Pinharanda Gomes, a universalidade de um Filósofo lourenho – Por Vitor Manuel Adrião Domingo, Fev 11 2018 

Santo António dos Cavaleiros, Loures, 1995

Falar de Pinharanda Gomes não me afigura tarefa fácil. Menos ainda falar do seu vastíssimo cardápio literário disperso em artigos de jornais, revistas, ensaios, monografias e livros, em número vultuoso de centenas, mais de trezentos, contando-se diversas traduções dos clássicos germânicos, nomeadamente Goethe.

“Monge” das Letras, Jesué Pinharanda Gomes é um notável talento polimorfo que respira num à-vontade surpreendente quer nas alturas da Filosofia ou da História, quer em simples trabalhos de etnografia e obras regionalistas, as quais são um arcadiano ramo de flores campestres que depõe no altar da sua terra em louvor às raízes de que se alimenta e vive.

Pinharanda Gomes (Jesué) nasceu em Quadrazais, freguesia do concelho do Sabugal, na vigília da festa de Nossa Senhora do Carmo (16 de Julho) em 1939, embora só fosse registado em 7 de Outubro do mesmo ano, pela festa da Senhora do Rosário. Costuma, por isso, dizer que nasceu natural e civilmente sob o signo de Maria. É, de resto, membro de uma confraria carmelita, que ajudou a fundar no dia 13 de Julho de 1984, na paróquia de Santo António dos Cavaleiros (fundada em 17 de Maio de 1983), no concelho de Loures, tendo também intervido directamente nesta freguesia na fundação da sua igreja paroquial, inaugurada e sagrada em 10 de Outubro de 1982.

Foi este notável pensador o primeiro a historiografar a freguesia de Santo António dos Cavaleiros, com um seu primeiro livro regionalista lourenho levando de título:

O Carmo em Loures (Camarate, Frielas, Stº António dos Cavaleiros). Loures, 1979.

Seguiram-se:

Povo e Religião no Termo de Loures. Paróquia de Stº António dos Cavaleiros, Loures, 1982.

Os Tojais e a Casa do Gaiato (Monografia Histórica). Patriarcado de Lisboa, 1990.

Santo António dos Cavaleiros (Monografia Histórica). Loures, 1992.

Além desses títulos o caríssimo Pinharanda Gomes, aliás, tendo a gentileza de ser meu amigo e a bondade de prefaciar dois livros meus de temática lourenha – Ode a Loures (Monografia História), Loures, 1993; Rotas de Loures, 1994 –, possui a versão integral, por si anotada e aumentada, da rara e notável obra de Mendes Leal: Admiravel Egreja Matriz de Loures, Lisboa, 1909. Faz-se votos que as autoridades responsáveis pela cultura no concelho de Loures tomem em mãos essa obra preciosa e a editem quanto antes.

Por seus préstimos morais e sociais à freguesia de Stº António dos Cavaleiros (fundada em 25 de Agosto de 1989), Pinharanda Gomes foi recentemente homenageado com a Medalha de Mérito pelo Presidente desta Junta, Sr. Dr. João Pedro de Campos Domingues, que também me fez a honra de homenagear com idêntica Medalha de Mérito.

Das conversas que temos mantido na sua residência em Stº António dos Cavaleiros, onde aliás vive há mais de uma vintena de anos, destaco o gosto e desvelo de Pinharanda Gomes pela aldeia de Frielas, inclusive tendo-me solicitado parceria para a feitura de um futuro livro exclusivamente dedicado á tradição histórica e etnográfica frieleira. Se Deus nos der sabedoria e saúde, haveremos de o escrever – e acabou sendo escrito por mim em 1996, editado pelo Rancho Folclórico e Etnográfico “Os Frieleiros” – Frielas (Memorial Histórico). Frielas merece.

Pinharanda Gomes é filho de lavradores de Riba-Côa e a sua ascendência é identificável até aos trisavós, que viveram nos meados do século XIX. Por parte do pai descende dos Gomes Freire e de um Peñaranda de Bracamonte que se exilou para cá da fronteira, durante os conflitos monárquicos em Espanha. Ainda por parte do seu pai e pela linha da avó paterna, radica no mais fundo do povo. O seu bisavô Manuel Torro era almocreve e fez grande casa agrícola vendendo azeite, que ia buscar em odres a Penamacor. A filha deste, Maria, casou com Alberto Pinharanda, uma plebeia com um aristocrata. Os seus avós maternos foram gente do povo, e a sua mãe também.

