Kundalini e o Grande Arcano da Tradição – Por Hugo Martins Sábado, Jan 17 2015 

0 - Logos - capa

“Porque só a vós é dado conhecer os Reinos do Céu”

Mateus, 13:11

O GRANDE ARCANO

Arcano é entendido como “um profundo segredo, um mistério, um conhecimento misterioso inacessível à maioria das pessoas”, ou “uma essência secreta, remédio ou elixir”. No coração da Grande Tradição Primordial, no seu conspecto místico e religioso, persiste um segredo, uma verdade universal denominada de O Grande Arcano. Revela-se ao longo da História, feita sobretudo por Ordens Iniciáticas, portanto, fechadas aos comuns mortais despreparados mental e psicofisicamente, ter sido expressamente proibido revelar os segredos do Grande Arcano ao público geral. Os seus mistérios permaneceram um legado escondido sob o véu de contos e parábolas místicas e também na herança do mundo da Arte e Literatura, os quais muitos quiseram imitar por a tudo admirarem indiscriminadamente a despeito da ignorância total do que realmente seja, portanto, escassos entenderam-no, e estes eram efectivamente afiliados, com ordem e regra, ao mundo sagrado da Verdadeira Iniciação, tomasse a forma e nome que fosse de acordo com a mentalidade dos respectivos períodos históricos.

Escondido nas faces silenciosas dos monumentos egípcios, sob o olhar prudente dos deuses védicos ou por entre as linhas encriptadas dos antigos livros de Alquimia, esse segredo sempre constituiu a essência da Doutrina Secreta ou Gupta-Vidya. Observa-se que ao longo da História da Humanidade só os eleitos (por seus próprios méritos e esforços) seriam iniciados nos mistérios dessa grande Verdade universal. E esses poucos guiariam o restante da Humanidade legando-lhe, como orientação, os símbolos externos da mesma Verdade.

Este Grande Arcano, o Segredo dos Segredos, foi tenazmente protegido e só transmitido àqueles que haviam provado a sua pureza moral, evolução mental, espiritual, e mérito de confiança. No entanto, como a Humanidade degenerou-se ao longos dos tempos em barbaridade e crueldade, o Conhecimento Divino foi ocultado para sobreviver apenas em alguns lugares predestinados do Mundo.

Durante muitos séculos, as histórias e mitos acerca do Grande Arcano atraiu a Humanidade ávida de o saber. O conhecimento sobre o mesmo é universal, aplica-se a todas as verdadeiras religiões e tradições místicas.

Se a serpente de Adão e Eva é da tradição judaico-cristã, a serpente alada de Quetzalcoatl é da tradição asteca, ambas as serpentes vistas naquelas que escalam o caduceu do deus grego Hermes e que também se vêem nas tradições hindu e budista, todas elas símbolos contendo o mesmo ensinamento – o Grande Arcano da Tradição.

As bases doutrinais das diferentes tradições do Leste ao Oeste, todas elas descrevem a mesma meta: a união com a Divindade. Toda a tradição religiosa provê o roteiro místico ao fiel que quer prosseguir até alcançar a unificação com o Divino. A própria palavra religião deriva da raiz latina religare, que significa união. O mesmo sentido para a palavra yoga, derivada da raiz sânscrita yug, também significando união. Portanto, toda a fórmula religiosa procura expressar ao mesmo núcleo de conhecimento e realização, e com as ferramentas místicas preconizadas pela mesma e o seu uso correcto, o adepto de qualquer religião tradicional ou tradição religiosa reconhecida poderá penetrar o conhecimento da experiência directa com o Divino. Desta forma, podemos afirmar que há uma só e verdadeira Ciência, um só verdadeiro Caminho, mas que se mostram com diferentes nomes e aspectos, a quem se deu o nome de Filosofia Perene ou Sanatana-Dharma, Prisca Teologia ou Gupta-Vydia, etc., todas elas como expressão da Sabedoria Divina ou Teosofia (em grego, θεόςσοφία, Theosophia, Sabedoria ou Conhecimento de Deus).

No que diz respeito à Tradição Ocidental, o “caminho estreito” da realização espiritual foi denominado Gnôsis, que em grego significa Conhecimento, e em hebreu o mesmo “caminho estreito” é designado Daath ou Daas, também significando Conhecimento. Esse caminho é representado pela famosa Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal no livro do Génesis, e a pista para entrar na experiência directa de Deus pode ser encontrada no entendimento desse símbolo da Árvore Primordial expressiva da Genealógica dos Deuses. O Génesis, como o ensinamento judaico-cristão da Criação, foi escrito de forma simbólica a fim de transmitir o conhecimento do Grande Arcano àqueles que tinham os olhos e os ouvidos alerta, ou seja, olhos capazes de ver o espírito oculto sob o aparente, e ouvidos ou entendimento para o perceber.

Por exemplo, a Tanakh ou Velho Testamento exteriormente mostra-se como uma instrução confessional básica sob a forma de contos e histórias fáceis de apreender pelas mentes simples, ainda que em verdade seja um veículo do segredo do Conhecimento Supremo. O Judaísmo foi influenciado directamente por duas das mais antigas civilizações registadas, a da Suméria e da Babilónia, civilizações famosas pelas suas escolas de mistérios. Assim, todas as histórias e nomes contidos nos livros de Moisés ocultam um significado mais profundo além do aparente. Será como diz a obra mística hebraica do século XIII, Sepher-Ha-Zohar ou Livro do Esplendor: “As narrativas da doutrina são o seu manto. Os simples olham só para a vestimenta; e mais eles não sabem. Os instruídos, contudo, vêem não somente o manto mas o que o manto encobre”. Disto conclui-se que a Bíblia nos seus ensinamentos é simbólica. As personalidades e eventos são o disfarce ou véu que oculta o sentido real da mensagem. Este Conhecimento Interior ou Supremo foi ocultado ou, no caso do Cristianismo confessional, completamente rejeitado. Inclusivamente o Quinto Bodhisattva, o Christus do Ciclo de Piscis, manifesto como Jesus de Nazaré (Jeoshua Ben Pandira), ensinou a um público restrito a Doutrina Secreta: “Porque a vós (os discípulos) é dado conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles (os outros) não lhes é dado” (Mateus, 13:11). Esses que receberam o Ensinamento Secreto acabaram sendo perseguidos, e por força das circunstâncias forçados a legar o Conhecimento num grau muitíssimo menos elevado em que se baseia a catequese dos simples, portanto, simples conhecimento exotérico. Como resultado, a Igreja moderna herda meramente o “casaco”, a “casca” da Tradição Primordial que o Cristo ministrou, para não falar das repetidas edições alteradas do texto original que a Bíblia sofreu.

A origem do Segredo dos Segredos recua ao início da Humanidade, contendo-se na Tradição Primordial que foi sempre zelosamente conservada no resguardo seguro dos Colégios Iniciáticos. No entanto, sempre se mantiveram nos textos sagrados as alusões por parábolas ou símbolos escritos ao Grande Segredo. Na Bíblia, como aponta Eliphas Lévi, “o Arcano é essa Ciência de que a Bíblia faz referência simbólica, quando relata que a serpente disse ao casal primitivo: Sereis como deuses, sabendo o Bem e o Mal”. Por “casal primitivo” o célebre ocultista refere-se a Adão e Eva, como estão assinalados no texto do Génesis. Podemos aferir que o Grande Arcano debate-se logo ao início com o princípio da Criação, como iremos analisar.

Concluiu-se mais atrás que a Bíblia, nos seus ensinamentos, é simbólica, e como tal também o mito da Criação não será excepção, compreendendo que Adão e Eva são a figuração arquetipal humanizada da Criação e a sua respectiva manifestação polarizada, em que todo o Universo que conhecemos se sedimenta e movimenta. Teosoficamente, a polarização é a primeira manifestação da Substância Primordial, o Absoluto, o Ain-Suph, o Svayambhuva, o Tudo-Nada, etc., que obedecendo a uma Lei cíclica polariza-se em Espírito (Purusha) e Matéria (Prakriti), ou em Pólo Positivo e Pólo Negativo, o Masculino e Feminino da Manifestação. Na fase de polarização, tudo é finito, limitado, mortal, para no final voltar à Unidade Indivisível como Deus Pai-Mãe. A Substância Primordial passa do não-Ser para o Ser através da sua primeira manifestação – a polarização. Não pode haver manifestação sem polarização. No fundo, esta manifestação é designada pelos sacerdotes hindus como Brahma, expressando o Manifestado, o que já se polarizou, o que existe no Mundo das Formas.

Portanto, se antes da polarização e respectiva manifestação ainda nada existia, então conclui-se que a Substância Primordial (o Adão Primordial) continha em si os dois princípios (masculino e feminino), logo, era andrógina como Deus Pai-Mãe. Ora, quando analisamos os textos alicerces da cultura judaico-helénica do Ocidente, essa realidade está patente. No Banquete de Platão, que debruça-se sobre as origens do Amor, o mito do Andrógino original é referido por Aristófanes como explicação: “No início, a raça dos homens não era como hoje. Era diferente. Não havia dois sexos, mas três: homem, mulher e a união dos dois. E esses seres tinham um nome que expressava bem essa sua natureza e hoje perdeu o seu significado: andrógino”. Por sua vez, na Bíblia aparece a denominação hebraica Bereshidt bara Elohim no mesmo texto do Génesis, cuja tradução literal comum é: “No início Deus cria”; mas essa tradução hebraica no Zohar diz: “Na Sabedoria Elohim cria”. No entanto, Elohim é palavra hebraica construída no plural e a sua raiz El designa de Deus, como masculino. A forma feminina de El é Eloah, que quer dizer Deusa. Como Elohim é plural, significa assim Deuses e Deusas, como masculino/feminino. Em contraste com a imagem familiar de um homem velho homem, Deus é estabelecido nas primeiras três palavras da Bíblia como Andrógino, contendo ambos os princípios masculino e feminino. Assim, Elohim é o Anjo ou Malachim (Hierarquias Criadoras) tomado por Jehovah ou Yahweh, o Logos Criador da Humanidade, e cria o Homem à Sua imagem e semelhança como Andrógino manifestado Adam-Heve (Adão e Eva), sendo Ele mesmo na própria Cabala judaica o Homem Primordial, Adam-Kadmon (estilizado como Ha-Kadmoni, o “Original”), o Andrógino Celeste vertido ou projectado no Seio da Terra como Adam-Chavaoth. Trata-se da mesma realidade sob roupagens ou aspectos diferentes dando expressão às Três Hipóstases Divinas: Adam-Kadmon = Primeiro Logos; Adam-Heve = Segundo Logos; Adam-Chevaoth = Terceiro Logos. Tanto vale por Céu, Terra e Inferno ou Inferius, Lugar Inferior, Interior.

1 - Andrógnino

Se assumirmos, então, Deus como a Grande Entidade Incógnita da Criação (Maximus Superius Incognitus), o Logos Único Criador, e o Homem preserva a Sua imagem e semelhança, teremos a confirmação de que esse Poder Divino só pode estar presente no mesmo Homem nos seus dois princípios fundamentais – a Mente e o Sexo. Mente porque cria através da ideia, e Sexo porque procria através da carne. Toda a problemática da existência humana prende-se a esse binómio e é sobre ele que o Grande Arcano se debruça, posto estar presente em todas as tradições religiosas e místicas do mundo. Se assim não fosse, nenhum significado teria no Oriente o culto shivaíta aos objectos sagrados yoni e lingam, tidos como o falo e o útero de Shiva e de Parvati, a sua contraparte, sendo o próprio “Olho de Shiva”, o sinal tilaka, gravado na fronte das castas mais elevadas, a dos sacerdotes, etc. O mesmo acontece na cultura judaica com a tefilin, “rogação”, sobre a fronte e a mão direita (“Deus em pensamento e acção”) no ofício divino, ao passo que na cerimónia Brit Milah da circuncisão esta destina-se a assegurar a “pureza” necessária à entrega a Deus e à excisão do excesso de prazeres supérfluos da carne. Enquanto isso, no Cristianismo é a água sacramentada do exorcismo e aceitação de Deus que se derrama sobre a cabeça, logo seguida do santo óleo imposto em sinal de cruz na fronte durante a cerimónia do Baptismo. Até em algumas tribos africanas verifica-se desenharem na fronte um símbolo muito semelhante à letra hebraica Shin. Na tradição islâmica, na salat (oração) tem-se a prostração do orante a Allah quando toca com a fronte no solo, enquanto mulheres escondem o seu corpo inteiro, nomeadamente os cabelos, com a burqa (à semelhança das religiosas cristãs que em freiria se “entregam a Deus”), cujo véu só é desvelado pelo esposo a sua esposa após o matrimónio. Nisto, não é Maria Madalena, a “santa prostituída”, representada iconograficamente com os longos cabelos cobrindo-lhe o corpo em postura de espera no leito matrimonial?

2 - mulheres

Como pedra chave desta questão e compreensão do Arcano, encontra-se o mito de Adão e Eva e o fruto proibido que os levaria a ser expulsos do Edén ou Paradhesa, vulgo Paraíso, por desobediência a Deus. Por apenas uma maçã a Humanidade inteira tornou-se pecadora? É de facto impressionante, mas há que descortinar a verdade que perpassa a letra. O aproveitamento in littera dessa história bíblica permitiu a adopção exotérica do Pecado Original – relacionado ao Mal Cósmico proveniente da anterior Cadeia Lunar e consequente queda dos Anjos revoltados no Sexo e Geração na presente Cadeia Terrestre – por intermédio de Santo Agostinho nas suas Confissões, que haveria de marcar dramaticamente toda a cultura religiosa ocidental. É certo que Santo Agostinho “tocou na ferida” ou, podemos dizer, na essência do Grande Arcano da Tradição, contudo, em vez de ter esclarecido adensou ainda mais o seu mistério, logo, aumentando a incompreensão. Esse Doutor da Igreja, convertido a ela depois de longos anos de militância neoplatónica no Maniqueísmo, na sua contra-resposta ao «herético» Pelágio elaborou a seguinte afirmação: “O pecado original – o mal que entra no mundo por causa da desobediência de Adão a Deus – transmite-se depois pela sexualidade”. Aqui começamos a perceber onde reside o busílis principal do Grande Arcano.

Pelágio, por sua vez, contrapôs ineficazmente que, pela liberdade de acção, o Homem redimia-se a si mesmo e que o pecado de Adão não era transmissível nem hereditário, logo, estava isento do mesmo. Agostinho levou a melhor e assim iniciou a Era de “um Deus déspota inaugurando a catequese da infusão maniqueísta do medo e terror para melhor impressionar e sujeitar as almas dos crentes”, tendo sido “o promotor desta moral que identifica o sexo com o pecado e a concupiscência”. Conclusão: o sexo foi o resultado da desobediência a Deus no Éden e tornou-se o pecado na Terra.

Analisando o mito do Éden, verifica-se ter existido nele duas Árvores, a da Vida e a do Conhecimento. O fruto da desobediência provém da Árvore do Conhecimento, a qual foi negada a Adão e Eva: “E ordenou o Senhor Deus ao Homem, dizendo: De toda a árvore do Jardim comerás livremente. Mas da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres certamente morrerás” (Génesis, 2:16,17). Ora, como vimos anteriormente, Conhecimento em grego é Gnôsis, e em hebreu, Daath. Daath é a 11.ª Esfera oculta (Sephiroth) encontrada na Otz Chaim (Árvore da Vida e do Saber) do sistema de Kaballah, da qual geralmente nunca se fala ou revela. Daath, Gnôsis, é portanto a Ciência do Grande Arcano, aquele Conhecimento Secreto de que tem sido privado a Humanidade. Claro que para o leitor atento o “Conhecimento” de que fala a Bíblia relaciona-se à sexualidade, consequentemente, a Árvore do Conhecimento, Daath, Gnôsis, será uma referência directa à sexualidade. Qual será então o propósito dessa referência ao sexo e o seu papel no destino de Adão e Eva? Da mesma forma, por que essa referência bíblica foi condenada como pecado por Santo Agostinho? Assim, por entre as linhas tortuosas da exegética e hermenêutica começa lentamente a desvelar-se o segredo do Grande Arcano. Mas prossigamos.

