S. I.

Publicado originalmente em La France Antimaçonnique, Paris, 18 de Dezembro de 1913, assinado Le Sphynx. Republicado em Études Traditionnelles, Setembro de 1952

Quando escrevemos o nosso artigo precedente sobre A Estrita Observância e os Superiores Incógnitos, assinalando nele a singular obsessão que, em certos escritores maçónicos e ocultistas, faz ver por toda a parte a acção dos jesuítas na Alta Maçonaria do século XVIII e no Iluminismo, certamente não pensávamos ter que comprovar semelhante obsessão entre os próprios anti-maçons. Ora bem, é isso que nos assinala um artigo aparecido na Revue Internationale des Sociétés Secretes, na secção “Antimaçónica” do Índice documental[1], assinado por A. Martigue, no qual lemos esta frase verdadeiramente surpreendente: “Não se deve esquecer, quando se estuda aos Iluminados, que Weishaupt foi aluno, depois professor, com os jesuítas, e que inspirou-se muito neles deformando para os aplicar ao mal, entenda-se bem, os métodos que os Reverendos Padres de Ingolstadt aplicavam ao bem com tanto êxito… salvo quando se serviram deles para formar a Weishaupt e os seus primeiros discípulos!

Há aí insinuações que, apesar de todas as precauções que as rodeiam, revestem-se de um carácter particularmente grave sob a pena de um anti-maçom. M. Martigue estaria disposto a justificá-las? Poderia explicar-nos porque os reverendos padres do século XVIII serão responsáveis, mesmo que indirectamente, pelas doutrinas revolucionárias do I∴ Weishaupt e dos seus adeptos? Para nós, até que isso seja demonstrado, parece-nos ser um pouco como tornar responsáveis os padres do século XIX pelas teorias anarquistas desenvolvidas até aos nossos dias pelo seu ex-aluno e ex-noviço, o I∴ Sébastien Faure! Sem dúvida que poderia conjecturar bastante nesse sentido, mas isso não seria nem sério nem digno de um escritor que afirma possuir “métodos rigorosos e exactos”.

Com efeito, eis aqui o que escreve M. Martigue um pouco antes da frase já citada, a respeito de um estudo intitulado As Armadilhas da Seita: o Génio das Conspirações, publicado nos Cadernos RomanosdaAgência Internacional Roma: “O autor não parece conhecer mais que as obras do P. Deschamps, de Barruel, de Claudio Janet e de Crétineau-Joly. Isso é muito mas não é suficiente, pois apesar desses excelentes trabalhos, certamente devendo ser sempre consultados com resultados pelos estudantes em Antimaçonaria, terem sido escritos por mestres respeitáveis cujos esforços todo o mundo deve louvar e reconhecer, sem dúvida é impossível não dar fé de que datam de uma época em que a ciência e a crítica históricas não tinham avançado até ao ponto em que nos encontramos hoje.Os nossos métodos, que tendem a aperfeiçoar-se a cada dia, são mais rigorosos e exactos. Por isso, é perigoso, do ponto de vista da exactidão científica, desdenhar os trabalhos mais modernos, sendo ainda mais inoportuno desdenhá-los a-priori”.

É preciso estar muito seguro de si mesmo, e de tudo o que diz, para permitir-se reprovar uma falta de “exactidão científica” a quatro autores que estão entre os mestres mais incontestados do Antimaçonismo. Sem dúvida M. Martigue tem confiança no “progresso da ciência e da crítica”, porém, como esses mesmos “progressos” servem para justificar coisas tais como a exegese modernista e a pretensa “ciência das religiões”, é-nos muito difícil considerá-los como um argumento convincente. Não esperávamos ver M. Martigue fazendo uma declaração tão… “evolucionista”, e perguntamo-nos se os métodos que preconiza e que opõe “aos métodos e hábitos defeituosos de alguns” (a quem se refere?), não se aproximam singularmente do “método positivista” de que temos falado… Enfim, se ele conhece “os papéis do próprio Weishaupt”, como dá a entender, esperamos que não demore em comunicar-nos as descobertas que conseguiu fazer nesse sentido, especialmente no que respeita às relações de Weishaupt com “os Reverendos Padres de Ingolstadt”. Nada poderia provar melhor o valor dos seus métodos.