Filho único de um lavrador em crise endémica, queria-o o pai na terra, atrás das vacas. Mas, por volta de 1950, a sua tia Dª Isaura levou-o para a cidade da Guarda, onde trabalhou na farmácia da familiar, e depois como marçano. À noite frequentava a Escola dos Gaiatos, onde conheceu e aprendeu a rdtimar figuras da sua vida, destacando-se o Dr. Alberto Dinis da Fonseca, notário, homem de caridade pública e militante social-católico, o Professor Artur Martins Madaleno, pedagogo e didacta, e sobretudo Dª Maria das Dores Sampaio, mãe dos jovens pobres da cidade e seu “anjo da guarda”. Já não sorria quando o Dr. Alberto dizia que todos os anjos eram da guarda, porque intuía que o Dr. Alberto se referia ao carisma dos anjos e não à cidade.

Resolvidos certos problemas familiares, Pinharanda Gomes entrou no Colégio de São José da Guarda por intervenção do Cónego Álvaro Quintal da Cunha, pedagogo, director do mesmo. Introvertido e contemplativo, Pinharanda revelou-se um aluno medíocre, preferindo às aulas a solidão da leitura na biblioteca.

Sentiu-se escritor aos doze anos. Nunca mais desejou outra coisa a partir de então. Influenciado pelos românticos alemães, contraiu um autonomismo que teria de caldear-se na aventura.

O autor estreou-se no jornal Correio da Beira (Guarda), em 1956, dando colaboração à maior parte dos jornais de província entre 1958 e 1965, tendo depois colaborado na imprensa de Lisboa. Para aqui emigrou, sendo já órfão de pai e mãe, trazendo oitenta escudos no bolso, após interromper os estudos oficiais e algum descontentamento face ao conformismo eclesiástico.

O dinheiro durou três semanas. Depois veio a fome, e o resto. Dormiu em camaratas públicas e promíscuas, e durante um ano ou dois atravessou um deserto árido. Aos vinte e dois anos – tendo o seu estudo nas bibliotecas continuado, e na Biblioteca Nacional de Lisboa chegou a permanecer dias inteiros alimentando o espírito, já que não podia alimentar o estômago – iniciou contactos com os meios literários e jornalísticos da capital, a maioria deles de efeito frustrado. Não desanimou, insistiu. Guedes de Amorim, jornalista em O Século, aceitou-lhe os primeiros artigos, e logo a seguir Natércia Freire abriu-lhe as portas do Diário de Notícias. Gratuitamente, colaborou semanalmente em O Debate, o que lhe foi muito útil para se treinar na escrita, para largar a experiência e para conhecer pessoas.

Profissionalmente, preparou-se em línguas e obteve colocação numa grande empresa privada de máquinas agrícolas, onde se mantém há mais de trinta anos, na qual contraiu sucessivas e acrescidas responsabilidades.

Trabalhando de dia, frequentou cursos nocturnos de latim e de grego no Liceu Francês, em Lisboa. Por outro lado, nas férias, treinaria a língua inglesa em Inglaterra.

A decisão do seu perfil intelectual ocorreu, porém, a partir de 1962. Por ser então mais literato – esperava ser novelista – entrou no grupo dos discípulos de Leonardo Coimbra, onde foi recebido com muita abertura e acolhimento. Álvaro Ribeiro (+ 1981), o propositor da Filosofia Portuguesa, e José Marinho (+ 1975), o filósofo do Ser e da Verdade, investiram a sua dedicação em Pinharanda. Acreditaram nele e formaram-no. Por isso, ele considera-se discípulo de ambos, cujas obras tem procurado continuar.

Do ponto de vista estrutural, o seu pensamento obedece ao formalismo de Aristóteles (que herdou de Álvaro Ribeiro) e ao ideísmo de Platão (que herdou de José Marinho). É, portanto, numa tradição que vem de longe, um aristotélico platonizante que concilia razão e visão, acção e contemplação, ao modo de Leonardo, considerando-se antes do mais filósofo, termo a que dá acepção aristotélica-platónica: Filosofia é a ignorância com vontade de ciência.

Considera, no entanto, que é intrinsecamente um meditativo e um contemplativo, como que herança genética-espiritual do seu nascimento sob o fulgor da carmelitana Stella Maris.

Do ponto de vista relacional, entende o Homem como criatura evoluinte em trânsito de regeneração, donde o carácter messiânico e profético de muitos dos escritos de Pinharanda. Admite um Português próprio, o que lhe permite singularizar um corpo espiritual lusíada no contexto mais vasto do corpo da Humanidade. Propõe, como modelos de Filosofia, Sócrates e Cristo, e como modelo de Vida, Maria, sem cuja presença o perfil do Homem ficaria decapitado.

Essa sua versão mito-filosófica do Pensamento Português como semente mental da Diáspora Universal dos Lusos, que frutificou em todos os cantos do Mundo, atraiu os estudiosos e pensadores nacionais e estrangeiros inclinados ao tema da Parúsia e do V Império Lusitano, á convivência com a espiritualidade esclarecida de Pinharanda Gomes, o “Filho da Sabedoria”, ou seja, Philo-Sophos, em grego, donde Filósofo.