OS MISTÉRIOS DO SEXO

Já um eminente ocultista afirmava: “O Homem é o mais ignorante das coisas em que mais se manifesta”. Em determinados departamentos da Natureza isso é verdade, e provavelmente em nenhum outro departamento “manifestado” do seu ser ela será mais contundentemente que no respeitante à sua natureza sexual. Logicamente o Homem é consciente da sua condição físico-anímica estar dividida em duas naturezas masculina e feminina, mas praticamente pouco ou nada sabe dos Princípios Espirituais que sublinham a expressão física do Sexo. Tem plena consciência sensorial de que a união de dois corpos de sexos contrários é necessária para fins de procriação, mas é terrivelmente ignorante dos processos interiores que produzem os germes reais da Vida e da Transcendência. Está mais ou menos familiarizado com o facto de que nos estratos mais inferiores de existência animada predominam os organismos bissexuais, e que ocasionalmente essa natureza bissexual manifesta-se entre os homens, o dito hermafrodita, mas a ciência médica é muito peremptória em apontar tais produções como “monstruosas”, nisto nada tendo a ver com o chamado Hermafrodita Divino ou Uraniano Perfeito – o Rebis da alegoria alquímica – relacionado à Humanidade da futura Cadeia de Vénus, timidamente já despontando e se manifestando nesta Terrestre, vindo gradualmente a aumentar o seu domínio.

Portanto, a fim de possibilitar que o leitor possa compreender claramente os vários elos de ligação nas ramificações místicas da sexualidade, de forma a ver a sua perfeita harmonia e compreender a sua relação com a parte oposta, vamos primeiro falar da origem do Sexo; em segundo lugar, da sua natureza e funções; em terceiro lugar, apontar as relações entre os sexos opostos, e por último apresentar uma breve explicação de como tudo isso se relaciona com o Homem, o Universo e a imortalidade da Alma. Para se começar a entender o Grande Arcano, é necessário entender a essência perene do Sexo e como ele está presente no Princípio da Criação, na sua expressão como Universo e por fim no Homem (o único animal consciente do mesmo, motivo de ser hominal), ou seja, em Tudo!

A Divindade é uma Unidade que se expressa ou manifesta como uma Dualidade, portanto, Trina como Vida, Energia, Consciência. Esta é a Trindade Eterna do Ser, a triplicidade presente em tudo e em todas as coisas. O Oceano infinito do Espírito sem forma late dentro do seu peito contendo tudo o que foi, é e há-de vir a ser. É Aquilo a quem os sábios orientais designam como Parabrahma. Esta Causa per se contém todos os elementos da sexualidade em seu estado original indistinto. Quando se deram os primeiros impulsos do Pensamento Original de que evoluiu a Ideia Divina como Brahma manifestado do seio de Parabrahma, surgiu a Natureza revestida de duas modalidades de movimento cíclico centrífugo e centrípeto ou de sístole e diástole, noutros termos, os Dias e as Noites de Brahma, como Manvantaras e consequentes Pralayas cíclicos no Espaço Com Limites da Natureza Universal. O Pensamento Divino (Mahat) produzindo a Expiração e Inspiração do Hálito Vital (Prana) nos primórdios da Criação, ao manifestar-se originou os princípios espirituais do Sexo, ou seja, este como Gerador e o Pensamento como Originador. Assim, para a Causa Original ficaria Brahma, para as Leis do Universo o Segundo Aspecto Vishnu, e finalmente para o Efeito gerado dispôs-se Shiva, o derradeiro Aspecto da Trimurti védica.

Desde cedo os cabalistas judaico-cristãos estabeleceram e alegorizaram, através do sistema das emanações sefiróticas constantes da Árvore da Vida, esta realidade da Origem Hipostática do Universo como Kether (Coroa), Chokmah (Sabedoria) e Binah (Entendimento), no fundo sendo os Atributos dos 1.º (Poder da Vontade) e 2.º Logos (Amor-Sabedoria) projectados fisicamente como 3.º Logos (Actividade Inteligente), originando os sete Princípios da Natureza (Atmã, Budhi, Manas Arrupa, Manas Rupa, Kama, Linga e Sthula, ou seja, Espírito, Intuição, Mental Supeior, Mental Inferior, Emocional, Vital e Físico) caracterizando tudo quanto está manifestado no Plano Físico Cósmico (Prakriti), os quais se assinalam nas restantes sete sefirotes da Árvore Mística. A dualidade central Amor-Sabedoria que caracteriza o 2.º Logos, humaniza-se na Terra como os Gémeos Espirituais (em sânscrito, Deva-Pis) ou o casal padrão da Humanidade Adam-Heve, constantemente retratados na História através das lendas de amor e paixão como as de Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Pedro e Inês, etc. Nos próprios mitos de fundação, como os de Rémulo e Rómulo para a cidade de Roma, ou de Ulisses e Ulissipa para a cidade de Lisboa, e ainda pelos laços misteriosos da Lei do Karma e da Reencarnação como Henrique-Helena, Lorenzo-Lorenza, Krishna-Krishnaya, Gotama-Mayavedi, Jesus-Maria, etc., ao início separados como Mónada Divina bipartida mas que se reunirão no final da sua evolução, repleta de experiências aglomeradas como vidas integrais e vidas esparsas no Mundo das Formas (3.º Logos), que corresponde a Malkuth ou o “Reino”, a décima e última sefirote. Portanto, a origem da Criação teve como princípio primaz o Sexo definindo o Mundo das Formas, ele mesmo sendo o próprio motor central do movimento da Evolução Monádica na Matéria (Espaço) que se repercute ao longo de Ciclos de Manifestação Universal ou Manvantaras (Tempo), até à sua reintegração final no seio do Absoluto.

3 - Árvore

Logo, o Ego Divino de toda a Alma Humana originalmente continha em si todos os elementos primários do sexo em condição latente mas não patente. Tais atributos ainda não haviam sido sujeitos às condições exigidas para a sua evolução na Matéria. Nesse estado, então, não havia nem o Amor e nem a Sabedoria manifestadas no Ego. Ele não conhecia a felicidade quando era ignorante da infelicidade. Vivia num estado de beatitude permanente. Ele não concebia o descanso por ignorar a experiência do cansaço. Não havia Amor real para o Ego por nunca ter experimentado sensação oposta. Neste estado primevo, a Sabedoria do Ego é igualmente latente, uma vez que não possuía qualquer meio de alcançar o conhecimento efectivo dos seus diversos ambientes. Neste estado, o Ego encontra-se assim numa condição de virgindade original como um primeiro Adão espiritual. A variedade de séries de estados através do qual o Ego Divino deve penetrar a fim de evoluir na sua esfera anímica, é que constitui os meios necessários para as potencialidades internas da sexualidade poderem despertar. Quando isso acontece pelo fenómeno da manifestação no Plano Átmico a partir do Anupadaka ou Monádico onde a Essência Divina (Adi) se biparte ou “engravida”, logo no Búdhico ela assume duas naturezas: masculina (Átmica) e feminina (Búdhica), e é com essa duplicidade que o Ego Divino irá manifestar-se do Plano Manásico para baixo – dando nascimento à Alma Gémea. É esta realidade que o Génesis representa como o par primordial Adão e Eva, em bela descrição alegórica da duplicidade embrionária da Alma Humana.

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O Raio Masculino (Átmico) contém em si elementos femininos, tal como o Raio Feminino (Búdhico) porta consigo elementos masculinos, razão porque o Homem é internamente feminino e a Mulher internamente masculina, como a ciência médica sabe quando fala em “cruzamento dos sexos numa mesma pessoa”. Portanto, cada alma individual possui em partes desiguais ou manifestadas ambos os sexos (ficando o tronco maciço exteriorizado no Homem, e atrofiado ou interiorizado na Mulher). Assim, no que diz respeito à natureza e função do Sexo, tendo conta esta constituição do Ego Humano, ele é diferenciado em Masculino e Feminino, Positivo e Negativo, Activo e Passivo, Sol e Lua, Yin e Yang, etc., expressando na Vida Humana aos dois grandes Atributos Divinos – Amor e Sabedoria – como expressão da Ideia Divina ou a Ideação Cósmica que se vai realizando em tudo e em todos. Por isso se diz que tudo na Natureza e na Vida é sexual, por tudo ser dual e opostamente atractivo. É pela oposição e atracção dos pólos contrários que se tenta recuperar a condição de Unidade primordial. Tal como existe esta relação física dos opostos (diferenciação do Ego Divino), onde “os minerais acasalam fisicamente por reacções químicas afins; os vegetais por impulsos magnéticos vitais, atraindo-se por simpatia vibratória; os animais acasalam motivados pelos impulsos emocionais” na busca do oposto e reunião ao Princípio original, o Ego incipiente, o mesmo processo acontece do ponto de vista cosmogónico, caracterizado pelo Arco Descendente ou Involutivo da corporificação do Espírito ou da Ideação Cósmica na Matéria, a chamada Pravriti-Marga ou o Coagula alquímico, simbolizada por um triângulo invertido, e pelo Arco Ascendente ou Evolutivo da espiritualização da Matéria, a chamada Nivriti-Marga ou o Solve alquímico, simbolizada por um triângulo vertido, processo que se desenrola em sete grandes Ciclos de Manifestação Universal para no fim alcançar a Unidade com a Substância Única, o Svabhâvat, simbolizado pelo hexagrama ou a reunião dos triângulos opostos.

4 - separação e reunião

Até agora, os resultados da nossa pesquisa demonstram que a origem do Sexo começa no próprio Deus; que a natureza do Sexo está na manifestação do Espírito dual ou Mónada bipartida, e que as suas funções estão no movimento em espiral das suas forças centrífugas ou evolutivas que vão despertando e completando no Ego manifestado as suas possibilidades latentes de reintegração à Unidade Primordial, à Substância Universal (Svabhâvat).

Posto tudo isto, não podemos concordar de maneira nenhuma que o pecado tenha de ser o fardo pesado a que foi conectado o sexo, mas sim um princípio divino pelo qual tudo se manifestou e manifesta, evolui e transcende, sendo o Homem o único a ter consciência desta realidade e o único dotado de livre-arbítrio para o efeito. De seguida veremos qual é a relação existente entre os dois géneros e de que forma tudo isso se relaciona com o Homem, o Universo e a imortalidade da Alma.

O CASAMENTO MÍSTICO E AS LEIS DA SEXUALIDADE

A relação dos géneros, masculino e feminino, estabelece-se logo de início na perspetiva anatómica, sobre a qual se expressou maravilhosamente o Professor Henrique José de Souza no seu livro Mistérios do Sexo:

“Os aparelhos genitais masculino e feminino são “congruentes”. Eles obedecem ao mesmo plano básico, concordância essa que persiste mesmo depois de recebido o selo do sexo. Apenas as condições se invertem: o aparelho masculino tem a forma positivamente saliente, enquanto o feminino é negativamente escavado, comportando-se os dois como a forma e o modelo, neles preparados, a chave e a fechadura.

“Nesse caso, “o homem dá, a mulher recebe”. As glândulas genitais são semelhantes na forma e no tamanho; as do homem chamam-se testículos, e as da mulher, ovários. As células sexuais do homem chamam-se espermatozoides, e as da mulher, óvulos. O canal que parte das glândulas genitais chama-se conduto seminal, no homem, e trompa na mulher. Os dois canais de cada pessoa encontram-se na linha mediana onde formam um órgão oco, em que as células sexuais fazem uma paragem antes de serem expulsas do corpo. Esse órgão chama-se próstata, no homem, e útero na mulher. O canal de saída das células sexuais permanece dentro do corpo da mulher, enquanto no homem ele se abula num “ferrão de postura”. Na mulher, que deve receber esse “ferrão”, o canal oco é largo e de paredes delgadas, sendo essa porção denominada vagina. No homem, o canal continua estreito e de paredes grossas, formando o (maciço) pénis (ou membro viril).

“Com outras palavras, o homem é masculino externamente e feminino internamente. A mulher obedece ao mesmo princípio, de acordo com o seu sexo: feminina externamente e masculina internamente. Donde o “tratamento cruzado”, que a medicina actual faz uso em casos de desequilíbrios das funções sexuais, principalmente no período da menopausa (na mulher, e andropausa no homem). O que em um deveria ser mais, passa a ser menos, e no outro, o menos a mais.”

Além do aspecto anatómico, esta relação torna-se mais profunda do ponto de vista emocional e relacional. Como vimos, Masculino e Feminino existem na Natureza dotados das respectivas expressões representativas da Sabedoria e do Amor Universais. As suas funções correspondem exactamente aos seus sexos, e na realidade da Vida objectiva pode dizer-se verdadeiramente que a Mulher é sempre o centro do princípio de Amor na Humanidade. Os seus pensamentos e desejos constituem o índice da sua missão na Terra. Nela vemos o rendimento, a natureza gentil, amorosa, que suaviza e harmoniza o espírito do homem belicoso. Em sua natureza delicada, vemos o encantador centro de cuidados maternos e carinhosos. Ela é a parte mais “fraca”, o “negativo” da dupla Alma no Plano Físico, mas a sua “fraqueza física” constitui o grande centro da sua força espiritual. Como suposto “sexo mais fraco”, pode-se considerar que a sua verdadeira condição é a da submissão ao homem, mas antes pelo contrário, as suas forças psicoanímicas mais delicadas fazem-na potência, “alavanca de Arquimedes” fundamental à Actividade e Evolução do Mundo material, e em vez de ser a criatura submissa sem vontade própria como pretendem as ideologias patriarcais sócio-religiosas, afinal é ela quem primeiro sobe ao Trono de Glória.

No Homem temos o aspecto “positivo” da dupla Alma, ele a beliciosa e irrequieta cabeça da Criação manifestada, a parte activa da Alma que o torna explorador infatigável dos mistérios da Natureza na busca constante da Sabedoria. A Vontade do Homem é eléctrica, penetrante e encadeadora como Energia Fohat. A Vontade da Mulher é magnética, atraente e formativa como Energia Kundalini. Socorrendo-nos das palavras do professor Vitor Manuel Adrião no seu estudo Manas-Taijasi – Teosofia, Eubiose e Sexualidade, explicaremos como é que essas duas Forças Universais se unem e equilibram na união física do Homem e da Mulher:

“Tais “Vida e Sexo” têm a ver, respectivamente, com as duas Forças Universais: a Vida animadora por Fohat, e o Sexo criador por Kundalini – os Fogos Frio e Quente ou Celeste e Terrestre. Aquele penetrando o Homem pelo alto da cabeça que o transfere à Mulher pela cessão (donde a postura usual do homem por cima e a mulher por baixo, com o sempre presente factor imaginação), e esta, pelo impulso electromagnético, eleva-o acima, de retorno à Fonte Universal, à Substância Única (Svabhâvat). Vida e Sexo são as chaves-mestras, sim, mas com o tempero do Amor que une, ou então a vida reduzir-se-á a sexo corrompido, despossuído do seu significado e função reais, logo, prostituído no lodaçal das baixas, incertas e inseguras paixões escravizadoras, até decepadoras, da actividade mental, a única exclusiva ao Género Humano, mas que do Animal que foi ainda conserva os pêlos, restando-lhe despojar-se da pele passional.”