No entanto, não teria valido mais se tivesse dado preferência ao papel que os judeus terão desempenhado na origem do Iluminismo bávaro, assim como nos bastidores de certos “sistemas” da Alta Maçonaria? Com efeito, a esse respeito citamos a frase seguinte do estudo nos Cadernos Romanos: “As maquinações deste génio (Weishaupt) foram sem dúvida ajudadas pelos judeus, herdeiros dos ódios implacáveis da velha sinagoga, pois o famoso Bernard Lazare não retrocedeu ante esta confissão: “Houve judeus em redor de Weishaup” (O Antissemitismo, sua história e suas causas, pp. 339-340).

Assinalamos isso porque já tivemos ocasião de falar dessa influência dos Judeus, porém, há muitas outras coisas interessantes a assinalar nesse trabalho contra o qual o redactor da Revista Internacional das Sociedades Secretas dá prova de uma prevenção que raia a parcialidade. Depois de ter-lhe reprovado “a ausência de variedade na documentação”, apesar de reconhecer o seu “valor real”, acrescentou: “Há outra lacuna muito lamentável quando se quer estudar o Iluminismo, e que é a ignorância da Mística e do Ocultismo”. Voltaremos mais adiante a esse aspecto, e de momento somente sublinharemos que a Mística, que procede da Teologia, é uma coisa, e que o Ocultismo é outra totalmente diferente. Em geral, os ocultistas são profundamente ignorantes da Mística, e esta nada tem a ver com o seu pseudo-misticismo[2].

Desgraçadamente, algo faz-nos recear que as reprimendas de M. Martigue sejam suscitadas por um exclusivo acto de desagrado, como se repara no seu artigo nos Cadernos Romanos contendo uma crítica, muito justa na nossa opinião, da resenha dada por Gustave Bord na mesma Revista Internacional das Sociedades Secretas[3] sobre o livro de M. Benjamin Fabre, Um iniciado das Sociedades Secretas superiores: Franciscus, Eques a Capite Galeato. Falando de “alguns aventureiros maçónicos que procuravam impor-se aos “estúpidos” das Lojas, fazendo-se notar como mandatários dos misteriosos S. I. (Superiores Incógnitos), centro fechado de toda a Seita”, M. Bord comprova que esses aventureiros tão-só se gabavam e deduz que esses S. I. não existiam. A dedução é muito arriscada. Se os aventureiros em questão apresentaram-se falsamente como missi dominici dos S. I., isso não indica que esses últimos não existiam como, sobretudo, demonstra a convicção geral na existência de tais S. I., pois teria sido muito estranho que esses impostores tivessem inventado completamente o mandante antes do mandato. Evidentemente, os resultados do seu cálculo deveriam basear-se sobre essa convicção, pelo que com toda a evidência nada prova contra a existência dos Superiores Incogniti.

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Com efeito, isso é evidente para qualquer um que não esteja cego pela preocupação de sustentar a qualquer preço a tese contrária, porém, não será que o próprio M. Bord, negando a evidência mas pondo-se em contradição com os mestres do Antimaçonismo, desconhece totalmente (segundo as suas próprias expressões) “a disposição, a táctica e a força do adversário”?… “Há anti-maçons muito estranhos”. Era precisamente nessa pequena resenha de Gustave Bord, tão pouco imparcial como as apreciações de M. Martigue, que pensávamos quando fizemos alusão ao “método positivista” de certos historiadores. Mas eis que agora M. Martigue, por sua vez, reprova a Benjamin Fabre e a Copin-Albanceli “o desejo de apresentar o argumento de uma tese preconcebida sobre a existência dos dirigentes desconhecidos da Seita”, mas porque não reprova antes a M. Bord uma “tese preconcebida” sobre a não existência dos Superiores Incógnitos?