Pinharanda Gomes foi o único a ordenar e sistematizar, até ao momento, em vários volumes de grossura considerável, o Pensamento Português e a História da Filosofia Portuguesa. Do que publicou, destaca-se como coroa áurea do seu vastíssimo cardápio literário:

Pensamento Português I. Ed. Pax, Braga, 1969.

Pensamento Português II. Ed. Pax, Braga, 1972.

Pensamento Português III. Ed. Pax, Braga, 1975.

Pensamento Português IV. Ed. do Templo, Lxª, 1979.

História da Filosofia Portuguesa. 1. A Filosofia Hebraico-Portuguesa. Lello & Irmão, Porto, 1981.

História da Filosofia Portuguesa. 2. A Patrologia Lusitana. Lello & Irmão, Porto, 1983.

História da Filosofia Portuguesa. 3. A Filosofia Arábigo-Portuguesa. Guimarães Editores, Lxª, 1991.

Por tudo isso e muitíssimo mais aqui não vindo ao caso, incontestavelmente a universalidade mental de Pinharanda Gomes figura já no panteão de ilustres imortais da Cultura Portuguesa, mormente da Lourenha, neste particular abrilhantando a Freguesia que lhe é Arcádia querida, a ponto de pretender iniciar as já por si batizadas Tertúlias do Planalto: Stº António dos Cavaleiros.

Arte e Hermetismo Manuelino (St.ª Maria de Jerónimos e Canteiros) – Por Vitor Manuel Adrião Quarta-feira, Fev 7 2018 

O século XVI é coroado pela Epopeia das Descobertas Marítimas chancelada pelo português marinheiro cabeça de nova cavalaria de demanda dos oceanos levando diáspora às partes do Mundo, ideia pensada já em tempo de D. Dinis e iniciada com Gesta Henriquina no século XV. No centro da glória cumprindo-se, marcando para sempre os altos eventos da Raça Lusa pelo Mar Oceano, D. Manuel I mandou erigir em louvor de Nossa Senhora dos Reis Magos o Mosteiro que ficaria para sempre como o de Santa Maria de Belém, o qual recebeu a primeira pedra em 6.1.1501 ou 1502, dia dos Reis Magos, sendo destinado a companhia de cerca cem monges (exactamente setenta) da Ordem de São Jerónimo, ida para aí do Convento da Penha Longa de Sintra, mas ficando na tutoria a Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, da qual o monarca venturoso era o 11º Grão-Mestre.

Nossa Senhora dos Reis (Magos) da Dinastia de Avis é a primitiva Virgem da Ermida do Lugar da Estrela (que por corruptela deu nome ao sítio, Restelo, que antes era o moçárabe lugar de Alcolena, do árabe al-qunïna ou al-qullïna, “coelho”[1]) da primitiva invocação do Infante D. Henrique de Borgonha[2]. Estrela brilhante que é Vénus, a Ísis celeste estrela guia dos homens do mar, a Stella Maris, mas igualmente Maria Virgem Negra, padroeira dos alquimistas e mestres-construtores, a cuja devoção e tradição hermética se entregou o Infante Henrique de Sagres, dando-lhe continuidade e projecção (como se repara na Virgem Negra de Guadalupe ou a Senhora da Lua (Guapa Lupe), na Raposeira vizinha de Sagres, Algarve, a quem o Infante levantou altar). Para o culto divino da mesma Deusa Mãe, Estrela d´Alva, o rei venturoso, D. Manuel I, mandou fazer esta Casa devocional sob a primazia da Gesta Dei per Portucalensis, e assim se tem este monumental Mosteiro de Santa Maria de Belém.

Belém (do hebraico, Beith-Lehem, como a grafava o Infante D. Henrique) é a “Casa do Pão”, do Maná, da Mente (afim à oração mental jerónima) ou Manas afim ao Manu na função de Legislador Espiritual e Temporal; antes era Lusa (em celta, Luzi), a “Pedra Divina”. Caberia ao Cristo, segundo o relato evangélico, transformar a pedra em pão, o trigo em hóstia, a matéria bruta em espírito rarefeito, a treva em luz, a carência em abundância… Isso mesmo foi o que aconteceu aqui, no então subúrbio a ocidente de Lisboa, pela mão da Ordem de Cristo, supervisionadora dos monges jerónimos, na transferência dos valores espirituais da Ermida do Restelo, cúbica de traça românica (“Pedra Divina”), para o Mosteiro à beira-Tejo implantado (“Casa do Pão”).

Mas não se confunda a Ermida da Senhora do Restelo como a da Memória que se mantém. Esta trata-se da Ermida de S. Jerónimo, situada no alto da antiga cerca do Mosteiro de Santa Maria de Belém, numa posição hoje lindamente ajardinada de onde se desfruta um dos mais belos panoramas do rio e de parte da cidade.