Ao contrário dos restantes animais, um factor crucial e determinante na vida do Homem é o seu princípio sexual estar intimamente ligado ao princípio mental. O sentido de posse carnal ou física tem como expressão máxima o acto sexual em si, a conquista passional, a orgia sensorial, a materialidade dominante na fúria inflamada dos sentidos, etc., mobilizados animicamente pela energia que gera e mantém a vida física, ou seja, a energia sexual ou da líbido (como a classificou Freud), donde se afirmar o domínio do estado de Vida-Energia quando o(a) sujeito(a) é totalmente dominado pela influência da sua natureza inferior a que não consegue resistir. Ora, sendo a energia sexual a potência transformadora do Mundo e do próprio Homem, ela não deve ser reprimida mas dirigida para interesses superiores ao materialismo passional. A vida intelectual tem aqui um papel fundamental, facto que, de certo modo limitado, se verifica e comprova nas abstenções sexuais e regras de conduta promovidas e exigidas nas vivências religiosas de cariz ascético, apesar de não resolverem o problema do sexo, pois tal repressão interior poderá fatalmente descambar numa implosão sensorial e extravasar ao meio exterior em modalidades sexuais aberrantes. Contudo, para explicar melhor esta relação oculta, irei socorrer-me novamente das sábias palavras do professor Vítor Manuel Adrião:

“Costuma dizer-se: “mata o desejo”. Mas a frase está incompleta: “mata o desejo quando o desejo tiver cumprido a sua função”. Antes disso, será contrariar a natureza pessoal e só poderá redundar em graves contrariedades. Nisto, o regramento é indispensável sob pena de gerarem-se maníacos sexuais, verdadeiros mentecaptos ou mens-capta, mentes captadas ou decepadas pelo sexo desenfreado dominando-as permanentemente, sem que o alívio temporário do “vício solitário” resolva coisa alguma.

“(…) Só o Homem reage à natureza sexual contrária por impulsos psicomentais, aliando a actividade cerebral à psicomotora.

“Não é por acaso, também, o cérebro humano possuir o formato da cabeça do falo, posto que ambos foram conferidos ao Homem pela mesma Hierarquia Criadora dos Assuras através das suas duas classes de Kumaras e Makaras, os “Senhores do Mental” e os “Senhores da Forma”, profundamente relacionados à misteriosa e crucífera Queda dos Arqueus, esta mesma dos “Anjos Caídos”, origem lemuriana da Queda do Homem na Geração, desde aí cabendo-lhe a Superação do Sexo pela Redenção Mental, elevando do sacro à corona a “Serpente Flamígera” de Kundalini de maneira a tornar-se, para sempre, um Iluminado Espiritual, um Imortal Vivente, enfim, um redimido Ser Assúrico.”

Da mesma maneira exprimiu-se antes o Professor Henrique José de Souza:

“De facto, as células cerebrais representam aquilo que o homem possui de imortal. As células sexuais, o que o mesmo possui de mortal. O abuso das segundas prejudica as primeiras. Donde o termo “mentecapto” (ou mens-capta) que se dá, por exemplo, aos que praticam e abusam do “vício solitário”. De semelhante “vício” resultam outras moléstias, dentre elas a epilepsia, senão, a disfunção de todo o sistema nervoso, prejudicando os demais sistemas.”

Posto isso, avancemos no nosso raciocínio. Tal como foi descrito, os corpos masculino e feminino são a imagem concreta dos princípios ocultados no seu interior. Seria um extremo absurdo para nós acreditar que uma forma materializada não tem qualquer correspondência com as forças que a criaram. A forma externa não pode existir sem uma causa interna, e a causa interna é impotente para produzir qualquer forma externa além da imagem reflectida de si mesma e das suas funções. Nestas circunstâncias, será evidente que cada organismo masculino é o resultado absoluto de forças masculinas, e que cada organismo feminino é o produto de energias femininas. Portanto, uma alma masculina não pode nascer para o mundo com uma forma feminina, nem uma alma feminina nascer no plano da Humanidade num corpo masculino. No entanto, apesar da separação da Humanidade em dois sexos, o Homem e a Mulher carregam consigo o reflexo do seu Criador. Assim, dentro de todo o ser masculino existe um aspecto feminino, e dentro de toda a mulher há uma natureza masculino, o que é um verdadeiro Tao natural como a parte de um presente na de outra, e vice-versa.

Nesta linha de raciocínio, a interrrelação e interdependência dos géneros sexuais não é só física densa, pois também se regista ocultamente no físico superior dos indivíduos como a sua causa, ou seja, o Corpo Etérico ou Vital. Essas energias polarizadas estão representadas no antigo símbolo do caduceu, vulgarmente associado ao deus grego Hermes, visível nos registos das incontáveis culturas antigas do Mundo.

5 - Caduceu nas diversas culturas

As duas serpentes sempre simbolizaram os canais energéticos masculino e feminino subindo acima pela coluna vertebral. Na Kaballah judaica, a raiz deles está em Yesod, a Fundação, relacionada ao órgão sexual, e são animados, alimentados pela respectiva Energia Criadora que assiste ao Sexo. Esses dois canais ou nadhis são chamados Pingala e Ida no Hinduísmo. Na Kabbalah são denominados Od e Ob, ou Aod e Aob, e no Cristianismo Esotérico são associados às figuras de Adão e Eva, Adam-Heve. Na Bíblia também são referidos como as duas oliveiras e os dois castiçais que estão de pé ante o Deus da Terra (Apocalipse, 11:4). As duas “serpentes” ou nadhis circulam ao longo da coluna vertebral do corpo humano, sendo a espinha é quase sempre simbolizada por uma vara, bastão, báculo, etc.

6 - Energias subtis

A espinha dorsal é a imagem do Mestre, é a coluna central do Templo Humano. A coluna está assente na Pedra de Fundação: Yesod, ou seja, a Energia Criadora do Sexo, e apresenta 33 vértebras simbolizadas pelos 33 anos da vida de Jesus de Nazaré e pelos 33 Graus da Maçonaria.

Quando ocorre o acto sexual entre homem e mulher, desencadeia-se uma tremenda energia entre ambos. Pela noção real do coito a Humanidade poderá ter de Deus a experiência da Criação. O homem como força activa reflecte a Deus PaiZain; a mulher como força receptiva expressa a Deus MãeZione; o acto sexual gera a força que os une – Zain-Zione. Estes são os três princípios fundamentais na origem de toda a Criação, tanto cósmica como terrena, e esta é a fundação do simbolismo universal da Trindade.

7 - Trindade

No entanto, para se criar é necessário interiormente dividir-se em dois, masculino e feminino. Este é o mistério do Espírito Santo, o Fogo fecundador de Deus, simbolizado na Índia como Shiva-Shakti, o Poder Criador e Destruidor da Divindade em seu Aspecto de Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Um dos símbolos mais sagrados de Shiva, o Espírito Santo dos ocidentais, é o Shivalinga ou o Lingam-Yoni, a interseção do falo e útero, sendo a própria Pomba iconográfica do Espírito Santo considerada símbolo de natureza sexual pelos antigos judeus e gnósticos, chamando-lhe Yona. O mesmo símbolo é encontrado na Europa nos círculos da tradição alquímica.

O poder da Força originadora e encadeadora de toda a Criação, em todos os níveis de existência no Plano Físico Cósmico, é o da transcendente Energia Sexual. Esta Energia representa-se pela Luz através do Fogo humificando e escoando como Água. É assim que na tradição alquímica a Energia Sexual é simbolizada por Mercúrio. O mesmo consta em Moisés golpeando a pedra de fundação, a rocha fecunda donde brota a água da vida. O próprio antigo ritual do baptismo acaba sendo simbólico da transmutação da Energia Sexual em Mental como Fonte de Salvação.

8 - Águas da Criação

Sem dúvida que a energia sexual é da maior importância para o indivíduo que faz o melhor uso dela, mas também pode ser fonte de grandes danos psicofísicos por ser a exteriorização da própria Força Kundalini de que dizem os sábios orientais: “Kundalini liberta o sábio e escraviza o néscio”. Por isso, o próprio actual 14.º Dalai-Lama, Tenzin Gyatso, afirmou que “a energia sexual nunca deverá ser libertada”. Isto significa que ao esbanjar-se indiscriminadamente a energia sexual pelo êxtase ou samadhi carnal que é o orgasmo, desfrutando o gozo momentâneo da apoteose sexual como manifestação sensorial de Kundalini, invés do permanente samadhi espiritual como florescência mental da mesma Kundalini como Energia Divina iluminando a Alma, tal explosão seminal constante influi tremendamente sobre a própria vitalidade e consequente saúde do indivíduo, impedindo a sua ligação aos Planos Superiores da Vida e da Consciência. Mais uma vez, impõe-se o regramento como regra a fim de não haverem puritanos auto-castrados nem tarados desenfreados. A bom-entendedor…

A ciência médica conhece bem que a energia sexual está intimamente relacionada à saúde psíquica e física. Ela é necessária para manter a vitalidade física e animar os respectivos cinco sentidos, fornecendo também a vitalidade aos restantes dois sentidos superiores que são o elo de ligação da Humanidade ao Divino. A carência por esbanjamento indiscriminado da energia sexual atrofia a Alma e quebra a conexão com Deus. Quando se expele a energia sexual, na realidade expele-se a energia que abastece os sentidos internos. Esta é a verdade que está por detrás do “fruto proibido” no Éden, bem como dos contos infantis que apresentam uma maçã envenenada ou uma bela adormecida que aguarda o seu príncipe encantado para a despertar. É a Alma adormecida do seu conhecimento ou relação com o Divino ou Deus Interior pela subjugação dos sentidos aos prazeres externos.

O Paraíso, o Éden, a Agharta mesma, não se perdeu para o Homem, simplesmente foi interdito aos impuros de mente e coração. A sua reconquista exige a demanda espiritual que leva a domar o dragão ou a serpente das paixões. Contudo, tal serpente passional não está fora mas no interior do Homem. Essa serpente é o fogo sexual que leva muitos a confundir Paixão com Amor, no maior dos erros. É uma energia muitíssimo poderosa cuja polaridade polaridade tanto pode ser usada para criar como para destruir. Por essa energia ser tão poderosa, o indivíduo necessita de uma enorme força de vontade para superar o isco da mesma. A sua tentação está na exclusiva satisfação material do puro prazer carnal e na solidificação crescente do ego inferior, da persona ou personalidade.

No entanto, quando dominada a energia sexual também pode ser protectora como aquela serpente de Moisés que salvou o seu povo das serpentes maléficas do Egipto. Esta história bíblica simboliza a dualidade da força sexual como criadora e destruidora. Só a serpente positiva, ao serviço do Divino, pode livrar a alma do sofrimento psicofísico. Isto está claramente representado na arte egípcia, onde se vê a serpente positiva que protege e a serpente negativa que deve ser dominada.

9 - Serpente Positiva e Negativa

Portanto, a prática do sexo dominando a mente gera insatisfação, ânsia, sofrimento moral, dor física e ameaça grave de morte espiritual. Isto é evidente naqueles(as) que buscam a felicidade exclusivamente no sexo. Como com qualquer desejo psicomental, o desejo sexual nunca pode ser inteiramente satisfeito, pois o fogo do desejo aumenta sempre mais exigindo sempre alimento (Manava-Dharma-Shastra, As Leis do Manu, 2:94).

Coloca-se, pois, a questão: qual é então a lei oculta que está detrás da sexualidade? Qual é então o Grande Arcano? Como é que ocorre o domínio da energia sexual? A isso só podemos responder: através do matrimónio alquímico, as famosas Bodas Químicas de Christian Rosenkreuz, é que se permitirá a transmutação dessa energia poderosíssima.

Parafraseando Dom Pernety, o casamento alquímico “é a altura em que o volátil e o fixo da matéria da Obra se dissolvem conjuntamente e se voltam a unir, para se manterem inseparáveis. Destes dois forma-se, por consequência, um terceiro, dito engendrado, pelo facto dos Filósofos darem o nome de macho ao fixo e de fêmea ao volátil”. O Grande Arcano era conhecido dos alquimistas e pretendia a unificação dos opostos através da Boda Mística ou União Mística Nárada, como é conhecida entre os sábios do Oriente, culminando com a total fusão dos dois “cônjuges” (Sol e Lua), que então passam a constituir o Andrógino Filosófico (Rebis). A aliança do Enxofre e do Mercúrio seria impossível se não houvesse a participação do terceiro princípio, o Sal, que é o agente intermediário de coesão e fixação. Temos aqui, portanto, os três princípios necessários à realização da Obra Alquímica: Enxofre, Mercúrio e Sal.

Desvendando o argótico dos termos, esses princípios representam em si as qualidades subtis da Matéria, como Satva, Rajas e Tamas (energias centrífuga, equilibrante, centrípeta), e não propriamente os elementos químicos do mesmo nome como se possa pensar. A laboração dos três princípios só pode ser feita através do Fogo Filosófico, permitindo levar a matéria através das três fases da Obra até à Pedra Filosofal: Nigredo, Albedo e Rubedo. No entanto, os tratados alquímicos referem-se constantemente a um Fogo Secreto, também chamado de Sal duplo. Esse Fogo Secreto ou Salitre é a própria Energia Sexual expressa como Fogo Criador, a Energia Criadora de Kundalini que labora no interior da Terra contida em seu “Ovo” ou Sol Central como a Shamballah mesma, o Laboratório do Espírito Santo.

As tradições são reveladoras desse Fogo Místico, senão veja-se o caracter hebreu Shin que representa o Fogo de Deus, o Fogo do Espírito Santo e o Fogo do Cristo. Shin, com seus três tramos, encarna as Três Forças de Criação como Deus-Pai, Deus-Mãe e Deus-Filho como resultante Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o referido Espírito Santo. Também a constituição do nome Moisés, o que detinha a supradita serpente salvadora, advém do hebreu Mem, “água”, Shin, “fogo”, e He, “útero”. Assim, o nome Moshe ou Moisés significa o “nascido da água e do fogo”.

Contudo, o Sal duplo como representação do Corpo vem realmente a expressar os corpos masculino e feminino do alquimista e sua companheira, os quais desenvolvem em conjunto o trabalho alquímico, como muito bem expressa o Mutus Liber, ou o sacerdote e a sacerdotisa representados nas paredes do templo do faraó Seti I, em Abydos, porque se o Mundo é dual desde a primeira hora da Manifestação, consequentemente o trabalho de transmutação do Homem também terá de o ser. A primeira fase é a de superar as águas turvas da paixão sexual, a natureza inferior inerente ao homem físico, não permitindo o esbanjamento inútil da Energia Divina ou o Fogo do Espírito Santo que é a natureza do Terceiro Logos. A segunda fase trata da purificação e sublimação do espesso em subtil do Enxofre e do Mercúrio (quando deixam de ser metais grosseiros para se tornarem a quintessência dos mesmos), facto simbolizado pela continência sexual ou castidade do alquimista e sua companheira (comparável ao ensag ou pureza dos antigos Fiéis de Amor como prova derradeira do seu afecto), cuja continuação da Obra através do Fogo Secreto leva-os à elevação dos sentidos internos em conexão com o Divino; por fim, a terceira fase de rubificação, o Rebis, o Casamento Místico do Rei e da Rainha (Ouro e Prata), o fabricar a Pedra Filosofal, o atingir o Androginismo Perfeito, o alcançar a Iluminação Crística ou Búdhica.

10 - Sacerdote e Sacerdotisa

Todo esse processo de disciplina sexual (gerador de um conjunto de reacções físico-químicas) de domínio da energia sexual dirigida para o cérebro e a mente, tem severas repercussões no corpo do Iniciado (dando-lhe força e até então desconhecidas, alterando até a cor dos olhos, dos cabelos e da pele devido ao calor interno), nomeadamente com a activação consciente da Energia de Kundalini localizada no Centro Bioenergético Raiz ou Sacro, o Chakra Muladhara que se situa na base da espinha dorsal, o qual é a fonte da actividade cerebral e sexual e tem como funções principais o fornecimento da energia aos órgãos genitais e ao cérebro e o calor ao sangue.

