou-se extensiva a toda a Igreja (1670), por decisão de Clemente X, e a festa ocorria inicialmente em 29 de Setembro e 8 de Maio (no Ocidente e no Oriente, respectivamente).

“Regressando ao plano do nosso país, esta fé e esta liturgia desenvolvem-se primordialmente em relação ao Anjo Custódio de Portugal, cujo culto se nos evidencia em duas fases: o início, até à decadência, e a revivescência, mediante as aparições de Fátima.

“Segundo António de Vasconcelos, na conquista de Santarém, D. Afonso Henriques invocou S. Miguel Arcanjo, aí tendo instituído a Ordem de S. Miguel da Ala. A insígnia desta Ordem era uma asa vermelha em campo branco, cercado a ouro. A devoção ao Anjo cresceu de tal modo que D. Manuel I o invocava como “anjo nosso guardador”, tendo-se antecipado ao movimento do culto em Espanha. De facto, D. Manuel solicitou (6-6-1504) de Leão X a instituição da festa do Anjo Custódio de Portugal, a celebrar no terceiro domingo de Julho, dando aso a uma tradição que ainda se mantém em várias localidades do país. Anteriormente (1480), ao fundir num só vários ofícios litúrgicos, o prior de Odivelas, Fr. António Castanheira, já encontrara o ofício do Anjo Custódio, pelo que o gesto de D. Manuel corresponde a um sancionamento de uma tendência cultual anterior, depois incorporada nas Ordenações Manuelinas (Liv. I, tit. 78), onde se determinam os actos da festa: procissão solene, missa e ofício particular em Lisboa e noutras terras. O estatuto passaria para as Ordenações Filipinas (Liv. I, tit. 66, & 48), mas antes alvarás foram expedidos por D. Manuel a várias câmaras do país para instituírem a festa, que obteve maior brilho nas dioceses de Braga, Coimbra e Évora, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. A partir de então, o culto decaiu, mas por decreto (28-6-1952) da Sagrada Congregação dos Ritos, a festa foi restaurada em todas as dioceses portuguesas (em Braga continuou a fazer-se em 9 de Julho), e fixada em 21 do mesmo mês. O decreto de 27-7-1952 trasladou-a para 10 de Junho e fixou o novo próprio de Portugal.”

As paredes laterais sob o dossel estão forradas por três lápides com inscrições evocativas das memórias jacentes de Francisco Augusto Mendes Monteiro e sua esposa, Teresa Carolina de Carvalho, e também de um seu filho falecido. Pelo interesse biográfico que importam ao conhecimento desta família cuja maioria dos dados cronológicos hoje são praticamente desconhecidos dos historiadores, transcreverei essas inscrições lapidares cujas letras foram pintadas a negro originalmente mas que hoje estão muito deterioradas, quase apagadas.

Primeira lápide

Ao lado dos restos mortais do filho descansam também aqui os da sua extremosa mãe D. Teresa Carolina de Carvalho Monteiro nascida no Rio de Janeiro a 1 de Outubro de 1810 e falecida em Coimbra a 2 de Abril de 1871 com 60 anos, 6 meses e 29 dias de idade. Foi na vida filha querida, esposa a mais dedicada, mãe extremosíssima e protectora dos pobres. A sua alma gozará de certo da bem-aventurança celeste, assim o crêem o seu desolado esposo Francisco Augusto Mendes Monteiro e os seus consternados filhos António Augusto de Carvalho Monteiro e José António de Carvalho Monteiro que à memória da finada tributam uma eterna saudade.

Segunda lápide

Ao lado dos restos mortais da esposa e mãe descansam também os do seu desvelado marido e pai Francisco Augusto Mendes Monteiro nascido em Lagos da Beira, Concelho de Oliveira do Hospital, em 9 de Março de 1816 e falecido em sua casa em Lisboa na Rua do Alecrim, Freguesia da Encarnação, no dia 1 de Novembro de 1890 contando 74 anos, 8 meses e 8 dias. Um português modelar, exemplar chefe de família, marido dedicado e pai extremoso praticando o bem esforçado à sua pátria. Para aqui foram os seus restos mandados trasladar pelo seu saudoso filho António Augusto de Carvalho Monteiro. Que eles descansem em paz juntos dos entes queridos que na vida teve.

Terceira lápide

Francisco Augusto Mendes Monteiro e a sua esposa D. Theresa Carolina, mandaram erigir este monumento de indelével saudade à memória do seu querido filho Francisco, que nasceu no Rio de Janeiro aos 23 de Dezembro de 1847, e faleceu na Vila da Figueira aos 5 de Outubro de 1860, com 12 anos, 9 meses e 13 dias de idade. Foram trasladadas as suas cinzas do Cemitério d´Moutela Vila para este jazigo em 13 de Outubro de 1868. Sob a guarda do R. P. Manoel Marouf Per. Ribeiro da cidade de Coimbra. Olatium obi in aeternum pax filli domi Domine.

Nos lados da porta frontal do jazigo, em guisa de “figuras de convite” cemiteriais, apresentam-se as esculturas de duas virtudes teologais: à esquerda (de quem olha de frente) a , carregando a Cruz, e à direita a Esperança, portando o Cálice, esta com a cabeça descoberta e aquela coberta, por ser a algo íntimo, feita só daquilo que o crente sabe, e a Esperança a sua suprema e derradeira afirmação.

A virtude (virtus, em latim) é uma qualidade moral particular, como a inclinação natural para praticar o bem, e o conjunto virtuoso expressa todas as qualidades essenciais que constituem a natureza do chamado homem de bem, quer individualmente, quer colectivamente. Como disse Aristóteles, as virtudes são a disposição adquirida, pelo seu cultivo permanente, para praticar o bem, o bom e o belo, aperfeiçoando-se e desenvolvendo-se cada vez mais com o hábito. As virtudes ou skandhas, em sânscrito, são as normas, regras ou râgas como cimento moral da vida e em particular da ciência sacerdotal. Sem elas, o distinto sagrado do sacerdócio não poderá distinguir-se do vulgar profano e ordinário, como tampouco a sociedade humana se distinguirá do bruto irracional. Há dois grupos de virtudes: as virtudes teologais, cuja origem e objecto são o próprio Deus Espírito Santo revelado como Fé (Fides), Esperança (Spes) e Caridade (Charitas), ausente neste jazigo mas que poderá assinalar-se no Arcanjo caridoso protegendo a urna. E as virtudes cardeais, consideradas as principais dentre as virtudes humanas: Justiça (Iustitia), Prudência (Sapientia), Fortaleza (Fortitudo), Temperança (Temperantia), e mais a Obediência (Hobedientia) que, no caso de António Carvalho Monteiro, seria tanto à Igreja como à Coroa, ambas seculares. Disso conclui-se que até o bem-fazer não é feito sem ordem nem regra, e sim com a discriminação prudente que cada caso exige.