É obra que se deve ao risco do mesmo arquitecto da primeira fase do Mosteiro dos Jerónimos, o francês Jacques Boytac ou Diogo Boitaca (possivelmente oriundo do Languedoc, nascido cerca de 1460 – falecido na Batalha, em 6.12.1527), pois já estava em construção no ano de 1514 e foi acabada na empreitada do português mestre Rodrigo Afonso, em 1517. O templo é de planta quadrada e tem cerca de 11 metros de comprimento. O seu corpo e a capela-mor contrafortam-se em quatro gigantes ou botaréus nos ângulos, e mais dois botaréus laterais muito bem marcados e rematados por seis pináculos ou coruchéus cónicos torcidos. Apresenta seis gárgulas de sabor renascentista nas paredes lisas, com uma pequena cruz encimando a fachada principal. A porta dianteira, pequenina, é decorada na zona superior com as armas manuelinas: escudo das quinas com coroa e esferas armilares. No interior, vê-se um arco triunfal polibobado com alcachofras nos pendentes e torcidos. Por cima do fecho do arco, está o emblema heráldico de S. Jerónimo. A abóbada da nave, de elegante traça e riqueza decorativa semelhante à cúpula estrelada, fornece um bom modelo de arquitectura. A mesma capela-mor já teve três altares, recobertos de azulejos sevilhanos quinhentistas, e o que hoje existe é do século XX mas mantendo-se os azulejos originais.

Esta ermida, onde esteve sepultado Pina Manique (1733 – 1805), fundador da Casa Pia de Lisboa, é uma das três que o rei D. Manuel I mandou construir em Belém em cada extremo da cerca (muro) do vasto terreno dos Jerónimos: a Ermida de N.ª Sr.ª de Belém (coeva do Infante D. Henrique já desaparecida mas que deu nome ao sítio, Belém, que era antes Restelo Velho e depois Restelo Novo, com as modernas urbanizações), a do Santo Cristo, perto do estádio de futebol “Os Belenenses”, e esta de S. Jerónimo. Decerto prefigurariam o sentido da Trindade Divina, ficando Cristo para o Pai, Maria para a Mãe e finalmente S. Jerónimo para o Filho, tipomorfizado como Espírito Santo na quadratura da Matéria, donde a planta quadrada desta ermida, plantada no alto no morro, vir a configurar o sentido arábico da Kaaba, a “Casa do Homem Primordial” Adam, a qual se alinha em linha recta com a Torre de Belém deixando subentendida a pressuposta intenção prática de gizar uma geografia sagrada, em modo de presentificar o Espiritual e o Temporal, este presente na Ordem Militar de Cristo e aquele na Oratória de S. Jerónimo.

Para que esse programa geosófico acontecesse, D. Manuel I recorreu à mão d’obra francesa, depois luso-francesa, da Guilda dos Mestres-Canteiros, herdeiros tradicionais da operática medieval dos Monges Construtores, a qual inventou, conformada às especificidades desse ciclo régio, um estilo arquitectónico novo puramente português, voltado para o exterior (portas, janelas e fachadas), portanto, centrífugo ou expansivo de acordo com a natureza eclética da própria diáspora dos portugueses, para sempre ficando conhecido como Arte Manuelina ou o Manuelino.

A Arte Manuelina, por vezes também chamada de Gótico Português Tardio ou Flamejante, é um estilo arquitectónico, escultórico e de arte móvel que se desenvolveu no século XVI durante o reinado de D. Manuel I. É uma variação portuguesa do gótico final, bem como da arte lusomourisca ou arte mudéjar, marcada por uma sistematização de motivos iconográficos próprios, de grande porte, simbolizando o poder régio[3]. O termo manuelino foi criado por Francisco Adolfo Varnhagen na sua Notícia Histórica e Descritiva do Mosteiro de Belém, de 1842. Esta tendência artística do Manuelino era conhecida, na época, como a variante portuguesa da arquitectura ad modum hispaniae (ao modo hispânico), que por sua vez estava incluída na corrente arquitectónica ao modo moderno, expressão utilizada para o gótico tardio. Esta corrente opunha-se à arquitectura ao modo antigo ou ao romano.

Foi o francês Jacques Boytac, liderando os contratados mestres canteiros, quem inaugurou oficialmente em Portugal o estilo Manuelino, tendo feito os primeiros ensaios no Palácio Real da Vila de Sintra mas cuja obra-prima deixaria lavrada neste monumental Mosteiro dos Jerónimos, em Belém. O Manuelino é sobretudo um estilo de passagem, de transição das trevas à luz, por isso está mais que tudo presente na decoração das portas e janelas. Também não mascara a estrutura dos edifícios ao mantê-los livres de ornamentação desnecessária: geralmente as paredes exteriores ou interiores são nuas, concentrando-se a decoração em elementos estruturais de passagem, como igualmente em colunas, pilares, arcos, frisos, óculos e contrafortes, além de túmulos, fontes, cruzeiros, etc.