Veja-se o que M. Martigue responde a esse respeito: “Quanto à tese oposta à de M. Bord a propósito dos Superiores Incógnitos, é necessário distinguir: se o director dos ‘Cadernos Romanos’ entende por tais a homens de carne e osso, acreditamos que ele está errado e que M. Bord tem razão”. E depois de ter enumerado alguns dos chefes da Alta Maçonaria do século XVIII, continuou: “… Foram apresentados como mandatários de homens vivos, da mesma maneira que nos nossos dias têm o direito de fazê-lo, por exemplo, Mme Blavatsky, Annie Besant e outros chefes da Teosofia, quando nos falam dos Mahâtmâs vivendo numa Loja do Tibete”. A isso, pode-se muito bem objectar que os sediciosos Mahâtmâs foram precisamente inventados sobre o modelo, mais ou menos deformado, dos verdadeiros Superiores Incógnitos, assentando a maioria dessas imposturas numa imitação da realidade cuja mistura habilidosa torna-as mais perigosas e mais difíceis de desmascarar[4]. Por outra parte, como temos dito, nada impede de considerarmos como impostores, em certas circunstâncias, homens que no entanto puderam realmente ser agentes subalternos de um Poder Oculto. Já demos as razões disso e não vemos a necessidade de justificar tais personagens dessa acusação, inclusive da suposição de que “os Superiores Incógnitos não foram homens de carne e osso”. Nesse caso, então quem seriam para M. Martigue? Continuando a nossa citação, mais adiante vimo-lo a ensinar quem eles eram, o que para nós não foi o motivo menor de surpresa no seu artigo:

“Porém isso não é disso que se trata (sic), essa interpretação é totalmente exotérica para os profanos e para os adeptos não-iniciados”. Até aqui havíamos acreditado que o “Adeptado” era um estágio superior da “Iniciação”… mas prossigamos: “O sentido esotérico foi sempre muito diferente. Os famosos Superiores Incógnitos, para os verdadeiros Iniciados, existem perfeitamente, porém eles vivem… no Astral. E é daí que pela Teurgia, pelo Ocultismo, pelo Espiritismo, pela Vidência, etc., dirigem aos chefes das Seitas, pelo menos no dizer destes”. Logo, é a concepções tão fantásticas que deve conduzir o conhecimento do Ocultismo, ou pelo menos de um certo Ocultismo, apesar de todo o “rigor” e de toda a “exactidão” dos “métodos científicos e críticos” e das “provas históricas indiscutíveis exigidas hoje (!) pelos historiadores sérios e os eruditos”?

Das duas coisas, uma: ou M. Martigue admite a existência do “Astral” e dos seus habitantes, Superiores Incógnitos ou outros, e então temos o direito de admitir “que há anti-maçons muito estranhos” além de Gustave Bord, ou ele não admite, como queremos acreditar conforme a sua última restrição, e nesse caso não pode dizer que os que a admitem são “os verdadeiros Iniciados”[5]. Pelo contrário, pensamos que não são mais que Iniciados muito imperfeitos, e inclusive é demasiado evidente que os espiritistas, por exemplo, de maneira alguma podem ser considerados Iniciados!… Tampouco se deve esquecer que o Espiritismo não data senão da época das manifestações de Hydesville que começaram em 1847, sendo desconhecido em França antes do I∴ Rivail, chamado Allan Kardec. Pretende-se que este ”fundou a sua doutrina com a ajuda das comunicações que havia obtido, e que foram recolhidas, controladas, revistas e corrigidas por “espíritos superiores”[6], e teria sido isso, sem dúvida, um exemplo notável da intervenção dos Superiores Incógnitos, segundo a definição de M. Martigue, se desgraçadamente não soubéssemos que os “espíritos superiores” que tomaram parte nesse trabalho não estavam todos “desencarnados”, e ainda não o estão: se desde então Eugène Nus e Victorien Sardou “passaram a outro plano de evolução”, para empregar a linguagem espiritista, M. Camille Flammarion continua celebrando sempre a festa do Sol a cada solstício de Verão.