Como há quem veja, a meu ver imprudentemente, nessas esculturas do jazigo algum simbolismo esotérico de carácter maçónico ou afim[12], por bem adiantarei que a noção de virtude na Maçonaria não é exactamente igual à do Catolicismo. Sendo qualidades positivas próprias do homem, as virtudes são “forças” ou skandhas, que integradas ou assimiladas por ele entram na formação superior ou elevada do seu carácter. Como já disse, chama-se assim todos os hábitos constantes que levam o homem para a prática de operações honestas, tendentes para o bem comum. Podem ser classificadas como virtudes morais e virtudes mentais. As que são aplicadas para o bem honesto são morais, e as que são aplicadas para a verdade são mentais ou intelectuais. Aquelas são operativas, estas são especulativas, cuidam da cultura, enquanto as outras cuidam do carácter. Por exemplo, a caridade é uma virtude moral, enquanto a sabedoria é uma virtude mental. Como também já disse, a formação das virtudes acontece pela repetição de uma série de actos da mesma espécie, cujos exercício constante e perseverante os converte em hábitos. Por esta razão, a virtude é uma conquista pessoal em que não há interferência hereditária. Para o comportamento pessoal se transformar numa virtude, implica essencialmente duas condições: o conhecimento do dever a ser cumprido, e a disposição firme e perseverante em cumpri-lo. Conceitualmente, para a moral da Maçonaria a virtude é disposição habitual para a prática do bem e do que é justo, por isso é tida como prova da perfeição que deve caracterizar todo o maçom, culto e moral, mesmo não participando da profissão de crente e ficando-se só pelo exercício humanitário.

Desde Platão e Aristóteles que a Filosofia reúne toda a Moral em quatro virtudes cardeais ou principais, em torno das quais todas as outras gravitam ou dependem, e que são: Justiça, Prudência, Fortaleza, Temperança, as três últimas sendo apenas qualidades de quem as possui e não virtudes relacionadas com o próximo, porque só a Justiça é uma virtude útil aos outros, mas não bastando ser justo porque também é preciso ser benfazejo. A Maçonaria reconhece e incentiva a prática das quatro virtudes cardeais, além das três virtudes teologais, representando-as por borlas pendentes nos quatro cantos da Loja.

Ao contrário das virtudes cardeais, adquiridas pelo hábito constante, as virtudes teologais não são adquiridas pelo esforço do homem. São as virtudes ensinadas na teologia de São Paulo e é por isso que se chamam teologais (prevenientes de Deus), as mesmas Fé, Esperança, Caridade. Através delas o homem poderá superar-se a si mesmo no intento de alcançar a suprema perfeição que o identifique ou iguale ao Divino. Para a Teologia, a representa a expressão da crença esclarecida como acto lógico e fundamental da razão humana; a Esperança e a Caridade ou Amor andam juntas e representam o sentimento amorável para com o próximo, que se deve a uma disposição muito viva da alma, seja nas concepções filosóficas e morais, seja nos ideais religiosos e espirituais. Para a Moral, distinguem-se os deveres da Justiça e os deveres da Caridade: os primeiros consistem em respeitar os direitos de outrem; os segundos consistem em socorrer o próximo por todos os meios ao dispor. Posto tudo, concluiu-se que o mal é a antítese da virtude. E é ao mal do fanatismo, da ignorância e da superstição que, afinal, todo o maçom verdadeiro deve combater sempre e em toda a parte com tolerância, prudência e sabedoria, seja por motivo religioso ou, o mais comum como laico e até ateu, só pelo bem-fazer à sociedade geral[13].

De ambos os lados da porta do jazigo estão duas tochas tombadas sobre papoilas dormideiras (envolventes do edifício). Representam o finis vitae, o fim da vida, anunciando o período de dormição, o sono profundo do justo que dorme na paz eterna. Adiante do óculo por cima da entrada, configura-se uma coroa funerária entrecruzada por uma cruz florlisada tíbia em esplendor. É sinalética indicativa do próprio como jazigo desta família que morreu crente na Luz e Triunfo da Cruz, vencendo a hora fatal da morte com a ressurreição em Cristo, motivo assinalado na cabeça do Querubim mais acima.

Motivos necroláticos na porta dianteira do Jazigo da Família Carvalho Monteiro

Motivos necroláticos na porta dianteira do Jazigo da Família Carvalho Monteiro

A aldraba da porta é decorada pelos motivos, tudo em ferro forjado, das papoilas dormideiras nos lados de um ampulheta em que assenta uma borboleta de asas abertas com um crânio no dorso, o que levou Manuel Joaquim Gandra a chamá-la de Esfinge da Morte. Não é só pelo facto de Carvalho Monteiro ter sido um grande borboletário que ela está representada aqui[14], mas sobretudo pelo seu significado transcendente afim ao simbolismo cemiterial. Este insecto existe realmente e chama-se acherontia atropos, mais conhecido como “borboleta-caveira”, por apresentar no seu dorso uma figura semelhante ao crânio humano. É uma borboleta nocturna (nisto tornando-se afim à associação simbólica da noite com a morte) que se alimenta, no estado adulto, de certas flores como o jasmim, a folha de tabaco e a folha de batata. Nas crenças populares, a presença da “borboleta-caveira” é sinal de notícias nefastas ou da morte de alguém, mas no simbolismo tradicional enuncia a transmigração da alma, acompanhando os ciclos da sua evolução, marcada pela ampulheta de Cronos ou Saturno, motivo por que a Antiguidade greco-romana dava à alma que deixava o corpo morto a forma de uma borboleta, e assim as borboletas passaram a ter o sentido de “espíritos viajantes”. Nos afrescos de Pompeia, Psique é representada como uma menina alada semelhante a uma borboleta. Um outro aspecto do seu simbolismo fundamenta-se nas suas metamorfoses: a crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser e a borboleta que sai dele torna-se símbolo de ressurreição, ou por outra, da saída do túmulo.

Traseira do Jazigo da Família Carvalho Monteiro

Traseira do Jazigo da Família Carvalho Monteiro

Na traseira, descendo poucos degraus, penetra-se na cripta, onde jazem os despojos mortais de alguns membros da família Carvalho Monteiro. Por cima da porta abre-se um óculo com cruz florlisada de ferro, e um pouco abaixo, dos lados, duas cabeças de Anjo com as asas fechadas, em oposição aos mochos laterais de asas abertas, espécie de vigias ladeando a entrada. Na cimalha desta estão três papoilas entrelaçadas por uma fita, e mais acima uma caveira sobre duas tíbias cruzadas, sinal da presença da morte. As três papoilas dormideiras representam o tríplice aspecto do Homem, como o seu Espírito subido, a sua Alma evolada e o seu Corpo falecido, além de representar a terra onde se operam as transmutações vitais: nascimento, morte, esquecimento e reaparecimento, segundo o simbolismo eleusino condizendo com a frase das Escrituras Sagradas: “da terra vieste e à terra voltarás” (Génese, 2:7; Eclesiastes, 3:20). De modo que a papoila dormideira oferecida a Deméter representa a força do sono e do esquecimento que toma os homens depois da morte e antes do renascimento. O mocho faz as vezes de guardião do Hades, o mundo subterrâneo onde volvem as almas dos vivos, e nessa função cemiterial está de asas abertas, vigilante, enquanto acima os Anjos estão de asas fechadas, assinalando que a alma volveu à eternidade, não está presente na matéria por o seu ciclo de vida corporal ter findado. Consequentemente, o Sol, o Espírito, representado pelo Anjo, está recolhido, e fica só a Lua, a Matéria, representada pelo mocho que é a ave de augúrio, como tal aquela que na noite da morte augura o dia da vida que será o da ressurreição final.