Quando Kundalini é despertada, seja por que processo for, ela movimenta-se no sentido dos centros vitais localizados no cérebro, por isso mesmo requer do aspirante o máximo cuidado sob pena de perder o controlo e com isso ter os veículos de Personalidade (Físico, Vital, Astral e Mental) danificados irreversivelmente. Os Mestres ensinam que o discípulo terá que dirigir a Força de Kundalini para o alto ou a corona, indo a mesma encontrar-se com a Energia de Fohat no Chakra Cardíaco (Anahata), a fim de consumar-se a União Interna ou o Casamento Místico indo o mesmo transformar-se num Adepto ou Andrógino Perfeito. Essas duas Energias são o que os Adeptos Filosofais chamaram do Ouro Filosófico e de Prata Filosófica.

Assim, todo o trabalho místico e espiritual da disciplina do candidato ao Adeptado consiste em evitar que a energia sexual em vez de brotar sob a forma de líquido seminal, permaneça em estado subtil ou etérico ao nível mental incorporada ao Prana, a Energia Vital assim preenchendo o Duplo-Etérico de energia, força e saúde, motivo de também se lhe chamar Aura da Saúde. Contudo, é necessário saber separar o Enxofre do Mercúrio e do Sal para se iniciar todo o trabalho de transformação dos elementos químicos em subtis da Personalidade, sendo esta é a fase do Nigredo. Como dissemos, esses três princípios, “ares” ou “espíritos” da Alquimia são as “qualidades subtis da matéria” (Gunas) e não propriamente os elementos químicos ordinários com esses nomes. Às Gunas os sábios orientais denominaram de Satva, Rajas e Tamas e estão respectivamente em relação com o Espírito (Enxofre), Mercúrio (Alma) e Sal (Corpo). A separação dos princípios só ocorre após a desobstrução físico-psicomental dos três principais canais etéricos circundando a coluna espinhal por onde circulará livremente o Fogo Secreto ou Kundalini, os chamados filamentos ou nadhis conhecidos como Ida (Feminina, Passiva) Pingala (Masculina, Activa) e Sushumna (Andrógina, Neutra), constituindo os principais órgãos de manifestação da tríplice Consciência Humana: Emocional, Mental e Espiritual. Os nadhis funcionam no corpo do Homem como “tríplice qualidade subtil da matéria”, onde a energia sátvica actua por Sushumna e manifesta-se na VONTADE, a rajásica por Pingala e manifesta-se na SABEDORIA, e por fim a tamásica por Ida manifestando-se na ACTIVIDADE. Posto isso, podemos estabelecer a seguinte tabela:

Enxofre – Espírito – Satva – Sushumna = PENSAMENTO (PODER DA VONTADE)

Mercúrio – Alma – Rajas – Pingala = SENTIMENTO (AMOR-SABEDORIA)

Sal – Corpo – Tamas – Ida = FÍSICO (ACTIVIDADE INTELIGENTE)

Com o perfeito equilíbrio desses três atributos da Mónada e as consequências da sua manifestação através dos pensamentos, sentimentos e actos, o discípulo – e extensivamente todo o Género Humano –  verdadeiramente transforma a VIDA-ENERGIA em VIDA-CONSCIÊNCIA, realizando assim, permanentemente, a Alquimia Divina, a de transformação da Pedra Cúbica (Personalidade) em Pedra Filosofal (Individualidade).

No entanto, para que o trabalho interno decorra justo e perfeito sem sobressaltos nem anomalias que arrojam o candidato no limbo das perturbações e alucinações psicofísicas, é necessário primeiro todo um processo de purificação dos corpos da Personalidade, ao qual os antigos alquimistas denominaram de Albedo, como a segunda fase da Obra. Essa purificação relaciona-se com a “limpeza” dos nadhis preparando o Casal Alquímico – Enxofre e Mercúrio – para o Casamento Místico. A purificação dos nadhis e chakras depende muito do alimento mental e emocional com que alimentamos o nosso Kama-Manas (Mental Inferior entrosado no Emocional), donde a necessidade de uma selecção rigorosa de tudo quanto possa ou não afectar os nossos sentidos, principalmente no que diz respeito aos órgãos da visão e da audição. É através da Meditação, depois da purificação dos corpos Mental e Emocional, que se alcança a tranquilidade ou serenidade interior de importância fundamental no activar de Kundalini.

Além disso, não deixa de ser interessante analisar as diversas representações iconográficas medievais e renascentistas do alquimista com um fole a insuflar o ar vital no athanor (forno alquímico), de maneira a fornecer o alento necessário à desenvoltura do fogo. Isso tem analogia com a importância prática do discípulo em desenvolver a Disciplina da Respiração, no Oriente designada de Pranayama. Como não podia deixar de ser, a respiração também tem uma íntima relação com os nadhis já descritos, conforme explicam as palavras balsâmicas do grande teósofo Roberto Lucíola:

“Existe uma polaridade fundamental no ser humano: Ida, que parte do testículo esquerdo do homem e do ovário direito da mulher; Pingala, que parte do testículo direito do homem e do ovário esquerdo da mulher. Esses dois nadhis, partindo da base do cóccix, terminam nas narinas esquerda e direita respectivamente. Daí a importância que os Yoguis dão a prática do Pranayama no processo para o despertar de Kundalini.

11 - Pranayama e Fole Alquimico“Segundo ensina a Doutrina Sagrada, quando se atinge os mais transcendentais estados de consciência entra-se em Samadhi, o alento praticamente cessa e só o Prana puro penetra em nosso ser. Quando o fluxo respiratório faz-se através de Sushumna, ou seja, através das duas narinas ao mesmo tempo com igual intensidade, é sinal de que foi estabelecido o equilíbrio entre as Forças Solares, Lunares e  a do Fogo que não queima, por ser o Fogo Divino que arde em todas as coisas e é a Alma Gloriosa do Sol, portanto, é quando todas as três Energias estão fluindo através do canal central que é Sushumna. Nesse altíssimo estado de ser, o Adepto alcança plenamente os poderes latentes que ainda dormem na alma do homem comum; é neste estágio que o Iluminado transcende o Tempo e o Espaço, penetra no Futuro, e assim se torna um desperto num Mundo povoado pela grande massa humana mais ou menos adormecida para os Mundos Superiores. Em suma, torna-se um Imortal, saindo definitivamente da Roda de Samsara por ter atingido o ápice da Evolução da própria Cadeia a que pertence.”

12 - Canal Sushumna

No fundo, a purificação permite o desenvolvimento dos filamentos etéricos com a garantia de não ocorrerem acidentes graves na activação de Kundalini. Não é por acaso que os antigos alquimistas sempre alertaram para os perigos psicofísicos que espreitam o iniciante que se lançar indiscriminadamente na prática alquímica sem o preparo e ajuda prévia de um Mestre.

Quando o Alinhamento se processa e Pingala adquire maior força MENTAL e Ida mais energia CORACIONAL, o sistema cérebro-espinhal passa a agir e ambas começam a fundir-se em Sushmna, acabando por tornar-se uma só tendo a sua base no Chakra Raiz ou Muladhara. Esta união dos três nadhis no Muladhara é designada por Mukta Triverni ou Nó de Shiva, reencontrando-se no Nó de Vishnu (Chakra Cardíaco ou Anahata) e finalmente no Nó de Brahma (Chakra Frontal ou Ajna) sobressaindo pelo Chakra Coronal (Sahasrara ligado ao conduto central ou Sushumna) unindo-se a Parabrahma. Quando ocorre esta União Mística (Nárada), o fluxo respiratório faz-se através das duas narinas simultaneamente com igual intensidade, sendo sinal de ter sido estabelecido o equilíbrio vital entre as Forças Solar, Lunar e a do Fogo Sublimado por ser Fogo Divino, sendo quando todas as três Energias fluem pelo canal central, ou seja, Sushumna.

Assim, dentre as três camadas de Sushmna aquela onde predomina a matéria tamásica é de cor vermelha brilhante, na segunda camada de natureza rajásica é de cor azul eléctrico cintilante, e finalmente a terceira camada, a mais refinada, é de substância sátvica de tom dourado resplandecente. Por sua vez, a correspondente união de Satva (Espírito) com Rajas (Alma) permite a manifestação de Fohat (Energia Celeste “Masculina”), o Ouro Filosófico no Espaço Com Limites, e a união de Rajas (Alma) com Tamas (Corpo) possibilita o desenvolvimento de Kundalini (Força Terrestre “Feminina”), a Prata Filosófica no mesmo Espaço Com Limites (Universo). Estando as duas Energias Universais despertas e devidamente redirecionadas no Homem, consuma-se então a União Interna, o Rebis Alquímico, o Casamento Mistico entre o Rei e a Rainha correspondendo à última fase da Opus Magnum, o Rubedo, alcançando-se a Pedra Filosofal que fará o Ser transformar-se num Andrógino Perfeito. Então, aí as correntes de energias de Prana que alimentam o Chakra Muladhara sofrerão uma transmutação radical, onde a corrente alaranjada se transformará em amarelo brilhante, passando a dinamizar as actividades intelectuais; a vermelha se tornará rósea, indo reforçar a afeição desinteressada e altruísta; finalmente, a roxa se transformará em violeta suave e por fim púrpura activando a espiritualidade.

“A transmutação alquímica, natural e gradual, dessas forças liberta o homem dos desejos passionais e evita-lhe os grandes perigos a que está sujeito quando começa a despertar Kundalini (o Fogo Criador do Espírito Santo, tanto valendo por Mãe Divina ou Maha-Shakti, que de Virgem Negra ou oculta se faz Virgem Branca ou desvelada), ainda que a sublimação dessas energias só se faça com proveito quando o homem é suficientemente senhor do poder de manejá-las. Reitero: não se trata de anular uma função natural mas de a saber dominar, assim dominando as correntes vitais do Chakra Raiz destinadas às funções criadoras. Pelo poder da nossa vontade elas irão, quando disso houver necessidade, auxiliar aquelas que nos Mundos Superiores têm funções idênticas.” (Vitor Manuel Adrião).

O Matrimónio Perfeito requer o casamento alquímico entre Esposo e Esposa, entre Sacerdote e Sacerdotisa, entre Mental e Coracional, entre Sabedoria e Amor. Para conseguir-se o verdadeiro despertar espiritual é necessário vencer a “serpente tentadora”, o passional/animal (Kama-Manas), e com o Fogo do Espírito Santo – Ave Raris in Terris – recriar, reconstruir a Alma Humana.

Todos os Grandes Avataras conheceram e ensinaram o Grande Arcano. “Sempre estiveram ligados ao princípio do Fogo Sagrado e da Luz Solar mística e subjectiva: Zoroastro, Osíris, Serápis, Júpiter, Apolo, Hermes, Krishna, Buda, Cristo, etc., sempre foram tidos como a personificação do Sol Espiritual ou do Fogo Sagrado que arde em todas as coisas. A Luz não é só um elemento material, mas também um princípio espiritual, e por isso é que os aspirantes à Iniciação Superior reverenciavam o Sol Espiritual e não propriamente o Sol puramente físico, pois que o Fogo Sagrado no Homem é activado por Kundalini que, quando despertada, eleva-se pela coluna vertebral indo encandecer o Sol que reside em nossa cabeça, embrionariamente nos três Chakras ali existentes” (Roberto Lucíola). Eis a razão justificativa do porque o grande poeta português, Luís Vaz de Camões, afirmar que o “Amor é fogo que arde sem se ver”, como também do jesuíta iluminado e grande Paiçu ou Pai dos índios tupis e tupinambás brasileiros, padre António Vieira, ter afirmado sobre o Fogo no quinto volume dos seus Sermões: “O maior, o mais nobre e o mais escondido tesouro do Universo é o quarto elemento, o Fogo”.

Esta é a chave do antigo mistério da Alquimia e o segredo do Grande Arcano: transmutar a liderança do ego passional pelo desejo do ouro espiritual da Consciência. Quando o fogo sexual como manifestação mais de de Kundalini é elevado através do conhecimento da Gnôsis, de Daath, do Grande Arcano ou o Mistério dos Mistérios, retorna-se ao conhecimento direto da própria Estrela Interna: a Luz do Mundo, como dizia muito acertadamente o grande poeta Fernando Pessoa: – Desejai apenas o que está dentro de vós, porque é dentro de vós que está a Luz do Mundo (…), a única Luz que pode ser derramada sobre o caminho, e se não a podeis ver dentro de vós é inútil que a procureis em qualquer outra parte.

13 - Fiat Lux e o Andrógino PerfeitoFIAT LUX!

BIBLIOGRAFIA

Henrique José de Souza, Os Mistérios do Sexo. Edição Sociedade Brasileira de Eubiose, São Lourenço (MG), 2001.

Roberto Lucíola, Kundalini. Caderno Fiat Lux n.º 8, 1996. Edição Comunidade Teúrgica Portuguesa, Sintra, 2013.

Vitor Manuel Adrião, Manas-Taijasi, Teosofia, Eubiose e Sexualidade. Revista PAX, órgão oficial da Comunidade Teúrgica Portuguesa, n.º 61, 2011.

Eliphas Lévi, O Grande Arcano. Editora Pensamento, São Paulo, 2007.

Comunidade Teúrgica Portuguesa, Grau Astaroth (Coordenador), monografias 28 e 29.

Escalhão: saberes ocultados – Por Vitor Manuel Adrião Segunda-feira, Jan 12 2015 

Sintra, 2015 – Dia dos Reis Magos

A raia portuguesa é alfobre de lendas e tradições insólitas mas que, quase por norma, a História traz no esquecimento, mesmo campeando os usos e costumes etnográficos inscritos no programa de um peculiar calendário religioso festivo animado por populações inteiras.

A maioria dessas celebrações sazonais caracteriza-se pela sua integração etnográfica-religiosa de elementos celtas, ditos «pagãos», e sobretudo bíblicos da Escritura Velha de foro judaico, ajuntando ele-mentos coreográficos insolitamente atribuídos à Ordem dos Templários, apesar de revestidos pela aparência da dogmática católica, tudo ao gosto e conformidade da chamada “religião popular”[1]. Não raro, quase por norma, tudo isso trescala a heresia e apostasia ante o dogma romano da religião dominante, esta que hoje é muitíssimo diferente na exegética e hermenêutica daquela dos tempos medievos onde o Cristianismo, como iniciação e confissão, dificilmente seria reconhecido tanto pelos eruditos como pelos simples contemporâneos.

Prova flagrante disso tem-se em Escalhão, aldeia da raia na Beira Interior pertencente ao concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, distrito da Guarda, sobre a qual renomeados autores falam com ligeireza e pressa tamanhas que chegam a surpreender pela negativa, como foi o caso, em 1922-24, do ilustre Raúl Proença[2]. Contudo, Escalhão é a maior aldeia de Portugal em termos de área e também a maior freguesia (70 km2), tendo sido vila e sede de concelho até ao início do século XIX, com foral ou senhorio e honra que D. João IV lhe deu em 29 de Fevereiro de 1648 por seu papel determinante na Guerra da Aclamação e Restauração em 17 de Outubro de 1642, tendo heroicamente enfrentado a entrada do inimigo na Província da Beira, onde os poucos moradores e a escassa guarnição militar de 35 soldados, encurralados na igreja que desde aí passou a ser apodada de “fortaleza”, venceram 4.500 infantes e 400 cavalos invasores, ao conseguirem matar o seu comandante atirando-lhe um sino na batalha desigual, tendo se seguido outras e subidas vitórias das armas portuguesas sobre as espanholas do jugo filipino. Com a extinção da Diocese de Pinhel em 30 de Setembro de 1881, por bula do Papa Leão XIII, Escalhão passou a pertencer à Diocese da Guarda, mas mantendo-se Vigairaria alternada da Santa Sé e do Bispado de Lamego, como já acontecia desde o século XIV [3], facto atestado por Pinharanda Gomes[4]:

“Escalhão (N.ª Sr.ª dos Anjos). Inicialmente curato da apresen-tação do vigário de Castelo Rodrigo, depois do Padroado Real e ainda reitoria da apresentação alternada do Papa e do Bispo, no termo de Castelo Rodrigo.”