Estilo essencialmente ornamental, o Manuelino caracteriza-se também pela aplicação de determinadas fórmulas técnicas de altura, como as colunas e as abóbadas com nervuras polinervadas a partir de mísulas. É precisamente na escultura que esta arte revela o seu maior amadurecimento e hegemonia, sendo que é através da simbologia decorativa que é reconhecida como estilo próprio nacional e não uma aliteração de outros estilos europeus. Os escultores e arquitectos de Portugal definiram, neste contexto, um estilo de originalidade vigorosa que ainda hoje causa espanto dentre todo o património artístico português[4].

O “discurso” artístico presente no estilo manuelino teve considerável influência da personalidade de D. Manuel I (1469-1521), sobretudo das suas aspirações ao projecto de uma Cruzada que unificaria o mundo cristão do Ocidente, com Emmanuel Rex à cabeça, com o mítico reino cristão do Oriente governado pelo Preste João, dessa maneira tornando-o o “rei dos mares” (e assim foi, de facto, designado por diversos autores estrangeiros) na empresa da Gesta Dei per Portucalensis (“Gesta Divina pelos Portugueses”), motivo maior do ciclo marítimo das Descobertas Quinhentistas.

O estilo manuelino transmite em grande parte essas aspirações messiânicas de um rei cuja ascensão ao poder foi, no mínimo, insólita, depois das mortes consecutivas de outros herdeiros directos do trono (como o príncipe D. Afonso e o seu irmão D. Diogo, assassinado). Desde a transposição da Spera Mundi, a Esfera Armilar que lhe foi concedida como divisa (inspirada no cabalístico Selo de Toth-Hermes, talvez por influência do astrónomo e astrólogo sefardita Abraão Ben Samuel Zacuto (Salamanca, c. 1450 – Damasco, c. 1522), consultor de D. João II e de D. Manuel I), até à interpretação do seu próprio nome, Emmanuel (“Deus connosco”, em hebraico), foram vários os “sinais” indicadores de que este rei fora o “escolhido” por Deus para grandes feitos. A sua própria concepção política, influenciada pelo seu preceptor Diogo Rebelo e pelo Joaquimismo (de Joaquim de Flora), crente na vinda próxima do Messias, fá-lo-ia acreditar que estava destinado a fundar um Novo Reino no Mundo, tema que mais tarde o padre António Vieira retomaria chamando-o de Quinto Império.

Sem dúvida a incomparável Epopeia do Mar, em Quinhentos, propiciou um ambiente ecuménico tanto no cultural humano quanto na afirmação da raça, princípios dominantes na Arte Manuelina, que como “arquitectura de passagem” conforma-se à definição bíblica do Espírito Santo (ר֣וּחַ אֱלֹהִ֔ים, Ruach Elohim) vogando sobre as águas da vida (Gén. 1:2), assim mesmo à natureza nómada afim ao carácter viandante, aventureiro, do Luso. Esse período de exaltação nacional nascido de empresas por mares ignotos, tomou grandeza, e ao deparar com o que a arquitectura gótica fizera eclodir num hausto de beleza, pôde realizar com harmonia a aliança de certos motivos já existentes com o que o simbolismo nacional sugeria, prodigiosamente, na invocação das rotas dos mares[5]. É todo um mundo de apetrechamento náutico, desse emblematismo profuso que constitui o motivo onde foram fixar-se estilizações magníficas e pormenores de esplendoroso significado mítico ou iniciático.

Essa floração e efabulamento manuelinos são da lavra primeira de Mestre Boytac, espécie de ressurgido arquitecto Hiram Abiff ao qual D. Manuel I, também espécie de rei Salomão venturoso, recorreu para que o mosteiro nascesse. Boytac encabeçou vasta lista de mestres-canteiros, franceses e portugueses, onde se contam os nomes, dentre outros, de Nicolau de Chanterene, Mateus Fernandes, João Rodrigues, João de Castilho, etc. Foi ele quem fundou e inaugurou a grandeza da arquitectura manuelina, e dele disse Sampaio Ribeiro[6]: “Foi, talvez, o último iniciado das confrarias de pedreiros livres que viveu entre nós”.