NOTAS

[1] Esta e outras informações afins constam dos registos de óbito e de entrada em jazigo do citado e seus familiares, as quais me foram cedidas pela Administração do Cemitério dos Prazeres.

[2] Vários autores dão com data de nascimento de Carvalho Monteiro o ano de 1850, induzidos no erro por Christopher C. Lund em O manuscrito caligráfico, único, de Os Lusíadas, feito por Manuel Nunes Godinho para o seu patrão António Augusto de Carvalho Monteiro. Leituras de Camões, São Paulo, 1982. Também o “de” Carvalho está a mais, ele não consta no registo de baptismo e só António Augusto Carvalho Monteiro.

[3] Vasco Callixto, As terras e os homens: onde nasceram, viveram e morreram. Lisboa: Universitária, 1999.

[4] Padre Álvaro Proença, Benfica através dos tempos. Depositária União Gráfica – Lisboa, 1964.

[5] João Ferreira Durão, Pequena História da Maçonaria no Brasil (1720-1882). Madras Editora Ltda., São Paulo, 2008.

[6] Vitor Manuel Adrião, História Secreta do Brasil (Flos Sanctorum Brasiliae). Madras Editora Ltda., São Paulo, 2004.

[7] A verdadeira Maria da Fonte, na Póvoa de Lanhoso, era a natural da terra chamada Maria Luísa Balaio, proprietária de uma hospedaria, “Maria da Fonte”, onde acorriam as mulheres que tomaram parte activa na revolta feminina que incendiou o país. Mas como a revolta eclodiu em Fontarcada, no Minho, o povo daqui identifica-a como Maria Angélica de Simães, ou uma outra mulher de nome Maria. Creio que Maria da Fonte são todas as Marias e demais mulheres que encabeçaram a revolta popular contra o governo liberal e cartista de António Bernardo da Costa Cabral (1803-1889), o famigerado “mata-frades” por ter sido quem assinou o decreto-lei de extinção das Ordens religiosas em Portugal.

[8] Vitor Manuel Adrião, Guia de Lisboa Insólita e Secreta. Editorial Jonglez, Versailles, Abril de 2010.

[9] Paula André, Modos de pensar e construir os cemitérios públicos oitocentistas em Lisboa: o caso do Cemitério dos Prazeres. Revista “História de Arte”, n.º 2, Lisboa, 2006.

[10] Esta última observação recorda igualmente as palavras adaptadas do texto de Isaías, 6:3, cantadas no Sanctus precedendo a Comunhão (Eucaristia) na liturgia romana: Benedictus qui venit in nomine Domine, “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Elas são aplicadas ao Cristo, cujos predicados os gnósticos cristãos e posteriormente os cabalistas igualmente cristãos revelavam idênticos aos do Arcanjo Mikael, compreendendo a relação existente entre o Messias e a Shekinah ou “Revelação Divina”. O Cristo é também designado por “Príncipe da Pax”, sendo, ao mesmo tempo, o “Juiz dos vivos e dos mortos”.

[11] J. Pinharanda Gomes, Povo e Religião no Termo de Loures. Paróquia de Santo António dos Cavaleiros, Loures, 1982.

[12] Pedro de Carvalho Daun e Lorena, Vida e Obra de Carvalho Monteiro na Métrica e Simbólica – Jazigo da Família Carvalho Monteiro. Dissertação apresentada para obtenção de grau de Mestre em Reabilitação da Arquitectura e Núcleos Urbanos. Universidade Técnica de Lisboa – Faculdade de Arquitectura de Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004.

[13] Vitor Manuel Adrião, Guide de Milan Insolite et Secrète. Editions Jonglez, Versailles, 2012.

[14] Nuno Rodrigues, Descrição e análise do jazigo da família Carvalho Monteiro, no Cemitério dos Prazeres. Revista “Lusíada: Arqueologia, História da Arte e Património”, série I, números 2-4, 2004, Universidade Lusíada, Lisboa.

Os subterrâneos da Quinta da Regaleira de Sintra – Por Vitor Manuel Adrião Quinta-feira, Jan 12 2017 

Se há lugar em Portugal onde se apresenta com toda a pujança o mito ou a realidade do Mundo Subterrâneo, o Reino encantado teimando em não se descobrir sob o seu nome Agharta, que é a Paradhesa ou Paraíso Terreal universalmente tomado como a derradeira esperança de um porvir melhor para o Género Humano, esse lugar está exactamente aqui, na Quinta da Regaleira de Sintra, esta que já de si é reconhecida como Serra Sagrada desde os alvores da civilização humana, inclusive pela sua relação ctónica com a mesma Terra Oca de que falam com relativa abundância as crónicas e lendas locais, das mais antigas às mais recentes[1].

Com efeito, um intrincado complexo de túneis e grutas perfaz as artérias sobre que assenta este complexo monumental. Além da cripta da capela, do lago subterrâneo próximo à alameda das estátuas mitológicas, da torre levantada aos céus com a estátua de Leda-Melusina no seu interior, há ainda dois pressupostos «poços» que de tal nada têm, antes sendo torres subterrâneas levantadas no ventre da serra.

A entrada na torre mandada construir pelo dr. António Augusto Carvalho Monteiro, a dita maior, mais profunda e completa, faz-se pelo cimo da quinta, atravessando um dólmen artificial (a roche surprise, “rocha surpresa”, no plano original de Lusseau), também mandado fazer por aquele, para logo transpor um pesado portão de pedra, cujo mecanismo de tão secreto que era não havia outro igual no país[2]. Por certo este monumento no mínimo insólito fazia parte de um cenário mítico antecipadamente concebido por Carvalho Monteiro, muito antes de aceitar o projecto de Manini, posto que num dos desenhos aguarelados de esquissos de Henri Lusseau destinados ao jardim da Regaleira, surge a seguinte indicação: Porte surprise – ouvre pour descendre (“Porta surpresa – abre para descer”)[3]. Com a altura aproximada de 33 metros repartidos por 9 patamares, terminando no lanternim, cada um deles com 15 degraus, perfazendo o total de 135, no fundo da torre vê-se configurada no seu chão ladrilhado a estrela heráldica constante no brasão da família Carvalho, mas que alguns identificam ora como uma “cruz templária”, ora como uma “rosa-dos-ventos”. A cerca de um terço da altura da torre há duas entradas para ela, sendo a mais significativa aquela que se faz junto à fonte onde estão duas esculturas de dragões, crocodilos ou lagartos enleados. No fundo da torre abre-se uma galeria de portal em arco de pedra suportado por quatro colunelos, junto ao qual está, à direita, uma fonte esculpida em forma de bilha, possível alusão à Fons de Sée (donde Sagesse ou Sabedoria) da lenda de Melusina, como consta no seu romance medieval. Prosseguindo por essa galeria, a dado momento ela bifurca-se na direcção da entrada oriental, onde está o lago que tinha uma linda cascata, havendo antes uma outra bifurcação à direita que vai dar à segunda torre subterrânea menor, aparentemente incompleta, possivelmente mandada fazer após 1830 pelo proprietário da Quinta da Regaleira anterior a Carvalho Monteiro, ou seja, Manuel Bernardo Fernandes, que é o único interveniente neste espaço a ser claramente identificado como maçom[4]. Por certo pretenderia com a construção inacabada dessa torre reproduzir a ideia hermética do V.I.T.R.I.O.L. adoptada pela Maçonaria desde a primeira hora da sua fundação. Mas as fundações do terreno seriam aproveitadas por Carvalho Monteiro para completar a obra, todavia com sentido diverso do pressuposto de Manuel Bernardo.