Mas a antiguidade de Escalhão como pólo demográfico de grande importância ibérica já é reconhecida desde cerca de 100 a. C., altura da sua anexação ao império romano, quando ela era a Caliábria dos originais celtas gallaici. Segundo Antero de Figueiredo[5], o topónimo latino Caliábria derivará de Scalanis ou Scalarius, classificando “os montes penhascosos que se escalonavam”, referindo-se à configuração geográfica do terreno em socalcos, descendo para o Rio Águeda. Mas segundo a interpretação popular, dada a interpretações fáceis para mais fácil memória futura, o termo Escalhão derivará do vocábulo Secalhão, referindo-se à aridez que noutros tempos caracterizou a região[6]. Depois, o desbravamento de terrenos incultos e a arborização terão contribuído para a fertilização da freguesia.

Desses tempos antigos sobrevive a ponte romana sobre a Ribeira de Aguiar, numa via aproveitada posteriormente pelos peregrinos a Santiago de Compostela que beneficiavam da assistência e protecção dos cavaleiros da Ordem do Templo, e depois também dos cavaleiros da Ordem de Cristo, num tempo inóspito em que as feras e os salteadores campeavam ao longo da raia.

A assistência militar e hospitalar do Templo às peregrinações religiosas, sobretudo a jacobeia como a mais importante do Cristianismo peninsular e sul europeu, estava compreendida nos seus estatutos, caracterizando o seu carácter assistencial e beneficente no exercício pragmático da virtude primaz da caridade. A Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo e do Templo de Salomão (Ordo Pauperes Milites Christi et Templique Salomonici), fundada em Jerusalém em 1118 por Hugo de Payens mais oito companheiros, todos de alta nobreza, e reconhecida em 1128 no Concílio de Troyes por intervenção directa de Bernardo de Claraval, religioso de Cister que subiria aos altares de santidade, mesmo antes do seu reconhecimento oficial em 1125 já estava instalada em Portugal, tendo a rainha D. Teresa lhe doado Fonte Arcada (Penafiel) em 1126, indo tomar posse da igreja de São Tiago, e no ano da sua oficialização D. Afonso Henriques doou-lhe Soure[7].

Em breve a Ordem dos monges-cavaleiros expandiu-se pelo território nacional, contudo sem reconhecer fronteiras geopolíticas, fossem as luso-árabes, fossem as luso-castelhanas e leonesas. A sua guerra era exclusiva contra os mouros em que parte do território ibérico estivessem, faziam o Pelágio ou Reconquista. Os seus estatutos proibiam-lhe dar combate a outras forças cristãs: à Milícia de Cristo era proibido combater e matar outros cristãos. Mas, mercê da interpretação dos mesmos status sujeita à pragmática da política do tempo, houve excepções que na prática não foram poucas: se fosse atacada por outros exércitos cristãos tinha o direito de se defender, assim como defender religiosos e peregrinos dos bandos de salteadores, fossem ou não batizados. Igualmente não ingeria nas contendas entre reinos e príncipes cristãos, mantendo a neutralidade militar, mas podia muito bem favorecer este ou aquele partido, por movimentos político-diplomáticos, que considerasse mais favorável aos seus propósitos geopolíticos e religiosos. Para tudo isso, evocavam-se os status (estatutos) mas nunca a regula (regra), que essa era inalterável ad litteram, estava acima dos interesses e incidentes temporais e espaciais, fossem quais fossem. A regra era o cimento da Ordem, e os estatutos as paredes da Casa feita com o mesmo[8].

A fim de impor ordem e restringir as lutas entre os príncipes e nobres cristãos separados em feudos rivais, a partir dos meados do século XI a Igreja impôs a Trégua de Deus e a Paz de Deus. Por esta última, impedia a violência em determinados locais, nomeadamente nos santuários, hospitais e estradas, o que os cavaleiros templários cumpriram escrupulosamente desde o século XII até aos inícios do XIV, quando foram abolidos; pela Trégua de Deus, a Igreja negava os combates entre cristãos desde a tarde de quinta-feira a domingo, sobretudo nos dias da Semana Santa. Ao mesmo tempo, canalizou as sinergias da cavalaria, sedenta dos triunfos e glórias nas batalhas, e o seu ímpeto belicoso para objectivos mais conformados ao espírito cristão: a promoção da cruzada contra a crescentada, a guerra santa aos “infiéis”, nisto tendo primazia e exclusividade a Ordem do Templo, cujo duplo carácter militar e religioso satisfazia os interesses e necessidades da nobreza conforme a mentalidade da época.

A Idade Média existiu de motu próprio, e particularmente o Feudalismo (séculos X-XV) encerrou o período em que a sociedade europeia era regulada pela Respública Christiana. Uma sociedade normalizada onde três ordens ou classes interagiam e evoluíam de forma interdependente. O clero (oratore) ocupava o topo da pirâmide social, classe letrada que efectuava a ligação de Deus à Humanidade, velava pela ordem social e controlava o poder político. A nobreza (bellatore) cingia a sua actividade primária à prática política e ao manejo militar, detendo, com o clero, o usufruto de bens patrimoniais. O povo (laboratore) trabalhava a terra, o feudo das autoridades eclesiásticas e nobres. Ou seja, o clero garantia a segurança espiritual, a nobreza a segurança espacial e o povo o bem-estar social[9].

O notável desse quadro geral da sociedade medieval é o da Ordem dos Templários ter agido sobre as três classes em simultâneo: com os oratores do Templo encomendados a Cister e Cluny, proviam as necessidades espirituais e promoviam a alfabetização geral; com os bellatores fortemente brasonados e temperados na arte militar, impôs uma disciplina castrense que fez da Milícia força bélica de elite; oratores e bellatores tempreiros deram assistência espiritual e temporal, cultural e técnica, aos laboratores, protegendo-os das prepotências dos poderosos e provendo-os de conhecimentos capazes de tornar a sua vida mais fácil, desde técnicas agrícolas a cuidados médicos e, inclusive, facilitando-lhes o acesso à instrução.

Cedo os templários instalaram-se na Beira Interior e distenderam-se raia abaixo, de Norte a Sul, acompanhando e participando na Reconquista. Já em 1170 regista-se a sua presença na Guarda (cuja Diocese distende-se até Idanha-a-Velha, a primitiva Egitânia), em Pinhel, em Barca d´Alva, em Mata de Lobos, em Escarigo, etc., e particularmente em Escalhão, onde no “Alto da Sentinela” subjazem as ruínas das muralhas e de uma torre ou atalaia de alvenaria, possivelmente da época de D. Dinis (1261-1325), senão de D. Sancho I (1154-1211) que fora educado no Templo e dera foral a Escalhão em 11 de Setembro de 1209, privilégio confirmado por D. Dinis em 1316, que antes, em 1310, mandara construir ou reconstruir o seu castelo, que a Guerra da Restauração (século XVII) reduziu a monte de escombros.

Com a abolição da Ordem do Templo no início do século XIV (1312), a sua sucessora e herdeira universal, a Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, tomou posse dos antigos domínios beirões dos templários, incluindo Escalhão, fundando comendas novas no espaço primitivo das comendas velhas, como informam os seus Estatutos e Definições[10]:

“No Bispado de Lamego há as Comendas velhas e antigas da Ordem, que são as seguintes: a Comenda de Nossa Senhora do Pereiro da Vila da Reigada, avaliou-se em duzentos e vinte mil reis há muitos anos. As três Comendas de Longroiva, Muxagata e de Vila da Meda, em um conto de reis. Neste Bispado de Lamego há somente quatro comendas velhas, e andam traz dela unido[11] e valem todas um conto e duzentos e vinte mil reis. Há neste Bispado de Lamego quatro Comendas[12] das cinquenta do Padroado Real, que também pagam os três quartos à Ordem, como as velhas, e rendem seiscentos e oitenta mil reis.”

Por outra parte, inscrita como comenda nova (por certo a partir do espaço indeterminado da velha), encontra-se na Lista de todas as Comendas da Ordem de Cristo[13]:

“Lamego. Santa maria descalhão comendador dom alvaro gh´detaide avaliada em cento e seis mil trezentos e quarenta reis no anno de 1552.”

“Lamego. A comenda de santa maria descalhão; é comendador joão de mendoça; avaliada em 60 mil reis; ano é: (1)602.”

Tratava-se, portanto, de uma comenda rica, o que justificava a sua importância político-económica no espaço concelhio e diocesano. Tal progresso também se deveria à forte presença activa, económico-social, da comunidade judaica em Escalhão, cuja maioria dedicou-se à profissão de ourivesaria e filigrana. Convém dedicar algumas palavras à alfama sefardita escalhense (instalada no hoje chamado “bairro dos galegos”), sobretudo por nela assentarem muitas tradições bíblicas que passaram aos usos e costumes civis e religiosos locais, muitas delas de cunho hermético ou esotérico mas engenhosamente disfarçadas (criptojudaísmo)[14] no mais ortodoxo e rigoroso credo católico romano.

Que os “saberes e práticas proibidos” sefarditas – indo vazar-se no criptojudaísmo – revelam-se ao longo da raia nas tradições, usos e costumes populares, é facto incontornável. Mas também é facto indesmentível que já em 1209 se registava forte presença judaica em Escalhão, a qual os templários tanto protegeu como policiou os seus saberes e práticas, sobretudo os cabalísticos de foro messiânico, não deixando a fácies heterodoxa do rabinismo propagar-se indiscriminadamente, mesmo que por certo usufruíssem da mesma dando-lhe adopção, para sempre ficando assinalada na heterodoxia doutrinal que os distinguiu. Os privilégios concedidos aos sefarditas escalhenses seriam confirmados por D. Dinis em 1316, rigorosamente assegurados pela Ordem de Cristo[15].

A partir dos meados do século XVI, a Inquisição aumentou a censura e perseguição eclesiástica aos judeus obrigando-os à conversão em “cristãos-novos”, no que não obteve o êxito desejado apesar de todos os suplícios que lhes infligiu e tão-só originando o criptojudaísmo. Nos meados do século XVII já só haviam marranos ou b´nei anussim (“filhos de forçados”) na Diocese de Pinhel[16], descendentes de sefarditas obrigados à conversão mas que em segredo cumpriam escrupulosamente os preceitos da Torah, inclusive muitos deles dedicando-se secretamente ao exercício da Cabala e da Alquimia[17]. Dos 200 processos que a Inquisição moveu aos judeus figueirenses, todos acusados de “heresia e apostasia”, mais de metade foi contra os de Escalhão. Mesmo assim debalde, tanto em Pinhel como nas restantes dioceses, a ponto de D. André Furtado de Mendonça, bispo de Miranda, em 1675 queixar-se numa carta ao Papa: “Não achei erro algum acerca da fé a não ser a heresia judaica que, nesta diocese, cresce diariamente, por culpa dos nossos pecados.”

As repressões censórias das autoridades eclesiásticas, até então desconhecidas na ferocidade que as caracterizou, eram consequência da Contra-Reforma delineada no Concílio de Trento, a que não escapou a própria Ordem de Cristo, alterada de claustral em clausural pela reforma censória de frei António Moniz, mais conhecido por frei António de Lisboa, capataz de D. João III, o “rei papista”. O Concílio de Trento, convocado pelo Papa Paulo III, realizou-se de 1545 a 1563 como reacção – Contra-Reforma – à Reforma Protestante, iniciada com Martinho Lutero a partir de 1517. Saiu dele um Tribunal do Santo Ofício com poderes reforçados (só anulados no tempo do Marquês de Pombal), o qual logo moveu autos-de-fé e prohibitorum a tudo (homens, literatura e obras de arte, inclusive ermidas, capelas e igrejas) que considerasse apostasia e heresia contrárias à catequese oficial e à infabilidade papal[18].

Todavia, o movimento persecutório dos inquisidores à escala nacional não foi inteiramente bem-sucedido, pois muito escapou à sua delapidação censória, fosse por descuido ou por ignorância do sentido encoberto do exposto, como é o caso notável de Escalhão, notoriamente na sua igreja matriz, a começar pelo nome do Orago que se celebra em 2 de Agosto: Nossa Senhora dos Anjos, evocação de origem franciscana beguina ou espiritual.

Com efeito, Nossa Senhora dos Anjos é a Patrona da Ordem Terceira de São Francisco, desde que apareceu a ele numa noite de 1216, na igreja de Porciúncula, ao lado de Cristo e circundados de uma multidão de Anjos. Prontamente o santo rogou a indulgência plenária da Virgem Mãe pelas almas dos crentes, para que todas fossem mandadas ao Paraíso. Nossa Senhora acedeu ao pedido do Poverello com a condição de que o Papa (Honório III) desse primeiro reconhecimento à indulgência. Assim foi feito e satisfeito, mas Francisco recusou do Sumo-Pontífice qualquer documento escrito, alegando não se tratar de um indulto temporal mas intemporal por almas subidas ao Céu, acrescentando: “Deus cuidará de manifestar a Sua Obra, pelo que não necessito de qualquer documento. Esta Carta deve ser a Santíssima Virgem Maria, Cristo o Escrivão e os Anjos as Testemunhas”. Desde então a festa de Nossa Senhora dos Anjos ficou conhecida como Dia do Perdão, Perdão de Assis ou Indulgência da Porciúncula[19]. Também nisto, no geral da indulgência franciscana, há traços que a aproximam da celebração judaica do Yom Kipur, “Dia do Perdão”, realizado no mês de Tishrei (coincidindo com Setembro, Outubro ou Novembro), feriado observado por um jejum de 24 horas acompanhado de oração intensa.

Igualmente subentende-se, pela negação de documento escrito, a exclusividade da tradição oral como primitiva fórmula de transmissão do conhecimento espiritual (de certeza a razão principal do dédalo da Inquisição não a ter alcançado), aqui no tocante à fórmula de subida das almas ao Paraíso que, nesta matriz escalhense, representa-se na torre figurativa da Turris Eburnea (“Torre de Marfim”), epíteto da Virgem Maria retirado do Cântico dos Cânticos (7:4), aliás, assinalada em três letras gravadas no primeiro degrau de subida ao campanário: A M P – Ave Maria Pronobis, “Ave-Maria por nós”. Consequentemente, a “Torre de Marfim”[20], simbólica da nobre Pureza, é tão cara a cristãos como a judeus por se inscrever na Escritura Velha, onde para esses últimos Ester (a Santa Ester dos criptojudeus) faz as vezes de Maria, indicativo matricial de Iniciação Feminina que, aliás, se continha numa singular tradição local expectiva de bom parto.

Em Escalhão era tradicional a peculiar e espiritual fórmula de implorar uma boa hora para a mãe expectante, quando as condições aparentes indicassem possíveis dificuldades para dar à luz. Sete jovens virgens, todas Marias de seus nomes, subiam à torre sineira da matriz e, a espaços que davam tempo, cada uma fazia soar uma badalada no “augusto bronze”. E cada toque era sinal a quantos escutassem para rezarem uma Ave-Maria e rogarem a Nossa Senhora que intercedesse pela felicidade do parto. Sete orações de louvor e petição à Mãe de Jesus rogadas por sete donzelas, também Marias, e repetidas por muitas e muitos de qualquer idade e condição em suas casas, nos campos, pelos caminhos, por certo eram bem acolhidas pela Mater Dei [21].