Assim, para os chefes da Alta Maçonaria no século XVIII o assunto não podia ser uma questão de Espiritismo, que ainda não existia, como tampouco de Ocultismo, pois, se então havia “ciências ocultas” não existia nenhuma doutrina chamada “Ocultismo”. Parece que foi Eliphas Lévi o primeiro a empregar essa denominação, açambarcada, depois da sua morte (1875), por certa escola sobre a qual, do ponto de vista iniciático, o melhor é não dizer nada. São esses mesmos “ocultistas” os que falam correntemente do “mundo astral” do qual pretendem servir-se para explicar todas as coisas, sobretudo as que ignoram. Foi também Eliphas Lévi quem espalhou o uso do termo “astral”, e se bem que esta palavra remonte a Paracelso parece ter sido quase desconhecida dos Altos maçons do século XVIII, que em todo o caso sem dúvida não a teriam entendido da mesma maneira que os ocultistas actuais. Estará M. Martigue, cujos conhecimentos em Ocultismo não contestamos, completamente seguro de que esses mesmos conhecimentos não o levaram a “uma interpretação “totalmente exotérica” de Swedenborg, por exemplo, e de todos os demais que cita assimilando-os, ou quase, aos “médiuns” espiritistas?

Citamos textualmente: “Os Superiores Incógnitos são os Anjos que ditam a Swedenborg as suas obras, são a Sophia de Gichtel, de Boehme, de Martines de Pasqually (sic), o Filósofo Incógnito de Saint-Martin, as manifestações da Escola do Norte, o Guru dos Teósofos, o espírito que se encarna no médium, que levanta o pé da mesa falante ou dita as elucubrações da ouija, etc., etc.” Por nossa parte, não pensamos que tudo isso seja o mesmo pelas suas “variações e matizes”, mas sendo talvez inútil procurar aí os Superiores Incógnitos. Com isso vê-se o que se pode esperar dos espiritistas, e quanto aos “Teósofos”, ou melhor, teosofistas, sabe-se muito bem o que pensar das suas pretensões. Além disso reparamos, a propósito desses últimos, que anunciam a encarnação do seu “Grande Instrutor” (Mahâguru), o que prova não ser do “Plano Astral” que contam receber os seus ensinamentos. Por outra parte, não pensamos que Sophia (que representa um Princípio) tenha alguma vez se manifestado de maneira sensível a Boehme ou a Gichtel. Quanto a Swedenborg, ele descreveu simbolicamente umas “hierarquias espirituais” nas quais todos os escalões poderiam muito bem estarem ocupados por Iniciados vivos, de maneira análoga ao que particularmente encontramos no esoterismo muçulmano.

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No respeitante a Martines de Pasqually, sem dúvida é muito difícil saber exactamente o que era o que ele chamava “a Coisa”. Porém, em todas as partes onde vimos essa palavra empregada por ele, parece não ter querido designar outra coisa senão as suas “operações”, o que mais vulgarmente se entende por a Arte. São os ocultistas modernos que pretendem ver aí “aparições” pura e simplesmente, em conformidade com as suas próprias ideias, apesar do I∴ Franz von Baader previne-nos que “será errado pensar que a sua Física (de Martines) reduzia-se aos espectros e aos espíritos”[7]. Havia nisso, como ademais no fundo de toda a Alta Maçonaria dessa época, algo muito mais profundo e mais verdadeiramente “esotérico”, que o conhecimento do Ocultismo actual não basta de modo algum para poder penetrar.

Contudo, o mais singular é quando M. Martigue nos fala do “Filósofo Incógnito de Saint-Martin”, quando o próprio Saint-Martin e o Filósofo Incógnito eram o mesmo, não sendo o segundo mais que um pseudónimo do primeiro. Conhecemos, é certo, as lendas que circulam a respeito em certos meios, porém veja-se como ele põe admiravelmente as coisas no seu lugar: “Os Superiores Incogniti ou S. I. foram atribuídos pelo um autor fantasista ao teósofo Saint-Martin, talvez porque este assinava as suas obras como um Filósofo Incógnito, nome de um grau dos Fileletos (regime de que por outro lado nunca fez parte). É certo que o mesmo fantasista atribuiu o livro Dos Erros e da Verdade, do Filósofo Incógnito, a um Agente Ignoto, que se intitulava ele mesmo como S. I. Quando alguém se atrela ao incógnito, não deveria atrelar-se demasiado!”[8] Vê-se assim bastante bem quanto perigoso é talvez aceitar sem controlo as afirmações de certos ocultistas, pelo que em semelhantes casos convém sobretudo mostrar-se prudente e, segundo o conselho do próprio M. Martigue, “não exagerar nada”.