As galerias subterrâneas estão forradas com pedras de coral para aqui trazidas das proximidades de Peniche, segundo Maria Regina Anacleto, ou das proximidades da Boca do Inferno em Cascais, segundo Manuel Joaquim Gandra, ou talvez de ambas as partes, segundo me parece. Carvalho Monteiro quis iluminá-las electricamente e dar-lhes animação com uns bonecos maquinados vestidos de mouros, como conta a sua neta Maria de Nazaré: “As grutas para o meu avô eram os contos das mil e uma noites. Ele “sonhou” tudo aquilo e depois concretizou. Numa das grutas – a das Moiras Encantadas – ele queria pôr autómatas vestidas de moiras, que se levantassem e cumprimentassem o visitante”[5].

Esse “sonho” de Carvalho Monteiro parece ter nascido da mitologia nacional de carácter sebástico inspirada em determinados trechos das escrituras sagradas, temas que serviriam a alguns escritores cristãos para dispor no Centro do Mundo o conceito sinárquico de sociedade perfeita, a Quinta Monarquia ou Império, e o próprio Messias também aí. O sebástico frei Sebastião de Paiva é talvez o principal a desenvolver o tema em 1641, e quiçá tenha sido nele que Carvalho Monteiro se inspirou para transformar a alegoria sagrada em realidade cenográfica. Com efeito, o religioso trinitário diz[6]:

“[…] a qual cláusula é de notar se não cumpriu em tempo de nenhum dos nomeados nas outras exposições, e que se cumprirá, sem dúvida, em o justo governo da Quinta Monarquia; e acho particular mistério em se pintar este que há-de sair da raiz da cobra ou serpente, de quem sabemos que diz o mesmo Isaías, cap. 11, n. 8, que faz sua morada em escondidas cavernas: “in caverna reguli”; e Jeremias diz destes bichos, “quibus non est encantatio”, que não se deixam enganar.

“Sinais com que atrás fica qualificada esta pessoa, que com tantos rodeios e hieroglíficos nas Divinas Letras se nos pinta. E já por esta razão Esdras, lib. 4 e 5, n. 6: “Regnabit quem non sperant, qui habitant super terram”, que reinará aquele que os moradores da terra não esperam, porque como se há-de esperar uma cousa ao parecer tão repugnante a toda a prudência; pois esta tal que dá princípio a obra tão insigne, se diz que há-de ser abatido, pobre, necessitado, escondido falto de forças. Traças certo que só no abismo da divina sabedoria e no pego inexausto da divina providência se abonam.”

O tema é retomado por Lusitanus, pseudónimo de Abel de Sousa Vasconcelos (1865-1937), autor da obra sebástica Sinais dos Tempos[7], onde diz no capítulo com o sugestivo título “Ilha Encoberta”:

“Esdras indica-nos o nome da região (Arezareth) – paradeiro das 10 tribos de Israel – e refere que a sua entrada foi no Eufrates, secando-se este, miraculosamente, na sua passagem, devendo secar-se, novamente, no seu regresso (Isaías, no cap. XI, faz idêntico vaticinio). Essa região é desconhecida, devendo estar oculta, aos nossos olhos. Vaticina também que um Filho de Deus, conservado por seu poder há muitos anos – qui conservat multibus temporibus – e que surgirá, por esse mesmo poder, do coração do mar – ascendens corde maris – para chefiar as 10 tribos de Israel, no combate contra os exércitos dos reis da Terra coligados, implantando depois o Reino de Deus na Terra.

“Esdras não indica a situação geográfica dessa região marítima. Ressalta do seu vaticínio que essa criatura já pisou a crosta terrestre, e vive numa ilha ou cidade marítima, visto sair de corde maris.

“Ora, tendo de reaparecer as 10 tribos de Israel, desaparecidas há 29 séculos, fenómeno extraordinariamente maravilhoso, não é maior maravilha conservar Deus mais esse seu “Filho Macho” ou Varão em lugar oculto e invisível a nossos olhos, para executar todos esse plano grandioso da conversão geral da Humanidade, ou do estabelecimento do seu Reino na Terra convertendo-a num Céu, como diz Isaías?

“Não poderá Deus, por seu poder infinito e para quem não existem impossíveis, conservar nessa ilha esse seu “Filho”, que há-de sair de corde maris para ser instrumento da grandiosa Obra que tem em vista, assim como hão-de reaparecer as 10 tribos de Israel, desaparecidas há 29 séculos, para serem cooperadoras dessa mesma Obra?”

Talvez por esse motivo da insula occulta de que o mar ou maris é símbolo das águas genesíacas referentes ao Centro Primordial originador da Vida, é que Carvalho Monteiro terá escolhido as pedras de coral para forrar as galerias subterrâneas da Regaleira, por serem pedra marinha formada no fundo do oceano. Por tudo isso, também Helena Petrovna Blavatsky proferiu as palavras flagrantes[8]:

“O reino das trevas e da ignorância desaparece rapidamente, mas há ainda regiões inexploradas pelos sábios e que são tão negras quanto a noite do Egipto. Os clérigos benévolos que, sob a menor das provocações, estão sempre prontos a mandar-nos ao Tártaro e às regiões infernais, não suspeitam o bom voto formulado a nosso respeito, e qual o grau de santidade que deveremos adquirir para poder entrar num local tão sagrado. Falar-se, por conseguinte, de alguém que houvesse descido aos Infernos equivalia, na Antiguidade, a designá-lo como um Iniciado Perfeito.”

Nisso e na mais restrita ortodoxia da doutrina católica, Jesus Cristo foi um Iniciado Perfeito porque também ele desceu aos Infernos, como diz S. Mateus, 12:40: “O Cristo ficou três dias e três noites (isto é, desde o alvorecer da quinta-feira até ao do domingo) no coração da Terra, com a porta do túmulo fechada”. O Cristo havia descido não “à terra” e sim “às partes baixas da Terra” que são o seu Centro (Efésios, 4:9), e isto traz à memória o significativo encabeçamento dos títulos das Cartas Paulistas (Epístolas de S. Paulo) vertidas para a Vulgata Latina por S. Jerónimo: Agharta-al-Galatim, Agharta-al-Ephesim, Agharta-al-Romin, etc., ou seja, “Agharta aos Gálatas”, “Agharta aos Efésios”, “Agharta aos Romanos”[9].