Essa tradição popular terá origem medieval e se inspirado no poema épico Psychomachia, de Prudêncio (348-410), poeta latino cristão, que foi dos mais difundidos na Alta e Baixa Idade Média, inclusive encenado como a batalha moral da Alma (psicomaquia) dividida entre virtudes e vícios[22]. As sete virgens escalhenses representarão as sete virtudes que, por graus ou degraus, vão se acercando do elevado Céu até ao derradeiro toque viril do badalo que faz vibrar os Portais do Paraíso e as fará plena de graça. É um momento presente expectante de uma feliz realização futura. As sete virtudes (virtus) tradicionais, são: castidade (castitas) oposta à luxúria; generosidade (liberalitas) oposta à avareza; temperança (temperantia) oposta à gula; diligência (diligentia) oposta à preguiça; paciência (patientia) oposta à ira; caridade (humanitas) oposta à inveja; humildade (humilitas) oposta à soberba. Tais virtudes tomaram forma nas mulheres profetisas reconhecidas Sibilas pela Igreja, prenunciantes do Advento às quais a hermenêutica heterodoxa – inclusive dando-as como expressões humanas das siderais sete Mamas, Krittikas ou Plêiades, estrelas desta constelação configuradas como progenitoras de Kartikeya, o Paladino ou Guerreiro Celeste tanto associado a Kalki como a Maitreya pelos orientais, no Ocidente reconhecido Cristo Pantocrator, “Todo-Poderoso” – dispõe no plano da mais profunda ou esotérica Tradição Espiritual, também elas sendo expectantes de um Tempo futuro de Deus e Ideia, ou Ideia Divina saída do parto de uma nova e mais ampla consciência no Género Humano.

O Catolicismo dá especial enfoque às Sibilas de Cumes (Cumana), de Delfos (Délfica), de Elesponto ou Helesponto (Heliopolis), de Samos (Samo), de Eritreia, da Líbia (Líbica), da Pérsia (Pérsica) e da Suméria (Siméria). De todas, a que parece mais importante relativa ao Cristianismo será a Sibila de Cumes, a mesma que profetizou o Advento de Cristo, sendo o seu atributo iconográfico uma taça de ouro. A Sibila de Delfos previu a vinda da Idade de Ouro para a Terra, e tem por atributo uma coroa de louros (às vezes, uma coroa de espinhos). A Sibila de Helesponto profetizou a queda do Império Romano e o nascimento de uma Nova Civilização, aparecendo carregando uma cruz. A Sibila de Samos ditou que o futuro Salvador do Mundo nasceria numa manjedoura dentro de uma gruta, e por isso carrega nas mãos uma manjedoura. A Sibila de Eritreia fez o anúncio do nascimento do Messias, Messiah, Mashiah ou Avatara Jesus Cristo, razão do seu atributo ser a flor do lírio. A Sibila da Líbia registou as suas profecias sobre o Advento do Salvador, sendo o seu atributo simbólico um pergaminho. A Sibila da Pérsia vaticinou de forma nebulosa que a verdadeira Luz haveria de iluminar a noite dos homens, e aparece representada com um rolo ou pergaminho fechado. A Sibila da Suméria, simbolizada com um espelho ou um vidro, fez vaticínios sobre a Virgem Divina, a maior das Sibilas do Templo de Jehovah ou Júpiter, assim identificada pelos antigos, como Serva do Altíssimo Senhor Deus Único e Verdadeiro (a qual é aqui representada na própria igreja ou assembleia de Escalhão, particularmente na sua torre sineira posta sob o evoco de Maria)[23].

Pintura parietal da Senhora da Fé (Fides), alegórica da Sabedoria Velada, afim à Sibila de Cumes (Advento do Messias) mas também à de Helesponto (Nascimento de Nova Civilização). – Pintura parietal (século XVIII) ou fresco na sacristia da igreja-fortaleza de Escalhão.

As Sibilas são descritas como Mulheres-Oráculos da Grécia e Roma antigas possuídas de poderes proféticos sob a inspiração de Apolo ou Helius, o Logos Solar, projectando o seu Raio de Luz do Céu à Terra através dos Anjos que vinham aportar às mentes delas os prognósticos divinos. As Sibilas, nome grego dórico significando “Vontade de Júpiter” (Zeus ou Deus), eram originalmente sacerdotisas virgens e sábias desse deus, tido pelos poetas como o rei dos deuses e dos homens, e que lá do Olimpo agita o Universo com um simples mover da sua cabeça… Mais tarde, porém, transformaram-se de imaculadas sacerdotisas em famosas profetisas, e o seu dom da adivinhação por clarividência intuitiva espalhou-se por toda a Grécia indo alastrar aos países mais distantes. Os gregos também davam o título de pitonisa ou pythia às mulheres preparadas em colégios iniciáticos para serem oráculos, ou seja, profetisas. Isto porque, segundo a mitologia grega, Apolo, filho de Júpiter e Latona, nascera na Ilha de Delfos onde viria a matar a serpente Python, alegorizando a tomada da Sabedoria Divina pelo Fogo da Razão, já que a serpente representa o Fogo Criador que crepita e se agita no escrínio de tudo e todos. Era com a pele da serpente píton se recobria a trípode onde ardia o Fogo Sagrado (em sânscrito, Agni, identificando-se nos seus predicados ao latino Agnus) e se queimavam folhas de loureiro, sobre a qual se inclinava a pitonisa perscrutando dos segredos do futuro.

Hoje, com o declínio da ordem do sistema tradicional sócio-espiritual, aumentando a eterna ansiedade humana impelindo-a a procurar saber do seu futuro por obscuras e confusas sendas, vêem-se homens e mulheres de vidas estraçalhadas a quem resta só a esperança na resposta certa de adivinhos e adivinhas, a quem recorrem como último recurso numa vida ausente de verdadeira cultivação espiritual. Tais hodiernos adivinhos e adivinhas, produtos da ignorância geradora da confusão do psíquico com o espírito, que sem ordem nem regra aumentam a erva daninha da impuberdade psicofísica, em nadíssima poderão ser comparados, tampouco assemelhados aos magos, pitonisas e sibilas dos Mistérios de antanho. Em suma, o original sacerdócio feminino, todo ele expressando pureza física e moral e espiritualidade esclarecida, actualmente tem como oposto caótico as famosas bruxas cujas práticas divinatórias, psíquicas, não raro falíveis e até falsárias, correspondem com inteira justeza ao termo bruxaria, isto é, confusão, física e psicomental.

A invocação Nossa Senhora dos Anjos é justificada na hierarquia teológica pelo tipo de iconografia requerida para figurar no altar maior como consta no Livro I, Título II, das Constituições Sinodais de Lamego, redigidas em 1639 e publicadas alguns anos depois[24], dentro do espírito da Contra-Reforma de Trento ou Reforma Católica: “devemos adorar a Christo Senhor nosso, […] o Santissimo Scaramento da Eucharistia, […] o Lenho da propria Cruz […] Cravos, com que foi cravado, & Coroa, q lhe foi posta na cabeça, & Lança, com que seu lado foi trespassado, […] a Virgem Senhora nossa deve ser venerada, […] tambem se devem venerar, & honrar os Anjos, & os Santos”. Nisto, instituiu-se o grau de hierarquia das imagens: a de Cristo e à Cruz “se deva maior adoração, & reverencia, […] que nas outras Imagens de Santos naõ concorre, […] a Mãy de Deos se lhe deve maior veneraçaõ, que aos Anjos, & aos Santos, […] preferindo-a, naõ somente a todos os Santos, mas aos Anjos, & Archanjos”. É estabelecida, também, uma hierarquia de reverência: “a Igreja manda adorar as Imagens de Deos, & venerar as da Virgem Senhora nossa, & dos Santos”. Explica-se que a Deus estava reservada a adoração e culto de Latria, “que so a Deos se deve”, sendo dito que a honra que se faz à Virgem é veneração, e como espécie de adoração que é, “pertence ao culto da Hyperdulia”, cabendo a veneração dos Santos “ao da Dula”.

Santa Maria dos Anjos, Orago de Escalhão

Essa disposição hierárquica teológica justifica o incremento do retábulo eucarístico nos espaços eclesiais públicos e, ao mesmo tempo, pela importância ou sacralidade da adoração, inviabiliza esse tipo de retábulo nos espaços devocionais particulares. Paralelamente, ajuda a justificar o grande número de retábulos de invocação a Nossa Senhora nas capelas particulares dos arciprestados da Beira e de Trás-os-Montes, tratando-se de um culto que segue, em importância, o segundo lugar na escala teológica, e dessa forma já possível de prestar num espaço particular.

Contudo e quase alheias à pragmática das exigências tridentinas, no que havia a corrigir e até a eliminar em estatuária, pintura e talha[25], registam-se no interior da igreja de Escalhão (datada do século XVI, embelezada na centúria seguinte e com restauros no século XVIII, mas cuja origem recuará ao período medieval de D. Dinis e a Ordem de Cristo de que sobrevivem a fachada frontal e a torre) sinais inequívocos dela ter escapado às visitações e correcções da Contra-Reforma, dispondo-a na classe dos templos hieráticos e apócrifos, aparente e enganadoramente pressupostos hereges e apóstatas, se confrontados com os símbolos oficiais do programa da religião dominante, estes perpassados de longo pelo erudito espiritual de um, direi assim, supra-cristianismo, nos moldes tradicionais e iniciáticos da Tradição Espiritual do Ocidente, como era antes do Concílio de Trento.

Sobretudo há a relevância do simbolismo da rosa e da cruz juntas, repetidas com insistência significativa nos frescos decorativos do templo, o que recambia para a presença velada da Ordem Rosa+Cruz sucessora directa da Confraria dos Monges-Construtores beneditinos que aqui intervieram em Trezentos. A Ordem Rosa+Cruz foi fundada na Alemanha por Christian Rosenkreutz (“Cristão Rosacruz”) no século XIV, e depressa espalhou-se por toda a Europa incluindo Portugal, provocando a Reforma Protestante e até o início da Renascença e do Iluminismo. Durou até ao começo do século XVIII, onde veio a dissolver-se tanto no Movimento Iluminista (iniciador da moderna Academia sob o apodo “Colégio dos Invisíveis”) como na Maçonaria Especulativa, fundada em Londres no dia de S. João de 24 de Junho de 1717. Acerca dos Rosa+Cruzes, escreveu Anselmo Caetano Munhoz de Abreu no século XVIII (começando por um elogio e terminando numa censura, por certo para despistar o dédalo inquisitorial a qual dispenso descrever)[26]:

“Parece que a este género de felicidade aspirarão os Irmãos chamados da Rosa Cruz. Há uns anos que na Alemanha se erigiu com este título uma Irmandade de Filósofos, que também se chamavam os Invisíveis, e eles o eram de sorte que com inviolável fidelidade observavam as Leis e Regras da sua Instituição; carteavam-se com enigmas e se prezavam de saber segredos ainda mais notáveis que o da Pedra Filosofal; porém a sua invisibilidade era o seu maior mistério, porque com ela não ficavam expostos à perigosa curiosidade dos Grandes (…). Eu aqui não faço menção deles senão para confirmar o prudente recato com que devem viver os que tiverem a fortuna de conseguir algum notável descobrimento em Arte, ou Ciência, porque necessitam de outro anel, como o de Gyges, para se fazerem invisíveis, enquanto houver Magnates no Mundo. A reputação desta tão recôndita Ciência (Alquímica) muitas vezes prejudica muito a vaidade dos que com razões sofísticas, experiências aparentes e apócrifas tradições, quiseram certificar a sua existência. A estes apaixonados padrinhos do Lapis tenho às vezes ouvido provas, que até na Sagrada Escritura pareciam solidamente fundadas.”

No interior da matriz escalhense, junto à porta lateral, está uma antiga pia de água benta decorada com um listel com as figuras esculpidas de uma rosa, um coração, uma ave e um ramo (talvez de oliva), deixando o subentendido da frase latina Ave Cordo Maris: “Ave, Coração do Mar” (água, aqui a benta, benzida ou sagrada, retirada do poço dentro desta igreja), pressupondo ainda o eventual conhecimento e, talvez, presença ocultada da misteriosa Ordem de Mariz que a historiografia traz no completo desconhecimento, mas que terá actuado por artistas e mestres da heterodoxia hierática, dita Ciência Secreta ou Gnôsis (Gnose, “Sabedoria Perfeita”), por outra, Theosophia (Teosofia, “Sabedoria Divina”) sob feição judaico-cristã.

No lado oposto, no lugar do Evangelho ou da Palavra, encontra-se o púlpito encimado pelo Anjo da Trombeta – Mikael – ribombando o anúncio de Advento do Sol Salvífico (gravado na cimalha exterior da respectiva porta lateral) de uma nova Idade redentora do Mundo, motivo transferindo para o texto inicial do Apocalipse (1:1): “O Apocalipse de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para descobrir aos seus servos as coisas que cedo devem acontecer, e que ele manifestou, enviando-as, por meio do seu Anjo, a seu servo João”[27]. A palavra apocalipse tem origem na grega apo-kálypsis, “revelação velada ou secreta” (apo, “exposta, revelada”, e kalumna, “véu, encoberta, secreta”), e nisto deixa o subentendido de Parusia ou Advento Final velado sob a exclusividade aparente da função do púlpito como lugar do ministério da Palavra, da expressão do Verbo Divino, confirmando a justificativa contida na Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios (3:6): “Foi Ele que nos tornou aptos para sermos sacerdotes de uma Nova Aliança, não pela letra mas pelo Espírito, porque a letra mata e o Espírito vivifica”[28].

A grande abóbada comprida e alta, dando feição medieval ao amplexo interior do templo, apresenta-se decorada com pinturas de motivos geométricos claramente herméticos, por certo importados da tradição clássica pitagórica dos construtores livres da Renascença, os liberi muratori, cuja arquitectura sagrada desenvolveu-se a partir dos escritos vitruvianos de 1521, ou seja, os de Lúcio Vitrúvio, que por sua vez inspirou-se nos princípios da geometria sagrada medieval impressos no pequeno livro On the Ordination of Pinacles, do arquitecto alemão Mathäus Röriczer (falecido em 1492), baseado no rombus ou vesica, ou seja, em círculos concêntricos onde o quadrado e o hexágono são desenhados mostrando a relação do ad altum (elevação) com o ad quadratum do plano básico: em uma desta pinturas tectuais vê-se a Roda da Vida (chamada Rota Mundi pelos antigos Rosacruzes), em outra a Flor da Vida (Flos Vitae) inspirada na Vesica Piscis (“bexiga de peixe”, como alusão geométrica ao Ciclo de Piscis no qual o Cristianismo nasceu), e noutra ainda a swástika ou suástica clavígera dos pontos cardeais irradiando de Sol central[29], motivo assinalado no Hinduísmo como Pramantha ou “Ciclo de Evolução Universal”.

Sem dúvida a maior jóia artística desta igreja é o seu altar-mor, com rico retábulo de dois andares em talha dourada apoiados e enquadrados por colunas salomónicas de seis espirais cada, sendo do “estilo nacional” dos fins do século XVII e início do seguinte, como revelam os seus elementos maneiristas juntos a outros tantos barrocos. Sobre o entablamento domina a imagem do Orago, Nossa Senhora dos Anjos. No patamar superior, próximos do Divino, enfileiram-se as imagens dos 4 Profetas (Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel) assinalando a Escritura Velha ou Antiga Tradição (Patriarcas). No patamar inferior, próximos da Humanidade, apresentam-se os 4 Evangelistas (Mateus, João, Lucas e Marcos) representado a Escritura Nova ou Nova Revelação (Apóstolos). Mas o mais interessante e insólito de tudo quanto há nesta igreja, são os dois baixos-relevos laterais, retábulos do estilo flamengo do século XVI, representando Jesus a caminho do Calvário e a deposição de Jesus no sepulcro, que remetem sem delongas para interpretações abertamente heterodoxas do Hermetismo cristão, e claramente heréticas para o Catolicismo confessional, opondo as duas maneira de visionar a mesma coisa.