Jacques Boytac (este último nome oriundo da raiz hebraica beth, “boca”, o órgão da fala que o poderá indiciar, por todos os seus dotes, “detentor do Verbo Criador”, o que simbolicamente é assinalado pelo boi, em sânscrito vach, que significa o mesmo “verbo”) por certo foi um J. B. ou B∴ J∴ como Bhante-Jaul, um “Irmão de Pureza” equivalente ao Adepto Real, para o qual os grandes e poderosos deste mundo eram menos que grãos de areia do deserto. Boytac gozava da elevada consideração de D. Manuel I, que lhe conferiu o prestigioso e merecido título de “Mestre das Obras do Reino”, talvez ainda em 1492 quando iniciou a sua actividade no país, e em 1510, por sua participação no segundo cerco de Arzila em 1509, D. Vasco Coutinho, 1.º conde de Borba e 1.º conde de Redondo, capitão de Arzila (hoje Asilah, em Marrocos), armou-o cavaleiro da Ordem de Cristo, mercê justificativa tanto do seu mérito de artista como do seu carácter nobre e indómito, que o caso seguinte define[7]:

D. Manuel, em certa cerimónia da corte, notara a Boitaca que não se curvara perante uma alta personalidade palaciana, conforme a pragmática o exigia, ao que o Mestre-Arquitecto não se demorou a objectar: – “Senhor, Vossa Alteza em seus reinos pode fazer quantos grandes quiser, mas não a um Mestre Boytac, porque esse só Deus o faz”.

Mas não ficam por aí as referências insólitas à heterodoxia espiritual e simultânea independência da Coroa e da Igreja dos mestres-canteiros, como se observa neste outro caso[8]:

João Rombo, aprendiz de cantaria ao serviço do seu mestre Nicolau de Chanterene, criador do retábulo do altar-mor do Mosteiro de Nossa Senhora da Pena de Sintra, acusou-o de feitiçaria, em 1538, ao tribunal do Santo Ofício, por posse de uma mandrágora e de uma bíblia herética. O caso não teve consequências para o mestre e o ingrato aprendiz viu a sua denúncia ser arquivada pelo tenebroso tribunal.

É, pois, o sítio de Belém o berço de eleição da Arte Manuelina sob o orago venusto de Nossa Senhora dos Reis Magos. Arte conjuntiva do Românico de horizontalidade com o Gótico de verticalidade, logo das duas a fixadora, onde a austeridade e a beleza são envoltas na traça parcial dos exteriores ou expansivos do Manuelino.

“Esse esforço de inspiração portuguesa – escreveu Ramalho Ortigão[9] – reagindo simultaneamente sobre a tradição gótica e sobre a regressiva invocação greco-latina, cria pela conjunção desses dois estilos de importação na Península (…) um novo estilo compósito, ao qual, pela primeira vez em toda a evolução da arquitectura portuguesa, o espírito nacional, de legítimo e glorioso orgulho, consegue imprimir uma acentuada, ainda que fugidia, feição própria, um inconfundível cunho de raça.

“(…) Ele é a mais sincera revelação do nosso temperamento, a mais triunfal afirmação do nosso génio artístico.”

Quanto ao confio do mosteiro aos frades jerónimos, poderá dever-se ao facto do rei encontrar neles as condições propícias para assegurar a conservação sem corrupção nem ingerência alheia dos saberes cristológicos centralizados na oração mental animadora da ideia peculiar da translatio imperii. Em resultado dos estudos de Américo Castro[10] e José Adriano de Freitas Carvalho[11], concluiu-se que os jerónimos seriam igualmente joaquimitas, tendo recebido dos fraticelli franciscanos as ideias parúsicas de Gioacchino da Fiore acerca das Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo, heterodoxismo doutrinal de um nuevo evangelio joaquimita patente nos símbolos desta Casa religiosa e particularmente nos figurinos das portadas das celas dos frades jerónimos.

Essas celas do Mosteiro de Santa Maria de Belém comunicam com o claustro e o interior da igreja. É nesta que se apresentam, sobre as portadas dos seus exíguos compartimentos, figurações de carácter claramente hermético, geralmente passando despercebidas ou não se dando a atenção devida.

A entrada de cada cela pela igreja tem sobre ela uma alegoria hermética, e tal flagrante associa imediatamente essa Ordem religiosa, nascida em Itália em 1377 na sequência do movimento piedoso animado por Tommasuccio da Foligno, originariamente regrante da Ordem Terceira de S. Francisco, à espiritualidade iluminada dos Padres do Deserto dos quais S. Jerónimo foi um deles, consequentemente, aos possuidores dos segredos da Arte Sacerdotal, enquanto os mestres canteiros detinham os mistérios da Arte Real.