Subterrâneos da Quinta da Regaleira de Sintra

Subterrâneos da Quinta da Regaleira de Sintra

O retorno ou viagem espiritual ao Centro Primordial – chame-se-lhe Salém, Shamballah, Walhalah ou simplesmente Agharta – está representado na Regaleira na própria ordenação labiríntica das suas galerías subterrâneas, dizendo René Guénon[10]: “O labirinto tem uma dupla razão de ser, no sentido de que permite ou impede, segundo o caso, o acesso a um certo lugar no qual nem todos devem penetrar indistintamente. Apenas os que estão “qualificados” poderão percorrê-lo até ao fim, enquanto os demais serão impedidos de penetrá-lo ou se extraviarão no caminho. Vê-se de imediato que existe aí a ideia de uma “selecção” que se refere de modo evidente à admissão na iniciação. O percurso do labirinto é exactamente, sob esse ângulo, uma representação das provas iniciáticas. E é fácil conceber que, quando servia de facto como meio de acesso a certos santuários, podia estar disposto de tal forma que os ritos correspondentes fossem cumpridos durante o próprio percurso. Além disso, encontra-se nele ainda a ideia de “viagem”, na medida em que está associada às próprias provas (…)[11]. Outro simbolismo equivalente é o da “peregrinação”. Podemos lembrar a propósito os labirintos traçados antigamente sobre o pavimento de certas igrejas, e cujo percurso era considerado como um “substituto” da peregrinação à Terra Santa. Afinal, se o ponto em que termina esse percurso representa um lugar reservado aos “eleitos”, ele é na verdade uma “Terra Santa” no sentido iniciático da expressão, ou seja, esse ponto nada mais é que a imagem de um Centro Espiritual, da mesma forma que todo o local de iniciação”.

A origem mitológica do labirinto é o palácio cretense de Minos, onde estava encerrado o minotauro e donde Teseu só conseguiu sair com a ajuda do fio de Ariadne. O minotauro representa a natureza animal, o labirinto a caminho tortuoso da Iniciação a ser percorrido por Teseu, o Iniciado, e sair triunfalmente do mesmo graças ao fio de Ariadne, ou seja, à ligação permanente à sua Alma ocultada sob a veste carnal. Vencer a besta animal em si mesmo equivalia a alcançar o Centro e triunfar na Iniciação, neste caso, sair incólume do labirinto equivalia a ser Cristóforo, ou seja, a Luz Crística revelada no Iluminado verdadeiro. Relacionados com isto e ao mesmo tempo, os labirintos traçados no chão de algumas igrejas medievais eram a assinatura das confrarias iniciáticas de construtores livres, servindo também aos que não tinham posses para viajar para substituir a peregrinação efectiva à Terra Santa. Por isto, às vezes encontram-se no centro do labirinto as figuras ou do próprio arquitecto ou do Templo de Jerusalém, expressando o Eleito que chega ao Centro do Mundo representado pelo mesmo Templo salomónico. Assim, o crente que não podia realizar a peregrinação real fazia-a em imaginação através do labirinto, até chegar ao ponto central, ao lugar santo: era peregrino sem sair do lugar, fazendo devotamente o trajecto de joelhos.

Na tradição cabalística, retomada pelos alquimistas, o labirinto preencheria uma função mágica, que seria dos segredos atribuídos ao rei Salomão. É por esta razão que o labirinto das catedrais (sendo uma série de círculos concêntricos interrompidos em certos pontos de modo a formar um trajecto bizarro e inextrincável) era chamado de labirinto de Salomão. Aos olhos dos alquimistas, tratava-se de uma imagem do trabalho inteiro da Grande Obra Hermética com as suas dificuldades principais: o caminho estreito mas seguro que o alquimista devia percorrer para alcançar o Centro, representando a Pedra Filosofal, sinónima de Iluminação ou Realização Espiritual, com a sua natureza superior (representada nos metais nobres, como o ouro e a prata) dando combate à sua natureza inferior (assinalada nos metais impuros, como o chumbo e o ferro); esses conhecimentos equivaliam a vencer e sair incólume do intrincado labirinto da Iniciação. Esta interpretação ia ao encontro da professada na doutrina ascética de alguns místicos cristãos e árabes: concentrar-se em si mesmo, em meio dos mil rumos incertos das sensações, das emoções e das ideias, eliminando todo o obstáculo à intuição pura, e volver-se à Luz espiritual sem se deixar prender nos desvios das veredas sensoriais e mentais. A ida e volta no labirinto eram o símbolo da morte e da ressurreição espiritual.

Labirinto da Catedral de Chartres, França

Labirinto da Catedral de Chartres, França

De maneira que o labirinto expressa o caminhar do homem para o interior de si mesmo, para uma espécie de santuário ou cripta misteriosa, expressando o que há de mais misterioso e sagrado nele. É aí, nessa cripta, verdadeiro templo do Espírito Santo na alma em estado de Graça, que se reencontra a unidade perdida do Ser, entretanto dispersado na multidão dos desejos. A chegada ao centro do labirinto, como no fim de uma iniciação, introduz o iniciado numa cela invisível, que os artistas dos labirintos sempre deixaram envolta em mistério, ou melhor, que cada um podia imaginar segundo a sua própria intuição ou afinidades pessoais.

O emaranhado aracnídeo das galerias subterrâneas da Quinta da Regaleira (esquema cenográfico encomendado por Carvalho Monteiro a Luigi Manini e que por volta de 1904 já estava feito[12], quase de certeza tendo o artista italiano se inspirado no formato daquela outra torre subterrânea de S. Patrício em Orvieto, Umbria, Itália, para construção da idêntica na Quinta da Regaleira) sugere a configuração de uma suástica ou swástika, a cruz jaina ou jina que na Ásia é reconhecida como insígnia do próprio Chakravarti, o “Rei do Mundo”.

Esquisso da torre subterrânea de S. Patrício (1527), em Orvieto, Umbria, Itália, o interior desta e a sua semelhança com o da torre maior subterrânea da Regaleira de Sintra

Esquisso da torre subterrânea de S. Patrício (1527), em Orvieto, Umbria, Itália, o interior desta e a sua semelhança com o da torre maior subterrânea da Regaleira de Sintra

Não afirmo que o complexo subterrâneo configure uma swástika, porque não a configura, antes digo que a sugere… e, sugerindo-a, torna-se forçoso saber o significado real desse símbolo tão mal entendido no Ocidente e de triste memória desde as usurpações hitlerianas, e por isso começo citando Laurentus, pseudónimo de Henrique José de Souza (1883-1963)[13]: “Raros são também aqueles que sabem interpretar os símbolos conhecidos pelos nomes de suástica e sovástica, pois a maioria chega ao ponto de confundi-los. O primeiro representa o movimento da esquerda para a direita, que é o dos astros em torno do Sol, a maneira de se abrir uma porta ou dar corda em u´a máquina. Em suma, é o símbolo do movimento, da evolução. Já o segundo, que gira na direcção contrária, é tido por jainos e budistas, na Índia, como “nefasto e perigoso”. Foi este último, justamente, o escolhido por Adolf Hitler, por ser o génio da destruição e da morte. É um símbolo, pois, de involução e decadência”.