A presença aqui desse figurino hierático deixa o subentendido que os censores de Trento não chegaram a Escalhão, ou talvez fossem impedidos de chegar por alguma autoridade eclesiástica, possivelmente o próprio arcebispo de Riba Côa, António Pinheiro da Fonseca, familiar dos Pinheiro da Fonseca que construíram este templo e cujo brasão d´armas encima a sua entrada principal. Isso poderá explicar o contrato estabelecido pela Fábrica da Igreja, mas sob chancela da Ordem de Cristo donatária desta comenda velha, com o luso-flamengo Arnao ou Arnão de Carvalho (1506-1533), que foi o mestre entalhador do altar-maior desta igreja em 1524, pareando com o mestre dourador Henrique Fernandes, reputado artista de Viseu. Arnao de Carvalho, tal como muitos flamengos vindos para Portugal, certamente não seria alheio às “heresias” correntes na época que enfileiravam o chamado Hermetismo Renascentista. Ele viera para aqui depois dos trabalhos de entalhamento que realizara na igreja de Freixo da Torre e antes na Sé Catedral de Lamego, e daqui seguiu para Santiago de Compostela onde realizaria outros trabalhos em igrejas da capital da Galiza. Depois, ainda nesta igreja escalhense, dando sequência ao programa ilustrativo de mestre Arnao, foram realizados os frescos da sacristia em 1761.

Mesmo que aparentemente os retábulos tão-só expressem as 2.ª e 14.ª estações da Via Crucis – solenidade pascal evocativa da Paixão e Morte do Senhor iniciada no século XV pela Piedade franciscana – contudo há outra leitura mais profunda no esconso do figurino piedoso. A 14.ª estação – Jesus depositado no sepulcro – remete para o tempo futuro da apoteose e confirmação da Fé: trata da descida da alma do Senhor aos Infernos, Inferius, Inferiores ou Mundos Interiores, Subterrâneos, como antelóquio da ressurreição (anástase) corporal ao terceiro dia. Neste painel aparece o dono do sepulcro, José de Arimateia, ao lado de Maria de Cléofas, considerada tia de Jesus, Maria Mãe de Jesus, Maria Madalena, João Evangelista e Nicodemos. O sepulcro onde Arimateia e Nicodemos depositam o corpo inerte do Senhor sobre o sudário, apresenta no frontal as efígies dos rostos de três homens: um rosto barbado ligeiramente de lado – possivelmente o próprio José de Arimateia, membro do Sinédrio e pressuposto discípulo secreto de Jesus (João, 19:38) – oposto a um outro rosto barbado que porventura será Nicodemos – também membro do Sinédrio que o Talmude identifica como Nicodemos Ben Gerion. Entre ambas as efígies aparece uma terceira, semiencoberta pelo sudário, de um jovem imberbe: assinalará aquele que há-de ressuscitar do véu da morte num corpo novo, jovem e glorificado em “corpo pneumático”, para usar a expressão paulina (I Coríntios, 15:44). Pneuma é literalmente o “Sopro de Vida”, ainda que se interprete correntemente como “Espírito”. Ora, a ressurreição é predicado do Espírito Santo pela qual Cristo ressurgiu em seu corpo espiritual vivificado e revelado ao terceiro dia, como triunfo da Vida sobre a Morte[30].

O outro baixo-relevo revela-se o mais insólito de tudo quanto aqui há: nele vêem-se dois Jesus, um carregando a cruz e outro lateral por cima observando-o. Poderia ser identificado ao “bom ladrão”, que no conjunto aparece ao lado de uma terceira figura desnuda sem aura de santidade, portanto, o “mau ladrão”, ambos tendo acompanhado o Senhor no derradeiro martírio. Poderia muito bem ser, se não fosse o desmentido cabal de aparecer num fresco setecentista, na sacristia, a Senhora do Leite amamentando duas crianças (expressiva da virtus Charitas ou o Amor), pelo que efectivamente são dois Jesus e não quaisquer ladrões condenados à morte como narram os evangelhos sinópticos, apesar disso talvez ou decerto ter servido de pretexto para velar o flagrante às correcções inquisitoriais, todavia parecendo ter sido tema apócrifo comum antes da Contra-Reforma[31].

O próprio Leonardo da Vinci foi convidado a pintar novo quadro depois da sua primeira versão da Senhora das Rochas (1483-1489, exposto no Museu do Louvre, Paris), onde aparecem duas crianças indistintamente junto da Virgem Maria e do Anjo Gabriel. Na segunda versão (1495-1508, exposta na Galeria Nacional de Londres), já aparecem com os atributos identificativos o menino João Batista adorando o menino Jesus. Os dois Jesus também estão retratados num quadro do século XV no Museu Nacional de Borgonha, em Dijon, onde um aparece sentado no trono de Israel fitando o outro que se oculta sob o manto da Virgem Maria, tema repetido em O Mistério feito Memorial (peça em mármore policromado do início do século XVI que fez parte da Exposição de Arte Sacra da Diocese de Aveiro), onde aparecem dois meninos sentados no regaço da Virgem Mãe cruzando os braços à altura do peito dela, assim apontando a sua progenitora.

O caso da Senhora ter dado à luz duas crianças (Jesus e Jairo, diz a Tradição) e não uma só como hoje é aceite universalmente, poderá parecer mais que estranho e escandaloso: será remetido para a pura fantasia apócrifa! Mas também poderá não ser, atendendo às duas naturezas de Jesus (o iracundo que expulsou a vergastadas os vendilhões do Templo, e o amoroso que proferiu o sermão da Montanha; o que diz não trazer a paz mas a espada – Mateus, 10:34 – e o que aconselha os homens a amarem-se com Ele ama a Humanidade – João, 13:34) e às suas correspondentes funções: o Jesus Davídico destinado a Rei de Israel, e o Cristo Messias que assistiu àquele na vida e à distância o contemplou na morte, sem da mesma participar por ser impossível ao Homem matar Deus, o Mashiash ou Avatara, a manifestação do próprio Espírito de Verdade.

O tema dos dois Jesus (Deus-Homem e Homem-Deus) é constante nos evangelhos apócrifos, a maioria deles contemporâneos dos evangelhos sinópticos que ganharam força de lei a partir do Concílio de Niceia (ano 325), quando foram queimados cerca de 4000 outros evangelhos considerados heréticos, à margem da catequese imposta e afirmada no Credo de Niceia: “Àqueles que afirmam que o Filho de Deus é uma Hipóstase ou Substância diferente, ou foi criado, ou é sujeito à alteração e mudança, a esses a Igreja anatematiza”, repetindo-se no Credo de Atanásio, com isso preanunciando o início da Idade Média que no seu pior foi “Idade de Trevas”, isto é, de intolerância, censura, perseguições e crimes em nome do fundamentalismo e exclusividade de uma religião de prepotência e domínio das almas e dos Estados[32].

Consultando os evangelhos apócrifos constantes da Biblioteca de Nag Hammadi editados em Portugal[33] e no Brasil[34], procurando neles a presença ou tão-só a sugestão dos dois Jesus, respigo:

Evangelho de Filipe

“«Jesus» é um nome oculto. «Cristo» é um nome revelado. Por isso, «Jesus» não existe em nenhuma (outra) língua, mas sim o seu nome é «Jesus», como é denominado. No que respeita a «Cristo», o seu nome é, em siríaco, «Messias» e em grego Christos. Certamente todos os outros o têm, segundo a língua de cada um. O «Nazareno» é o (nome) manifesto do que está oculto. Cristo possui tudo em si mesmo, seja nome, anjo, mistério e (mesmo) o Pai[35].

“Mediante água e fogo todo o lugar é purificado: o manifesto mediante o manifesto, o oculto mediante o oculto. Há algumas coisas ocultas mediante as manifestas. Há água na água, há fogo na unção.”

Livro de Tomé, o Atleta

“Por isso, assim, tu és meu irmão, Tomé. Viste o que está oculto aos homens; ou seja, aquilo em que tropeçam ao não conhecê-lo.”

Apocalipse de Pedro

“– Que vejo eu, oh Senhor? És tu aquele a quem agarram e és tu o que te agarras a mim? Ou quem é esse (que) sorri alegre sobre a árvore[36]? E há outro a quem batem nos pés e nas mãos?

“O Salvador disse-me:

“– Aquele que viste sobre a árvore alegre e sorridente, esse é Jesus, o vivente. Mas este outro, em cujas mãos e pés espetam os cravos, é o carnal (sarkinos), o substituto, exposto à vergonha, o que existiu segundo a semelhança olha para ele e para mim!”

Segundo Tratado do Grande Seth

“A minha morte, com efeito, que crêem que aconteceu, existiu para eles equivocada e cegamente. Cravaram o seu homem para a morte deles. Porque os seus pensamentos não me viram, porque eram surdos e cegos. Fazendo isto, porém, julgam-se a si mesmos. Por um lado, viram e castigaram-me, (mas) foi outro, o seu pai[37], o que bebeu o fel e o vinagre, não fui eu. Foi a outro a quem colocaram a coroa de espinhos. Eu, no entanto, regozijava-me nas alturas sobre o domínio total dos arcontes e da semente (spora) do seu erro, da sua vã glória, e zombava da sua ignorância. Todos os seus poderes, no entanto, eu os submeti à servidão.”

Sabe-se que os textos apócrifos dos gnósticos cristãos eram do conhecimento e consulta das autoridades eclesiásticas do século IV; sabe-se que circularam nos meios eruditos e fechados tanto das instituições religiosas e militares (como foi o caso da Ordem do Templo) como nas sociedades ilustradas do Renascimento, e sabe-se que a sua fama junta com parte dos mesmos chegou até aos inícios do século XIX, ainda que só no XX tenha se começado a analisar cientificamente o conjunto textual sobrevivente às vicissitudes do tempo.

Este tema aparece igualmente nos evangelhos oficiais no referente à família de Jesus deixando o pressuposto da efectividade de “dois Cristos”, um o Amoroso que Ama (“Amai-vos uns aos outros como vos amo”) e outro o Iracundo que Castiga (“Expulsão dos vendilhões do Templo a vergastadas”), ou seja, o Jesus Homem (Jeoshua ou Yoshua, Potens) e o Cristo Deus (Christus, Autoritas), aquele Avatara deste, o Messias (Mashiash). No Evangelho de Mateus (13:55-56) são referidos os irmãos e irmãs de Jesus, o que se repete no Evangelho de Marcos (3:31-33) e no Evangelho de Lucas (8:19-20), e finalmente no Evangelho de João (19:25-27) com Jesus prestes a expirar no Calvário fazendo entrega de João a sua Mãe dando-o como filho desta, portanto, seu irmão, nisto irmão espiritual em guisa de o repassar do Cristológico (Filius) à Hipertúlia (Mater) num novo ciclo de Palavra (Verbum) e Sabedoria (Gnôsis), onde mais jovem dos Apóstolos seria o novel pastor filialmente com sua Mãe, não carnal mas apostólica, como quis e confirmou nos momentos finais da Paixão o Homem das Dores, acto derradeiro selado com o seu próprio sangue e linfa.

Agora, convirá estabelecer um comparativo histórico entre evangelhos sinópticos e apócrifos, e em que destoam, se destoam, uns dos outros.

Os títulos dos evangelhos não provêm dos evangelistas, porque antigamente não se costumava exornar as obras históricas com os nomes dos autores, mas remontam aos tempos dos Padres Apostólicos; tanto assim é que já os conhecia o autor do Fragmento Muratoriano (2.º século), bem como Santo Irineu (+ 202) e S. Clemente de Alexandria (+ 217). Os três primeiros evangelhos, ainda que literariamente autónomos e independentes, por apresentarem concordância no conteúdo e exposição, foram recebidos no cânone do Novo Testamento com um quarto evangelho, o de S. João, posterior. No intuito de pôr em relevo essa concordância, traçou-se um paralelo sistemático entre os três primeiros textos evangélicos, dando como resultado uma interessante sinopse. Daí, esses escritos virem a chamar-se de “evangelhos sinópticos”, e os seus autores, “os sinópticos”.

Os evangelhos gnósticos faziam parte da mesma corrente de tradição que os sinópticos, estes, mesmo assim, só aceites oficialmente no século IV, aquando do supradito Concílio de Niceia que afirmou decisivamente a Igreja como “religião de Estado”, com sede definitiva em Roma, ou seja, quando Silvestre e Constantino firmaram a união política entre o Papa e César, e a corrente gnóstica passou a ser marginalizada pelo novo cânone, quando não perseguida de maneira implacável. Esse foi um notável contrassenso, posto a corrente gnóstica ser a postulada em reservado por Jesus Cristo que a terá ensinado aos Apóstolos e estes aos seus discípulos, os citados Padres Apostólicos (Santo Irineu, São Clemente de Alexandria, São Timóteo e ainda Orígenes, Jâmblico, etc.).

Havia, pois, um conhecimento público ou popular (catequese e confissão dos simples) e uma sabedoria reservada ou restrita (teologia e perfeição dos sábios) no entendimento e promulgação do Cristianismo. Isso mesmo é claramente explícito nos evangelhos sinópticos: “E quando se achou só, os que estavam junto dele com os doze após-tolos o interrogaram acerca do sentido desta parábola. Ele disse-lhes: A vós é dado conhecer os mistérios do Reino de Deus, mas para os que estão de fora, todas estas coisas se dizem por parábolas”. E mais adiante: “Assim, lhes anunciava a Palavra por muitas parábolas semelhantes, conforme os que eram capazes de o ouvir. Ele não lhes falava senão por parábolas, mas quando estava em particular explicava tudo aos seus discípulos” (Marc. IV, 10, 11, 33, 34; Mat. XIV, 11, 34, 36; Luc. VIII, 10). E mesmo com os discípulos mostrava a reserva ou contenção na revelação da Sabedoria: “Muitas coisas tinha ainda que vos dizer, mas estão muito acima do vosso alcance” (Jo. XVI, 12).

Orígenes viria a servir-se dessas palavras para fazer alusão ao ensinamento secreto mantido pela Igreja, ou seja, a Gnose. S. Clemente de Alexandria, nos Stromatas ou “Miscelâneas”, declara que a Gnose “comunicada e revelada pelo Filho de Deus é a Sabedoria… Ora, a Gnose é um depósito que chegou a alguns homens por transmissão: ela tinha sido comunicada oralmente pelos Apóstolos” (Stromata I, VI, cap. VII). E adianta: “O homem familiarizado com todos os géneros de Sabedoria será o Gnóstico por excelência” (Stromata I, VI, cap. XIII), rematando: “O Apóstolo, distinguindo a fé ordinária da Perfeição gnóstica, chama à primeira a fundação e, às vezes, o leite (Stromata I, XII, cap. IV)[38].

Consequentemente, como os quatro evangelhos sinópticos faziam parte de inúmeros outros remetidos à fogueira sob pretexto de heresia, acaba verificando-se haverem inúmeros “hiatos” nas suas narrativas, por certo só encontrando comutação nos textos daqueles marginalizados. Tratar-se-á de algo assim como um “puzzle” completo ao qual retiraram várias peças, com o resultado de ficarem decisivamente incoerentes.

A doutrina oficial católica como hoje é entendida, por conseguinte a leitura e interpretação da sua catequese e confissão, ficou a dever-se à acção pastoral dos consignados quatro Doutores da Igreja (Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerónimo, São Gregório Magno)[39], termo comum nas obras dos escolásticos, havendo o Papa Bonifácio VIII ordenado, em 1298, que fossem festejados aos pares pela Igreja do Ocidente, como aliás estão retratados numa pintura no tecto da sacristia desta matriz de Escalhão, com São Gregório Magno tendo estampada a rosa rubra no peito, sinal de Divino Amor que a Pomba do Espírito Santo lhe insufla. No centro do fresco quadrangular, em guisa de “fecho de abóbada” (fingida), está a rosa suportando a cruz com uma swástika no meio, motivo remetendo novamente para a presença da influência Rosa+Cruz, a qual como símbolo de Iluminação pelo Amor transmite a ideia de Igreja do Amor (oposta à de Roma), para onde o movimento destrocêntrico ou solar da swástika parece querer mover o pensamento dos máximos eclesiais, como prenúncio de um novo ciclo de Cristandade tal qual ela seria originalmente[40]. Por baixo de Santo Agostinho aparece um outro fresco, o já referido da Senhora do Leite amamentando os seus dois filhos, tema decerto conhecido desse bispo de Hipona que antes de ser cristão fora neoplatónico, gnóstico ingresso no Maniqueísmo[41].