Assim, seria um grande equívoco levar esses mesmos ocultistas a sério quando se apresentam como os descendentes e os continuadores da Antiga Maçonaria, e sem dúvida encontramos como que um eco de tais assertivas “fantásticas” na frase seguinte de M. Martigue: “Este assunto (dos Superiores Incógnitos) levanta problemas que estudamos no Ocultismo, problemas para os quais os Franco-Maçons do século XVIII perseguiram com tanto ardor a solução”, sem contar que esta mesma frase, interpretada demasiado literalmente, poderia fazer passar o redactor da Revista Internacional das Sociedades Secretas por um “ocultista” aos olhos “dos leitores superficiais que não têm tempo para aprofundar estas coisas”.

“Porém, continua ele, neste assunto não se consegue ver mais claro mesmo conhecendo-se a fundo as Ciências Ocultas e a Mística”. Isto é o que queria provar contra o colaborador da Agência Internacional Roma, mas porque não provou, sobretudo contra ele mesmo, que esse conhecimento deverá estender-se muito mais longe do que supõe? “É por isso que tão poucos anti-maçons conseguem penetrar nesses arcanos que nunca conhecerão os que pretendem permanecer no terreno positivista”. Isto é, na nossa opinião, muito mais justo que todo o precedente, porém, não estará um tanto em contradição com o que M. Martigue nos diz dos seus “métodos”? E se não se adere à concepção “positivista” da História, então porque toma a dianteira contra todos da defesa de M. Gustave Bord, mesmo quando este é menos defensível?

“É impossível compreender os escritos de homens que vivem no sobrenatural e deixam-se dirigir por ele, como os teósofos swedenborguianos ou martinistas do século XVIII, se não se fizer o esforço de estudar a língua que falam e as coisas que tratam nas suas cartas e nas suas obras. E de antemão menos ainda pretender-se negar a existência da atmosfera sobrenatural em que estavam submersos e que respiravam a cada dia”. Porém isto, além de voltar-se contra M. Bord e as suas conclusões, não é razão para passar de um extremo a outro e atribuir mais importância do que convém às “elucubrações” das tabuinhas espiritistas ou de alguns pseudo-iniciados, chegando ao ponto restringir todo o “sobrenatural” em questão, qualquer que seja a sua qualidade por outro lado, à estreita interpretação do “Astral”.

Outra observação, M. Martigue fala dos “teósofos swedenborguianos ou martinistas” como se essas duas denominações fossem quase equivalentes. Com isso, não estaria tentado a acreditar na autenticidade de certa filiação que sem dúvida está muito afastada de todo o “dado científico” e de toda a “base positiva”? “A este respeito, acreditamos dever dizer que quando Papus afirma que Martines de Pasqually recebeu a iniciação de Swedenborg no decurso de uma viagem a Londres, e que o sistema propagado por ele com o nome de rito dos Élus Coensnão é mais que um Swedenborguismo adaptado, esse autor abusa ou procura abusar dos seus leitores no interesse de uma tese muito pessoal. Com efeito, para expedir semelhantes afirmações não basta ter lido em Ragon, que por sua vez leu em Reghelini, que Martines tomara o rito dos Élus Coensdo sueco Swedenborg. Papus deveria ter-se abstido de reproduzir, ampliando-a, uma afirmação que não assenta sobre nada sério. Deveria ter procurado as fontes do seu documento e assegurar-se de que há escassas relações entre a doutrina e o rito de Swedenborg e a doutrina e o rito dos Élus Coens… Quanto à precedente viagem a Londres, não teve lugar senão na imaginação de Papus[9]. É enojante ver um historiador deixar-se atrapalhar pela sua imaginação… “em Astral”. Infelizmente, as mesmas observações podem aplicar-se a muitos outros escritores que se esforçam por estabelecer as comparações menos credíveis “no interesse de uma tese pessoal”, frequentemente demasiado pessoal!