Como o itinerário nas grutas se realiza do Ocidente para o Oriente, ou seja, da esquerda para a direita, isso vem a simbolizar o movimento destrocêntrico (pradakshina, em sânscrito, e dextroversum, em latim) que é o mesmo dos astros em torno do Sol, e igualmente o da própria descida pelas torres maior e menor da Regaleira.

Mário Roso de Luna corrobora o conceito de swástika e itinerário quando diz[14]:

“O misterioso IT jina, que não é outro senão a cruz jaina, svástica ou molinete eléctrico, símbolo da Vida Universal, que no fundo de tudo late, por sua vez é radical de palavras importantíssimas, tais como as de IT em latim, de ITer, itineris, “caminho, senda”, ou seja, o nosso típico itinerário.”

Adiantando numa outra obra[15]:

“A esvástica, como é sabido, consta de uma cruz ordinária cujos quatro braços iguais estão dobrados em ângulo recto. O equivalente da sua figura é o chamado “molinete eléctrico” que pode ver-se em todos os tratados de Física, e ela mesma em si não é senão um quádruplo agregado de esquadros ou ângulos rectos, ou melhor, um quádruplo conjunto de outros tantos triângulos rectângulos que se une no centro dela com os quatro dobrados extremos, extremos que se curvam e prolongam convenientemente podendo chegar a descrever uma circunferência, passando assim o símbolo ao consabido da cruz no círculo, de onde ele é originário. Na realidade, não há uma mas duas esvásticas contrapostas e de sinal contrário, masculino-feminino, segundo a maneira de estarem dobrados os braços: em sentido dextorsum (segundo a marcha aparente das estrelas no céu e das agulhas de um relógio) ou em sentido sinistorsum (marcha contrária do Sol e dos planetas ao longo do Zodíaco). O primeiro símbolo é o da Magia Branca, solar, do fogo ou positiva, e o segundo o da Magia Negra, lunar, negativa ou da água, anulando-se entreambas quando se sobrepõem na figura de um quadrado perfeito. Para pontualizar ambas as esvásticas, basta recordar que a positiva está representada por um homem com o braço direito dobrado para cima, a cabeça para a esquerda, o braço esquerdo dobrado para baixo e a perna esquerda dobrada para a direita. Na realidade, a esvástica, como cruz primitiva, é o símbolo do homem espiritual crucificado na cruz do seu corpo, porque, como disse Annie Besant, nos primitivos templos o simbolismo da cruz e do crucificado eram uma e mesma coisa, e a cruz do nosso corpo o sublime instrumento da nossa glorificação pela boa obra que aqui realizamos, tomando o nosso corpo como o melhor dos instrumentos de luta e triunfo.

“Dentro do inesgotável de todo o simbolismo, como o presente, cabe derivar do da esvástica ensinamentos de alto valor relativos ao enlace do Jainismo, que a adoptou, com as demais religiões troncais que, mais ou menos, deduziram deste simbolismo fundamental uma infinidade de outros que podem servir-nos para depurar tais nexos, a saber: pelos quatro esquadros com o martelo de Thor, Thot ou Hermes, tanto símbolo troncal do Hermetismo egípcio, quanto do primitivo Paganismo nórdico dos Eddas proto-semitas; pelos quatro triângulos rectângulos com o célebre símbolo de “os Desposórios”, vulgarmente conhecido por “Teorema de Pitágoras”, e com todo o Pitagorismo; por sua cruz interior com o mito da Crucificação, tanto dos primitivos mexicanos quanto dos cristãos modernos, etc., etc.”

Sendo a swástika o sinal do Pólo Primordial como ponto fixo no centro da Roda do Mundo, marcando a sua rotação, esse mesmo Pólo poderá estar marcado pela torre erecta ao céu da Quinta da Regaleira, enquanto as duas outras subterrâneas poderão igualmente associar-se ao simbolismo do eixo solsticial (torre maior) e do eixo equinocial (torre menor), motivo representado pela cruz clavígera ou dupla swástika de sentidos opostos entrelaçados, dizendo René Guénon[16]: “Tem-se, desse modo, duas chaves opostas segundo um eixo vertical, e duas outras segundo um eixo horizontal. Em relação ao ciclo anual, cuja relação com o simbolismo de Jano se conhece, o primeiro desses dois eixos é um eixo solsticial, e o segundo um eixo equinocial. Aqui, o eixo vertical ou solsticial relaciona-se com a função sacerdotal, e o eixo horizontal ou equinocial com a função real”.

Com efeito, a partir da swástika saíram todas as cruzes conhecidas. Ela contém em si a quadratura do círculo formando o octógono, como forma mediadora entre o quadrado e o círculo, que é dizer, entre a Terra e  o Céu, na linguagem muda dos símbolos. A quadratura do círculo é igualmente representada pelo emblema da Rosa+Cruz, igualmente  símbolo hermético da Pedra Filosofal, de maneira indirecta assinalada na estrela heráldica do brasão da família Carvalho patente no fundo da torre maior da Regaleira. Redimir coagulando a prata da Terra e solvendo o ouro do Céu, é o seu sentido velado, sim, a quadratura da Terra no círculo do Céu, na maior Alquimia mediante a qual se obtém o Elixir da Vida Eterna: o estado de imortalidade do Homem Perfeito.

Torre da Quinta da Regaleira, simbólica do Pólo Primordial

Torre da Quinta da Regaleira, simbólica do Pólo Primordial

De todas as entradas para o mundo subterrâneo da Regaleira, a mais interessante e simbólica é sem dúvida a da fonte monumental situada a cerca de um terço da altura da torre maior, e que está defronte para outra torre parecida com um zigurat caldaico no lado oposto do pátio. O conjunto escultórico apresenta duas grandes estátuas de dragões acorrentados de cujas cadeias sobressaem folhas de hera. Seguram um búzio que é lucerna de onde escorre água para um vaso hexagonal cujo frontíspicio, aos pés dos dragões, é decorado por uma cabeça de golfinho aureolada por chamas.

Bem se sabe que o dragão foi sempre o animal mitológico elegido para representar o Fogo da Sabedoria Divina e que no Reino Animal é representado pela salamandra, réptil vivendo junto a águas e em cavidades subterrâneas havendo-o com fartura nesta serra, tal como rãs de volume considerável, pois ambas as espécies já vi e toquei muitas vezes nos caminhos serranos.