A afirmação do Amor como Sabedoria maior revela-se nas três virtudes teologais retratadas no fresco da Senhora Vendada (Occultum) ostentando os símbolos da Fé (Cruz) e da Esperança (Cálice), e vendada como sinal de virtude indiscriminada. Ela encima o belo lavabo dúplice, datado de 1761, de onde a água saía da boca de dois Anjos (um Querubim (Matra-Deva, em sânscrito), Senhor da Sabedoria, à direita; um Serafim (Manasa-Putra, em sânscrito), Senhor do Amor, à esquerda).

Bem parece que a Rosa+Cruz como ideal e filiação fechada ou hermética terá sido perfilhada pelos terços mendicantes (sendo este o significado – mendicância – da imagem invulgar de Santo António com a sacola a tiracolo e o Menino Jesus ao colo, como se vê num altar lateral desta matriz escalhense) da Ordem Terceira de São Francisco da Província de Portugal (assinalada na presença de Fernando Bulhões e Taveira de Azevedo, mais conhecido por Santo António de Lisboa e Pádua, coevo e companheiro de São Francisco de Assis), posto a presença franciscana ser constante neste espaço sagrado, repetindo-se ainda na sacristia em pinturas em madeira (dos fins do século XVIII), numa das quais vê-se a imposição dos estigmas a São Francisco de Assis, e noutra Santo António com o Menino, ambas ladeando uma Senhora aureolada de santidade em oração com um livro ao lado. Vestida com trajes ricos sinal da sua riqueza e nobreza, e aparte a auréola de santidade que não costuma aparecer nas suas figuras e imagens, poderá tratar-se de Santa Maria Madalena lendo o Livro das Horas, tema retratado por vários artistas desde a Idade Média, talvez sendo o mais notável Maria lendo, retábulo do século XV (terminado entre 1435-1438) do pintor holandês Rogier van der Weyden, exposto na Galeria Nacional de Londres.

O culto medieval e renascentista a Santa Maria Madalena teve a primazia dos terços franciscanos e dos arrábidos, reconhecendo na santa não a devassa mas a mulher apóstola dos apóstolos, corrigindo as hagiografias dos antigos doutores e escolásticos acerca dela – nibilominus Magdalenam meretricem fuisse calumniosum est – tendo-lhe dedicado páginas do maior brilhantismo historiográfico e teológico[42], dizendo ainda Anselmo Caetano Munhoz de Abreu (ob. cit.) em 1732: “Quando os Sacerdotes estiverem na presença das Senhoras mais ilustres hão-de estar assentados, e elas em pé, por eles serem Anjos e elas mulheres. Muito ilustre mulher era a Magdalena, por ser uma das mais nobres Senhoras da Corte de Hierusalém, e quando no sepulcro esteve na presença dos Anjos, e conversando com eles, ela esteve em pé e os Anjos assentados.”

Maria Madalena, a escusada se bem que adorada, incarnará o sentido do Feminino Sagrado que ungiu o Verbo Divino confirmando a sua realeza de Christus, malquista por uma Igreja mais patriarcal e menos matriarcal que leva a não esquecer o famoso Sínodo de Mácom, no século VI (ano 585), aquando Maria foi finalmente reconhecida “Mãe de Deus” e a Mulher, por consequência, ganhou o direito efectivo “a ter alma”. As constantes correcções e alterações sinodais e conciliais acabariam por retirar a assunção ou direcção da Ala Feminina da Igreja a Maria, consorte de Cristo Deus, Mater Dei desde logo Theotokos ou Christotókos – o “Verbo testemunho de Cristo” –, função que assume com a descida do Espírito Santo como Fogo, acto do Pentecostes. Ele que antes descera sobre o Pantocrator mergulhado na Água batismal. Fogo e Água, ambos Batismos – Sacramento de Espírito Santo – cujo encontro ou fusão ir-se-á fazer pela consorte apostólica de Jesus Homem: Maria Madalena, “porta-voz” de Maria a Mãe, consequentemente, bem merecendo o título de Odighitria, “Aquela que indica o Caminho” às “mulheres de Jerusalém”, início do Marialis Cultus.

Poderá se objectar: como poderia Maria Madalena ser personagem tão distinta se não passava de uma prostituta que se arrependeu diante do Salvador, ungindo os seus pés com bálsamo e secando-os com os cabelos, portanto, uma mulher ordinária, vulgar? Ainda hoje se diz, na vox populi, “chorar como uma Madalena arrependida”…

Poderei opor: em nenhuma parte dos evangelhos se escreve que Maria Madalena fosse prostituta. Isso ficou a dever-se a imprecisões das leituras de St.º Agostinho e S. Jerónimo – identificando Madalena como mulher abastada casada com um nobre distinto de Jerusalém a quem enganara para seguir Jesus, sem explicar em que consistira tal engano e quem era esse nobre, como comenta frei Isidoro de Galves (ob. cit.) – feitas por S. Gregório I, o Magno (c. 540 – 12.3.604), expostas na sua compilação dos Sete Pecados Capitais, partindo das oito tentações descritas pelo monge Euagrios Pontikos dois séculos antes. Foi ele e extensivamente a Igreja Latina, ainda assim celebrando-a em 22 de Julho, que a identificaram à pecadora anónima de S. Lucas (VII, 36:50) e igualmente a Maria de Betânia, irmã de Marta e de Lázaro. Um capítulo antes de falar de Madalena ou Magdala (cidade da Galileia), Lucas refere uma mulher que ungiu Jesus. No Evangelho de Marcos, também há a descrição de uma unção semelhante, por parte de uma mulher cujo nome não é indicado. Nem Lucas, nem Marcos identificam explicitamente essa mulher como sendo Maria Madalena. Porém, Lucas diz tratar-se de uma “mulher caída”, de uma “pecadora”. Comentadores e exegetas posteriores supuseram que fosse Madalena, dado que, segundo é descrito, tendo saído dela “sete demónios” (no texto grego: “sete génios (daimon, δαιμόν, daemonium, em latim), sete forças”, algo assim como os sete atributos da Energia Criadora latente no Homem, que os cabalistas cristãos chamam Fogo Criador do Espírito Santo e os sábios hindus de Kundalini) só poderia ser uma pecadora. Baseando-se nisso, a mulher que unge a Jesus e a Madalena foram consideradas a mesma pessoa. Na realidade, é possível que a fossem. Se Maria Madalena tinha a ver com um culto pagão, marginal ao dos fariseus e saduceus da capital Jerusalém onde estava o grande Templo, possivelmente essénio/zadokita já na época ostracizado, certamente por isso haveriam de convertê-la numa “pecadora” aos olhos não só de Lucas mas também dos autores posteriores[43].

A verdade é que as crenças essénias andavam próximas das fenícias no tocante à astrolatria, e no tempo de Jesus os cananeus davam o nome da deusa fenícia Astarte às prostitutas e, sobretudo, às apóstatas e hereges, estas as mulheres contestadoras do ministério oficial exercido pelos levitas junto do povo. Recebiam o dito epíteto ou um outro depreciativo pelo qual também se conhece Astarte: Astoreth, feminino de Astaroth, o “deus da perdição” (donde o apodo acrítico “mulher de perdição”), na realidade, o Deus da Mente [Emancipada], das “diáblicas interjeições mentais” que obrigam à Pureza e à Inteligência, ou seja, à posse efectiva da Gnose, da Sabedoria Divina que transforma o simples crente num partícipe sábio, dispondo o estado confessional sob a consciência mistérica.

Sinais de saberes ocultados que, enfim, a igreja matriz de Santa Maria dos Anjos de Escalhão reserva como notável testemunho beirão da Igreja do Amor cujos Maiores, velados no anonimato do mistério e desvelados no testemunho monumental, um dia chamaram a Humanidade a um Novo Tempo de Espírito, ao regresso ao Cristianismo original e ao mais sublime da Palavra de Cristo: a Iluminação pela Sabedoria do Amor, havendo Amor na Sabedoria e Sabedoria na Palavra final.

 

NOTAS

 

[1] Luis Thayer Ojeda, La Prehistoria de España a través de los Mitos. Imprenta y Escuadernación Roma, Valparaíso, 1932.

[2] Raúl Proença, Guia de Portugal: Beira II – Beira Baixa e Beira Alta, p. 972. Edição Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Março de 1994.

[3] M. Gonçalves da Costa, História do Bispado e Cidade de Lamego – II. Idade Média: Paróquias e Conventos. Lamego, 1979.

[4] Pinharanda Gomes, História da Diocese da Guarda, p. 100. Editora Pax, Braga, 1981.

[5] Antero de Figueiredo (Coimbra, 28.11.1866 – Foz do Douro, 10.4.1953), Espanha: páginas galegas, leonesas, asturianas, vasconças e navarras, p. 309. Livrarias Ailland e Bertrand, Paris-Lisboa, 1923.

[6] Júlio António Borges, Escalhão – a terra e as gentes. Edição da Casa de Freguesia de Escalhão, Julho de 2003.

[7] Frei Bernardo da Costa, História da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo. Lisboa, 1771.

[8] Vitor Manuel Adrião, Portugal Templário (Vida e Obra da Ordem do Templo). Edição do autor, Lisboa, 1997; edição Via Occidentalis Editora Lda., Lisboa, 2007; edição Madras Editora Ltda., São Paulo, 2011.

[9] Abílio Pires Lousada, A Estratégia Militar dos Templários em Portugale. In Revista de Administração Militar, N.º 4, Ano 1, 3.ª Série, Outubro-Dezembro de 2003.

[10] Diffiniçoens & Estatutos dos Cavalleyros e Freyres da Ordem de Nosso Senhor Jesu Christo, com a Historia da Origem & Princípio della. Lisboa Occidental: na Officina de Pascoal da Sylva, 1717.

[11] Quer dizer, o Bispado possui-as em conjunto como se fossem uma só.

[12] Comendas de S. Pedro de Marialva, S. João do Pinheiro, St.ª Maria do Azevo e S. Martinho de Arranhados.

[13] Ordem de Cristo: Lista de todas as Comendas que ha em estes Reynos de Portugal, da Ordem de Cristo, da apresentação de S. Magest. E do Duque de Bragança… (feita em Junho de 1615). Letra da época. Com outras peças. 1 vol. In fol. De 78 fls. Cod. 412, Biblioteca Nacional de Lisboa.

[14] Dicionário do judaísmo português. Org. de Lúcia Mucznik, José Alberto Tavim, Esther Mucznik e Evira de Azevedo Mea. Editorial Presença, Lisboa, 2009.

[15] Cf. Maria José Ferro Tavares, Os judeus na Beira Interior. In Guarda, história e cultura judaica. Guarda, 2000.

[16] Cristãos-Novos na Beira Interior. Edição Agência para a Promoção da Guarda, 2014.

[17] Cf. Amílcar Paulo, A Dispersão dos Sephardim. Judeus hispano-portugueses. Editora Nova Crítica, Porto, 1978.

[18] Pedro Arellano y Sada, Catálogo de la Exposición Bibliográfica del Concílio de Trento y Conferencias leídas durante la misma Exposición. Barcelona, 1947.

[19] Augusto Drago, Palavra de Deus, Sagrada Escritura. Dicionário Franciscano. Editora Vozes, Petrópolis, 1983.

[20] “Torre de Marfim” se chama a Maria na Ladainha Lauretana ou Ladainha da Santíssima Virgem, composta no final da Idade Média e aprovada pelo Papa Sisto V em 1587, destinada aos fiéis do santuário da Santa Casa de Loreto, Itália.

[21] Júlio Gil, As mais belas igrejas de Portugal, vol. I, p. 196. Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1988.

[22] José Martínez Gásquez y Ruben Florio, Antología del Latín Cristiano y Medieval – Introduccion y textos. Editorial de la Universidad Nacional del Sur, Argentina, Mayo 2006.

[23] Vitor Manuel Adrião, Guida de Milano Insolita e Segreta. Edizion Jonglez, Versailles, Maggio 2012.

[24] D. Miguel de Portugal, Constituicoens Synodaes do Bispado de Lamego: 1639. Officina de Miguel Deslandes, Lisboa, 1683.

[25] P.e José Castro, Portugal no Concílio de Trento, vol. I. União Gráfica, Lisboa, 1944.

[26] Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco, Ennoea ou Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal. Lisboa Ocidental, 1732.

[27] Bíblia Sagrada, traduzida em português segundo a Vulgata Latina pelo padre António Pereira de Figueiredo. Depósito das Escrituras Sagradas, Lisboa, 1911.

[28] Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas, São Paulo, 1981.

[29] Cf. René Guénon, A Grande Tríade. Editora Pensamento, São Paulo, 1989.

[30] D. J. Furley, From Aristotle to Agustine, p. 29. Routledge, London, 1999.

[31] Hella Krause-Zimmer, Le Problème des deux enfants Jesus et sa trace dans l´Art. Editions Triades, Paris, 1989. Rudolf Steiner, Le mystère des deux enfants Jésus, conference 1909. Editions Antroposophiques Romandes, Neuchâtel, 1999.

[32] J. H. Burns, Histoire de la pensée politique médiéval. 350-1450. Édition Léviathan, Paris, 1993.

[33] Biblioteca de Nag Hammadi, três volumes. Ésquilo Editora e Multimédia, Lda., Lisboa, 2005.

[34] James M. Robinson, A Biblioteca de Nag Hammadi – A tradução completa das Escrituras Gnósticas. Madras Editora Ltda, São Paulo, 2006.

[35] As valências Jesus e Cristo mostram-se trocadas ou invertidas, talvez por tradução deficiente, como aliás se repara na última frase do texto contrariando o que antes fora dito, ou seja, dispondo Cristo Deus como superior a Jesus Homem, um para o Mistério do Espírito (Cristo) e outro para a Revelação da Carne (Nazareno).

[36] Ou seja, a cruz.

[37] Ou o seu rei legítimo descendente em linha varonil de David, ao contrário de Herodes Antipas (4 a. C. – 39 d. C.) que depusera ilegitimamente Arquelau usurpando o trono com o apoio de Roma, pelo que o Jesus humano, senhor do Poder Temporal, era efectivamente o ascendente efectivo à Coroa de Israel. – Cf. Bruce M. Metzger & Michael D. Coogan, Dicionário da Bíblia – As pessoas e os lugares, vol. 1. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002.

[38] Andrew C. Itter, Esoteric Teaching in the Stromateis of Clemente of Alexandria (Supplements to Vigiliae Christianae). Brill, Leiden-Boston, 2009.

[39] Epítome Chronologico, Genealogico & Historico, dividido em quatro livros e composto pelo padre Antonio Maria Bonucci da Companhia de Jesu, missionário na Província do Brasil. Lisboa, 1706.

[40] Jean Huscenot, Os Doutores da Igreja. Editora Paulus, Lisboa, 1998.

[41] Santo Agostinho, Confissões; De Magistro. Nova Cultural, São Paulo, 1987.

[42] Historia de la vida de Sta. María Magdalena, dividida en quince capítulos. Compuesta en frances por un Religioso del Real Convento de S. Maximo del Orden de Predicadores, traducida ao castellano por el P. Fr. Isidoro de Galves, Capuchino de la Provincia de Andalucía, y ilustrada com varias notas del traductor. Madrid, en la Imprenta de Benito Cano, 1786.

[43] Vitor Manuel Adrião, A Ordem de Mariz – Portugal e o Futuro. Editorial Angelorum Novalis, Carcavelos, Maio de 2006.