Mas voltemos a M. Martigue, que mais uma vez nos adverte que “sem o socorro dessas Ciências, chamadas Ocultas, é de todo impossível compreender a Maçonaria do século XVIII e inclusive, o que surpreenderá aos não-iniciados, a de hoje”. Aqui, um ou dois exemplos nos teriam permitido apreender melhor o seu pensamento, porém, vejamos a continuação: “Desta ignorância (do Ocultismo) compartilhada não somente por profanos mas também por Maçons, inclusive os investidos nos Altos Graus, provêm erros como aquele de que nos ocupamos. Este erro lançou a Antimaçonaria na busca dos Superiores Incógnitos que, sob a pena dos verdadeiros Iniciados, são simplesmente manifestações extranaturais de seres viventes no Mundo Astral”. Como já dissemos, por nossa parte não acreditamos que os que possam sustentar essa tese sejam “verdadeiros Iniciados”, porém, se M. Martigue que a afirma acredita verdadeiramente nela, não percebemos muito bem porque se apressa a acrescentar: “O que não prejudica nada da sua existência (desses Superiores Incógnitos), como ademais tampouco do dito “Mundo Astral”, sem parecer dar-se conta que assim põe tudo em causa. Inclusive “não pretendendo indicar mais do que pensavam os Altos Maçons do século XVIII”, estará bem seguro de interpretar fielmente o seu pensamento, e de não ter simplesmente introduzido uma nova complicação num dos problemas para os quais esses II∴ “perseguiam ardorosamente a solução”, porque esta solução devia ajudá-los a tornar-se os “verdadeiros Iniciados” que ainda não eram, evidentemente enquanto não a houvesse encontrado? É que todavia os “verdadeiros Iniciados” são mais raros do que se pensa, mas isso não quer dizer que não os haja ou que só existam “no Astral”. E porque, apesar de viverem na Terra, esses “Adeptos”, no sentido verdadeiro e completo da palavra, não poderão ser os verdadeiros Superiores Incógnitos?

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“Por conseguinte, escrevendo as palavras Superiores Incógnitos, S. I., os Iluminados, os Martinistas, os membros da Estrita Observância e todos os Maçons do século XVIII falam de seres considerados como tendo uma existência real superior, sob a direcção dos quais cada Loja e cada adepto iniciado (sic) estão colocados.” Ter feito dos Superiores Incógnitos uns “seres astrais” depois indicar-lhes o papel de “auxiliares invisíveis” (invisible helpers), como dizem os teosofistas, não é querer aproximá-los demasiado dos “guias espirituais que dirigem igualmente desde um “Plano superior” aos médiuns e aos grupos espiritistas? Talvez não seja inteiramente “nesse sentido que escrevem Eques a Capite Galeato e os seus correspondentes”, e então poderá falar-se de uma “existência superior” que pode ser “realizada” por certas categorias de Iniciados, os quais não são “invisíveis” nem “astrais” senão para os profanos e os pseudo-iniciados a que já fizemos algumas alusões. Contudo, todo o Ocultismo contemporâneo, onde se inclui o Espiritismo, o Teosofismo e outros Movimentos “neo-espiritualistas”, não pode, diga o que disser M. Martigue, levar a mais que “uma interpretação totalmente exotérica”. Porém, se é difícil conhecer exactamente o pensamento dos Altos Maçons do século XVIII, e por conseguinte “interpretar as suas cartas como eles mesmos as compreendiam”, será indispensável que tais condições sejam cumpridas integralmente para não equivocar-se no decurso destes estudos, já de si tão difíceis, mesmo quando se está “no bom caminho”? Há alguém, entre os anti-maçons, que possa dizer que está “no bom caminho” com exclusão de todos os outros? Os assuntos estudados são demasiado complexos para isso, inclusive sem fazer intervir o “Astral” onde nada tem a ver. Portanto, é sempre “fastidioso desprezar a-priori”, inclusive em nome da “ciência” e da “crítica”, alguns trabalhos que, como disse muito bem o redactor dos Cadernos Romanos, não são definitivos, o que não impede que não sejam muito importantes “como o são”. Sem dúvida que M. Gustave Bord terá pretensões de imparcialidade, pelo menos supomos, todavia, terá ele verdadeiramente essa qualidade no grau necessário para realizar o ideal de M. Martigue, “o historiador advertido que sabe encontrar o melhor em todas as partes, cuja crítica sã permite julgar o valor dos documentos”? Ainda mais porque pode haver várias maneiras de estar “no bom caminho”, e basta estar nele, de uma ou de outra maneira, para não “equivocar-se completamente”, sem que inclusive seja “indispensável iluminar a boa rota das tenebrosas luzes (?!) do Ocultismo”, o que desde logo deixa muito claro!