Mas há quem considere que essas figuras fantásticas esculpidas são crocodilos ou jacarés e inclusive faça um exercício de Cabala Fonética associando o termo jacaré ao jaccara, de joccari, “jogar, simular”, e nisto está muito certo! Sim, porque toda a alegoria esotérica reserva sempre alguma mensagem iniciática, tornando-se necessário jogar com os elementos simbólicos apresentados para apreender o sentido simulado. No simbolismo tradicional, o crocodilo é tomado como o animal psicopompo representativo do Caos Primordial, o Leviathan da Bíblia, facto assinalado nas trevas cavernosas que levam ao interior da torre subterrânea da qual estes animais são os guardiões da entrada. Além disso, teosoficamente o crocodilo também simboliza o Makara – assinalado no mapa estelar por Marte e o Escorpião – associado ao sentido cosmogónico do Kama-Deva hindu que, por sua vez, equivale ao Cúpido latino, o deus tanto do Amor como da Paixão, esse mesmo Fogo subtil alegoricamente escorrendo da lucerna para resplandecer no coração ou arder no ventre.

Dispostos como se vêem, os dragões vêm a ser alegóricos do solve et coagula hermético, ficando o solve para a escultura à direita do observador, e o coagula à esquerda. As folhas de hera entrelaçadas nas cadeias, representam a própria Era a cujo início de manifestação os sobreditos Makaras ficaram encadeados, passando a servir de intermediários entre o Mundo manifestado (Cosmos, Luz) e o Mundo imanifestado (Caos, Treva), ou por outros palavras, entre o Espaço Sem Limites e o Espaço Com Limites, que é dizer, Purusha e Prakriti, “Espírito e Matéria”.

Portanto, neste figurino os “Dragões de Sabedoria” ou Makaras representados serão a imagem do Pralaya, do Caos ou Período Cósmico e Humano de absoluto repouso exterior, só havendo a absoluta actividade interior. Pralaya esse assinalado pelo búzio ou shanka, em sânscrito, tradicionalmente representado como contendo as sementes (as “águas genesíacas da Criação”) do futuro Manvantara, Cosmos ou Período Cósmico e Humano de absoluta actividade exterior, só existindo o absoluto repouso interior. Segundo René Guénon[17], “o búzio encerra o Som Primordial e Imperecível (Akshara), o monossílabo Om”. Consequentemente, o búzio representa o Som ou Verbo que deu início à manifestação da Vida, como assinala a frase latina Fiat Lux, e de imediato jorraram as águas celestes de que se alimenta a mesma Criação.

A cabeça de golfinho na fácies do vaso, com auréola chamejante, representa Sat, o “Ser Puro”, como individualização da Substância Única (Svabhavat) acompanhando a manifestação da Vida, e por este motivo de pureza absoluta como Criação directa de Deus, o Demiurgo, além de ser sinónima da Pedra Filosofal a “cabeça de delfim” equivalia entre os antigos hermetistas à Suprema Realização. Esta realiza-se sempre num espaço interior, que é tanto o seio da Terra como o lugar do coração. Este motivo terá levado a que se desse forma hexagonal ao vaso ou vaisel onde as águas caem, representativo do coração cujo “ar vital” é soprado por Saturno de quem a folha de hera copada foi o símbolo para os hermetistas medievais. Mas para Carvalho Monteiro, possivelmente ciente de todo esse simbolismo e que acaso transpôs para o seu “nacionalismo gnóstico” afim à noção que tinha de “religião pátria”, o delfim chamejante inscrever-se-ia no tema sebástico do Infante destinado a cabeça toda iluminada da Quinta Monarquia ou V Império do Mundo a irromper da “ilha encoberta”, designação dada ao Mundo Subterrâneo, que misteriosos dragões ou crocodilos guardam.

Ainda sobre o “coração e a caverna”, há a conhecida expressão tradicional “caverna do coração” de que fala René Guénon (in revista Études Traditionnelles, Paris, Dezembro de 1937). Com efeito, a palavra sânscrita guhâ é geralmente utilizada para designar uma “caverna”, mas também sendo aplicada à cavidade interna do coração, por conseguinte, ao próprio coração. A “caverna do coração” é o centro vital onde reside não só o Jivatmã ou “Espírito Condicionado” mas também o Atmã ou “Espírito Incondicionado”, idêntico a Brahma como Deus Supremo, equivalendo ao Pai. De maneira que a caverna indica a entrada para a Satya-Loka, “Lugar de Luz”, tal qual o coração aponta a embocadura para a Satya-Yuga, “Idade de Fulgor”.

A palavra guhâ deriva da raiz guh, com o sentido de “encobrir” ou “ocultar”, do mesmo modo que a raiz similar gup, de onde vem gupta, aplicada a tudo o que tem carácter “secreto” e não se manifesta exteriormente; é o equivalente do grego kryptos, origem da palavra “cripta”, também podendo ser sinónima de caverna. Essas definições filológicas referem-se ao Centro, na medida em que é considerado como o ponto mais interior e, portanto, o mais oculto. Ao mesmo tempo, referem-se ainda ao segredo iniciático, seja em si mesmo, seja enquanto simbolizado pela disposição do lugar onde se realiza a iniciação, lugar sempre oculto ou encoberto, isto é, inacessível aos profanos, defendido por uma estrutura “labiríntica” ou por qualquer outra forma, mas sempre considerando-o imagem do Centro Primordial, que como “caverna da montanha” e “caverna do coração” como acessos para a “caverna do céu”, podem ser figuradas da maneira seguinte:

Por outro lado, é importante observar que o carácter oculto ou secreto, no que diz respeito aos Centros Espirituais ou à sua figuração, implica que a Verdade ou a Sabedoria verdadeira (Sanatana-Dharma) desde há muito não é acessível indiscriminadamente, o que implica atravessar-se uma época de “obscurecimento” ou “trevas” (Kali-Yuga), cuja relatividade é superada pela iniciação verdadeira e consequente transmissão iniciática, reservada à elite ou os eleitos que pelos seus próprios esforços acabam recebendo a graça da sua Luz. Isto permite “situar” o sentido do simbolismo no decurso do processo cíclico, ou seja, da passagem da Idade da Treva à Idade da Luz.

Na Teosofia, o Mundo Subterrâneo e o Espírito Santo são conceitos interligados, como se depreende das palavras do Professor Henrique José de Souza[18]: “Ao próprio seio da Terra se denomina “Laboratório do Espírito Santo”, por ser o lugar onde vive em actividade o Fogo Cósmico que tanto vale por Kundalini. É ainda esta a razão por que se dá a tal região o nome de “ônfalo” ou umbigo, seio, útero, etc., da Terra. A força Kundalini achando-se “na extremidade inferior da coluna vertebral”, ou cóccix do homem, está em relação com o chakra ou “centro de força” Muladhara (“chakra raiz”, como sede dos demais), o qual possui 4 pétalas, ou melhor, é dividido em forma de cruz, na mesma razão da Terceira Emanação Divina ou Espírito Santo”.