A espiritualidade claustral jerónima centralizava-se na oração mental, reflectindo sobre a Sabedoria de Cristo como fizera o Santo Padre Jerónimo ou Hierónimo, isto é, Hiero-Manas, “Mente Iluminada” (igual ao termo sânscrito altamente místico, Manas Taijasi) ou “Sabedoria Universal”, esta a Gnose que os monges claustrais deste lugar vivenciavam, adaptando o messianismo milenarista de Joaquim de Flora à ideia ecuménica das Descobertas Marítimas portuguesas (a “Conquista Espiritual do Mundo”), então em plena expansão. Flora, cujas ideias já tinham influenciado os fraticelli franciscanos, autor gnosesófico das “Três Idades do Mundo”, destas a última do Espírito Santo incarnado por Emmanuel que era, afinal, o nome de D. Manuel I, o que em parte justifica a doação deste mosteiro aos hieronimitas vindos da Penha Longa de Sintra para aqui.

Sobre uma cela, vê-se esculpido o Janus ou Cristo Tricéfalo, indicador dos 3 Tempos ou Idades do Mundo: o Passado para o Pai e Adão – Jerusalém; o Presente para o Filho e Cristo – Roma; o Futuro para o Espírito Santo e S. Bento (Flora era cisterciense, logo, saído da regra beneditina cujo conceito trinitário influenciou todas as profissões cristãs, mormente a jerónima) – Lisboa. Esta ideia repete-se noutra composição de 3 cães juntos, figurativos dos guardiões da Igreja Universal (domini-canes, “cães do Senhor”, não como dominicanos mas como guardas da Sabedoria Tradicional) e dos Tempos do Mundo, por igual sendo os 3 “Ares da Alquimia”: o Enxofre (aqui a águia sobre uma cabeça de mouro) para o Espírito e o Pai; o Mercúrio (aqui a cabeça laureada por dois anjos, simbólicos do andrógino alado) para a Alma e o Filho; e o Sal (aqui um dragão alado que é uma cabeça bafomética tricórnia) para o Corpo e o Espírito Santo. A Prata está representada numa rainha coroada, e o Ouro no mesmo Mercúrio laureado, sendo a jubilosa Maris Nostrum da invocação jerónima.

A introdução dos mestres-canteiros em Portugal poderá mesmo dever-se aos jerónimos que nesse sentido terão intercedido junto da Coroa, pois mesmo antes da sua vinda para Lisboa já em Sintra andavam de proximidades, vila que foi a primeira a receber as primeiras influências da arquitectura manuelina (o Paço Real da Vila, o Mosteiro Jerónimo da Senhora da Pena e a igreja de Santa Maria, são exemplos notáveis) por nela se terem realizado os primeiros ensaios desse estilo.

Acerca da origem dos jerónimos em Portugal. No tempo de D. João I (11.4.1357 – 14.8.1433) propagou-se em Itália o culto a São Jerónimo, devido à publicação da obra Hieronymianus escrita em 1346 por um jurista de Bolonha, Giovanni dell’Andrea, ao mesmo tempo tendo se desenvolvido pelas leituras hieronimitas feitas pelos humanistas italianos que se iam formando. Da Itália o culto passou a Espanha e a Portugal. Em Espanha, converteu-se na “grande Ordem de São Jerónimo sob a Regra de Santo Agostinho”[12].

Entre os seguidores de Tommasuccio da Foligno (1319-1377), principal animador do movimento eremítico hieronimita italiano que saíra da Ordem Franciscana, contava-se o terço franciscano frei Vasco Martins, português natural de Leiria, donde também ser conhecido por frei Vasco de Portugal[13]. Adoptou a Regra Jerónima e instalou-se na sua Província de Toledo, tendo em 1373 vindo fundar a Ordem em Portugal, cuja Província acabaria por separar-se da espanhola em 1389. A convite de D. João I com a garantia de protecção pela Coroa, ele veio para Sintra acompanhado de alguns religiosos eremitas, instalando-se no lugar da “Pera Longa” (Penha Longa), comprado para eles pelo próprio rei, onde fundaram um eremitério, que depois seria transformado em mosteiro de noviciado cabeça da Ordem no país. Tempo depois, frei Vasco Martins deixaria Sintra e seguiria para São Jerónimo de Córdova, Lupiana, onde viria a falecer. Apesar de um seu condiscípulo, frei Fernando João de São Jerónimo, ter conseguido do Papa Bonifácio IX a bula Piis votis fidelim para fundar, em 1 de Abril de 1400, canónica e juridicamente o Mosteiro de Nossa Senhora da Saúde da Penha Longa, tornando-se seu prior, “o certo é que fr. Vasco Martins é tradicionalmente o fundador dos jerónimos portugueses”[14].

Desde o seu início em Portugal que os jerónimos usufruíam da protecção directa da Ordem de Cristo, de quem seria seu Grão-Mestre, no século XVI, o futuro rei D. Manuel I, admirador declarado do culto hieronimita, tal como sua primeira esposa, D. Isabel de Aragão e Castela, tendo inclusive, ainda como duque de Beja, recebido a oferta da chamada Bíblia dos Jerónimos, iluminada pela oficina dos Atavanti de Florença[15]. Por sua vez, o reformismo jerónimo levaria ao apadrinhamento da introdução em Portugal dos mestres-canteiros franceses, com Jacques Boytac à dianteira, como disse.