M. Martigue conclui nestes termos: “No entanto, reconhecemos de bom grado que se compreende o poder oculto no sentido que acabamos de indicar, o redactor dos Cadernos Romanos tem razão ao escrever como o fez: “Comprovamos que nenhum documento comprovativo foi apresentado, até agora, contra o poder central oculto da Seita”. Porém se entender-se por tais palavras, contrariamente aos Franco-Maçons iniciados do século XVIII, um comité de homens de carne e osso, somos obrigados a retorquir: “Comprovamos que nenhum documento comprovativo foi apresentado até agora a favor desse comité dirigente desconhecido. E cabe aos que afirmam essa existência dar a prova definitiva. Aguardamos. O assunto permanece em aberto”. Com efeito, ele continua sempre em aberto, e se é certo que “é dos mais importantes”, contudo quem é que alguma vez pretendeu que os Superiores Incógnitos, inclusive “em carne e osso”, constituíam um “comité” ou até uma “sociedade” no sentido vulgar da palavra? Essa solução parece muito pouco satisfatória quando se sabe, pelo contrário, existirem certas organizações verdadeiramente secretas muito mais próximas do “poder central” que a Maçonaria exterior, cujos membros não têm nem reuniões, nem diplomas, nem meios de reconhecimento. É bom ter respeito pelos “documentos”, porém, compreenda-se ser muito difícil descobrir “comprovativos” quando se trata precisamente de coisas que, como escrevemos anteriormente, “não são de natureza que possa ser provada por um documento escrito qualquer”. Ainda nisso é preciso “não exagerar”, e sobretudo é preciso não deixar-se absorver exclusivamente pela preocupação “documental”, a ponto de perder de vista, por exemplo, que a Antiga Maçonaria reconhecia vários tipos de Lojas trabalhando “sobre planos diferentes”, como diria um ocultista, o que no pensamento dos Altos Maçons de então não significava de modo algum que o “acesso” a algumas dessas Lojas tivesse lugar “no Astral”, cujos arquivos, ademais, não são acessíveis senão aos “estudantes” da escola de Leadbeater. Se há hoje S. I. “de fantasia” que pretendem reunir-se “no Astral”, é para não confessar que simplesmente não se reúnem, e se com efeito os seus “grupos de estudos” têm sido transportados “a outro Plano”, não é senão da maneira comum a todos os seres: “em sonho” ou “desencarnados”, quer se tratem de individualidades ou de colectividades, de “comités” profanos ou de “sociedades” pretensamente “iniciáticas”[10]. Nestas últimas há muitas pessoas que querem fazer-se passar por “místicos” mas que não são mais do que vulgares “mistificadores”, às quais não importa juntar o charlatanismo ao Ocultismo[11], inclusive sem possuir os “poderes” ocasionais que às vezes exibiram um Gugomos ou um Schoepfer. Talvez também valesse melhor estudar um pouco mais acerca das “operações” e da “doutrina” destes últimos, por muito imperfeitamente iniciados que tenham sido, que as dos pretensos “magos” contemporâneos que não são de todo iniciados, ou pelo menos não o são em nada sério, o que vem a ser o mesmo.