A passagem das trevas à luz parece ser figurada, na Regaleira, atravessando por cima de quinze pedras intervaladas num percurso serpenteante sobre o lago onde estava a cascata, o que reproduz as cenas de iniciação entre os antigos egípcios e hindus que se encaminhavam para o Centro Oculto onde finalmente recebiam a Luz, algo idêntico ao recebimento da Graça do Divino Espírito Santo para os cristãos. Diz ainda o Professor Henrique José de Souza, desta vez sob o pseudónimo Laurentus[19], com que desfechamos este estudo:

“A Teosofia ensina que “cada um dos sete Dhyan-Choans (Luzeiros, Logos Planetários) dirige um dos sete estados de consciência que a Mónada tem de percorrer em toda a sua trajectória evolucional durante uma Ronda ou Ciclo”. Na arte musical – como expressão de tamanha verdade – a escala é formada de sete notas. E quantas vezes a mesma seja repetida (digamos 7×7 = 49, na razão de sete Raças-Mães e sete sub-raças para cada uma delas), um acorde – composto de três notas – também aí pode ser repetido, como se fora a referida Mónada deslizando do Divino (o Agudo) ao Terreno (o Médio) e o Infraterreno (o Grave), ou seja, o seio da Terra, o Sanctum-Sanctorum, onde se acha o Grande Mistério Espiritual do nosso Globo, pouco importando as opiniões contrárias… É o Lugar onde elaboram as chamas do Fogo Sagrado, o Fogo Serpentino ou Kundalini. Aquele mesmo “Fogo que, através da sarça ardente, falou a Moisés, ordenando-lhe que se descalçasse, pois estava pisando em terra sagrada”…

Lago da Cascata atravessado por quinze pedras serpenteando. Quinta da Regaleira de Sintra

Lago da Cascata atravessado por quinze pedras em trajecto serpenteante. Quinta da Regaleira de Sintra.

“O “Poder do Fogo” e a “Mãe do Mundo” são nomes dados a Kundalini, como um dos poderes místicos, digamos, o principal que faz do discípulo um Adepto ou Homem Perfeito. A sua “câmara” é o coração, mas a sua “morada” está no chakra Muladhara, situado no cóccix (uma espécie de “Bela Adormecida ou Branca de Neve à espera do Príncipe encantado, em seu túmulo de cristal”…). Tal “centro de força” ou chakra acha-se em oposição ao situado no vértice ou alto da cabeça, com o nome de chakra Coronal (Sahasrara, Brahmananda, etc.). A “coroa” dos sacerdotes, dos reis, donde “reis divinos”, do mesmo modo que a auréola dos santos da supracitada Igreja, tem a sua origem em tudo quanto acabamos de dizer.

“Conhece-se aquela maravilhosa passagem da vida do Padre António Vieira, quando ele diante do altar da Virgem Maria (com o seu papel também de Ave ou Espírito Santo) sente um estalo na cabeça, e perde os sentidos… Daquela hora em diante o discípulo ignorante passou a Mestre, Adepto, Homem Perfeito ou Iluminado. Começou a ter “o conhecimento perfeito das coisas”. Trata-se do fenómeno da “manifestação de Kundalini”, aquele mesmo que, no Dia de Pentecostes, manifestou-se sobre as cabeças dos doze Apóstolos do Cristo.

“Em resumo, mais uma vez dizemos: o Espírito Santo manifestado em todas as religiões, lendas e tradições, é a Ave Sagrada da Sabedoria Divina. E como tal, representa o Terceiro Logos. Segundo foi dito em outros lugares, a sua Morada é o Sanctum-Sanctorum (que no homem é figurado no Muladhara) da Mãe-Terra, Mater-Rhea ou Matéria. Algo assim como se disséssemos que o Espírito (Purusha) aí se une com a Matéria (Prakriti).”

NOTAS

[1] Vitor Manuel Adrião, Sintra, Serra Sagrada (Capital Espiritual da Europa). Livros Dinapress, Lisboa, Abril de 2007.

[2] Leonor Figueiredo, Palácio de Fadas espera em Sintra um multimilionário. Jornal “Correio da Manhã”, 29.1.1985.

[3] Quinta da Regaleira – Luigi Manini (Imaginário & Método – Arquitectura & Cenografia). Edição da Fundação Cultursintra, 2006.

[4] A. H. Oliveira Marques, História da Maçonaria em Portugal (das Origens ao Triunfo), três volumes. Editorial Presença, Lisboa, 1990.

[5] Leonor Figueiredo, Monteiro Milhões, o nosso “Luís da Baviera” – Quem era o homem que queria fazer de Sintra terra das mil e uma noites. Jornal “Correio da Manhã”, 30.1.1985.

[6] Frei Sebastião de Paiva, Tratado da Quinta Monarquia, pp. 242-243. Colecção Pensamento Português, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2006.

[7] Lusitanus, Sinais dos Tempos (Fim das Nações – Império Universal – Triunfo da Cruz – Fim do Mundo), pp. 261-262. Imprensa Lucas & C.ª, Lisboa, 1924.

[8] Helena Petrovna Blavatsky, As Origens do Ritual na Igreja e na Maçonaria. Editora Pensamento, São Paulo.

[9] Saint-Yves d´Alveydre, La Misión de la India en Europa. Luis Cárcamo, Editor, Madrid, 1988.

[10] René Guénon, Os Símbolos da Ciência Sagrada. Editora Pensamento, São Paulo.

[11] Sobre isto, Maria Regina Anacleto (in Arquitectura neomedieval Portuguesa, 1780-1924, Coimbra, 1997) conta uma estória relacionada com a Regaleira que me parece fábula «iniciática» a acrescentar ao número das muitas lendas urbanas que correm sobre a quinta. Diz: “Na casa estava instalado um gerador eléctrico que permitia inundar de luz não só o palacete, como toda a quinta e até, parcialmente, as galerias. Conta a tradição que Carvalho Monteiro inundava o salão da “catedral” de água, transformando-o num lago e que, seguidamente, ele e os seus convidados, efectuavam a travessia de barco. Seria nessa altura, possivelmente, que se processavam os ritos iniciáticos”.

[12] Na Regaleira, as grutas aparecem materializadas a partir das belíssimas maquetes cenográficas que Manini produziu para as óperas Mefistófeles, de Arrigo Boito, Macbeth, de Giuseppe Verdi, e Carmen, de Georges Bizet.

[13] Laurentus, Ocultismo e Teosofia. Edições em 1949, 1966, 1983, 2003. Associação Editorial Aquarius, Rio de Janeiro.

[14] Mário Roso de Luna, De Gentes del Otro Mundo. Librería de la Viuda de Pueyo, Madrid, 1917.

[15] Mário Roso de Luna, El Simbolismo de las Religiones del Mundo y El Problema de la Fidelidad (Comentários a “La Doctrina Secreta” de H. P. Blavatsky, fundadora de la Sociedad Teosófica). Editorial Eyras, Madrid, 1977.

[16] René Guénon, A Grande Tríade. Editora Pensamento, São Paulo, 1989.

[17] René Guénon, Os Símbolos da Ciência Sagrada. Editora Pensamento, São Paulo.

[18] Henrique José de Souza, O Verdadeiro Caminho da Iniciação. Edições em 1939, 1957, 1966, 1978, 2001. Associação Editorial Aquarius, Rio de Janeiro.

[19] Laurentus, Ocultismo e Teosofia. Edições em 1949, 1966, 1983, 2003. Associação Editorial Aquarius, Rio de Janeiro.