Tudo isso, entenda-se bem, não significa que não seja bom estudar e conhecer o Ocultismo já “vulgarizado”, mas não lhe dando mais que a importância muito relativa que merece, mas sem procurar nele o que não possui e demonstrar, se houver oportunidade, toda a sua insanidade, a fim de precaver os que estiverem tentados a deixar-se seduzir pelas aparências enganosas de uma “ciência iniciática” completamente superficial e de segunda ou terceira mão. Não se deve criar nenhuma ilusão: se a acção dos verdadeiros Superiores Incógnitosexiste um pouco, apesar de tudo, até nos movimentos “neo-espiritualistas” tratados, quaisquer que sejam os seus títulos e as suas pretensões, não é mais senão de uma maneira tão indirecta e tão afastada como na Maçonaria mais exterior e mais moderna. Já provámos o que acabamos de dizer e teremos ocasião, em próximos estudos, de trazer a respeito outros exemplos não menos significativos.

NOTAS

[1] Número de Outubro de 1913, páginas 3 – 725 a 3 – 737.

[2] Opinião arbitrária do autor afim às controvérsias acesas do cenário ocultista dos fins do século XIX mas com a qual não concordamos, pois que na realidade a Mente e o Coração, a Cultura e o Carácter, deverão estar em perfeito equilíbrio entre si como “marca real” do verdadeiro Ocultista (nota do tradutor).

[3] Número de 5 de Setembro de 1913, página 3 – 071 e seguintes.

[4] Opinião nada imparcial do autor na época em desagravos pessoais com a Sociedade Teosófica, em parte devido a conflitos ideológicos com Papus, em parte devido a discordâncias abertas com Henry S. Olcott que tomara a defesa aberta da entretanto falecida Helena P. Blavatsky. Não fora isso, decerto M. R. Guénon teria aceitado de bom grado que os Superiores Incógnitos do Ocidente e os Mahatmas do Oriente são precisamente os mesmos Seres, ou seja, os preclaros Membros do Governo Oculto do Mundo instalados estrategicamente por todo o Orbe (nota do tradutor).

[5] Tanto M. Guénon como os autores alvos das suas críticas parecem desconhecer que o verdadeiro Iniciado relaciona-se ao Plano Astral Cósmico, Kama-Fohat, e não tanto ao Astral Planetário, Kâmico, o Mundo dos Desejos e Emoções campo de todas as modalidades psíquicas que por norma não lhes é motivo de empatia ou afinidade (nota do tradutor).

[6] Dr. Gibier, Le Spiritisme, pp. 136-137.

[7] Os Ensinamentos Secretos de Martines de Pasqually, p. 18.

[8] Notícia histórica sobre o Martinesismo e o Martinismo, pp. 35-36 em nota.

[9] Notícia histórica sobre o Martinesismo e o Martinismo, p. 17 em nota.

[10] Opinião arbitrária do autor que mesmo assim concordamos com ela em tudo, excepto não se poder afirmar categoricamente que uma pessoa, pensando e sentindo como normalmente o faz, que veja “de fora” o seu próprio corpo estendido no leito, por exemplo, isso seja um simples sonho ou devaneio sensorial por uma qualquer perturbação psicossomática. Sabemos bem que René Guénon teve muitos desses “sonhos djins”, para usar da sua linguagem islâmica, e logo sabia de antemão estar sendo muito pouco imparcial com tudo quanto se referisse ao Ocultismo e a Teosofia, isso mais por desavenças pessoais com alguns teósofos e ocultistas, nomeadamente Papus, do que qualquer outra coisa, criando assim uma inibição ou preconceito que destoa largamente do resto da sua obra analítica e crítica do mais extensivo valor simbológico e tradicional (nota do tradutor).

[11] Absolutamente de acordo! (nota do tradutor)

Texto traduzido do original francês por Vitor Manuel Adrião