Estando este mosteiro integrado no circuito hipertúlico da devoção mariana, o programa simbólico do mesmo conforma-se à Promessa de Advento prenunciado por Santa Maria da Estrela e assegurado por São Miguel, “nosso Anjo guardador”, sobre o portal que lhe leva o nome. Esse Advento, na época, ficaria marcado pela Gesta Dei per Portucalensis que assinalou um novo ciclo de Renascença começada efectivamente desde que se pôs a primeira pedra nesta Casa de oração mental por aqueles que fundiriam a sua mente humana em Gerom, Jerom, Hierom, Hierónimo ou Jerónimo, como seja a Mente Universal alumiada por Hiero, a Luz, a Nova Luz que desde aqui, deste lugar de nascimento ou começo (Belém), transformaria decisivamente os destinos do Mundo.

Este Mosteiro de Santa Maria dos Reis Magos (no qual perdia horas perdido nas horas da minha infância, aquando vivi com os meus pais no Restelo – Caramão da Ajuda, e em cuja pia batismal o meu irmão consanguíneo recebeu o sacramento), possui leitura mitosófica de cristocêntrico, realizável num roteiro interior exterior do edifício, vindo a revelar às mentes e olhares mais sagazes a Missão do Português e da Portugalidade no Mundo. Isso se retém no programa simbológico composto pelos três grupos escultóricos da Anunciação, da Natividade e da Adoração dos Reis Magos (Epifânia), na entrada principal oeste, na decoração do pórtico sul de S. Miguel e St.ª Maria, lateral, e no conjunto de medalhões decorando as colunas dos “passos perdidos” do claustro.

O portal ocidental, obra de Nicolau de Chanterene (2.1.1517), não deixa de possuir leitura hermética relacionada com a origem do sítio. Em graciosas esculturas, vê-se aí D. Manuel I com S. Jerónimo, e D. Maria de Aragão e Castela, segunda esposa do rei português, com S. João Batista, nos lados adorando o Nascimento do Menino Jesus, tendo ao centro logo abaixo as armas reais suportadas por dois Anjos. Aqui, os monarcas assumem o papel epifânico de Reis Magos ante o Salvador recém-nascido, e Belém remete para Nossa Senhora da Estrela que veio a ser o sítio do Restelo. Trata-se de cena de inspiração no Evangelho de Lucas adaptada ao episódio primordial do nascimento desta “Casa do Pão” (Espiritual).

O monumental portal sul, obra de João de Castilho (1517), revela-se ainda mais misterioso. No topo tem-se o Arcanjo Custódio de Portugal, S. Miguel, no meio Nossa Senhora dos Reis Magos tendo no regaço o Menino com um pão (remetendo para o sentido de Belém ou Beith-Lehem, “Casa do Pão”), enquanto Ela empunha a Taça da Oferenda, sinalética da Eucaristia (trigo e vide, pão e vinho), e em baixo o Infante Henrique de Sagres com a espada embainhada e os leões, iconográficos de S. Jerónimo, no sopé. Ladeiam-nos os 4 Profetas maiores, os 4 Doutores da Igreja, as 4 Virgens mártires, os 12 Apóstolos e os Anjos da Música como uma referência à Kaballah Fonética. No todo, o conjunto prefigura a própria Árvore das Sephirots ou dos “Atributos” de Deus, estando o Arcanjo para Kether ou a “Coroa”, representando a Potência Divina como Metraton (Espírito), a Virgem para Tiphereth, a “Beleza”, como a Iluminação da Shekinah ou “Presença Real de Deus” (Alma), e finalmente o Infante para Malkuth, o “Reino” (Corpo), como pólo terreal do celestial, ficando assim como áxis-mundi a Virgem intercessora.

Kaballah é, literalmente, a Tradição Esotérica judaico-cristã, a via entendimento e realização espiritual do Homem em Deus, caminho percorrido paulatinamente através da Árvore da Vida dotada de 10 Atributos Divinos, chamados “Mundos”, “Esferas” ou Sephirots. Isto mesmo está retratado de maneira singular no pórtico sul do mosteiro, evocando a presença do Poder Divino no Mundo Terreno[16].

Sendo tal Árvore a representação da via de comunicação de Deus com a comunidade dos homens, a Igreja, e vice-versa, ela patenteia-se no pórtico sul ao centro, numa linha vertical, corroborada pela presença no pólo inferior do Infante Henrique de Sagres, o Iluminado representativo da própria comunidade, e no pólo superior pelo Arcanjo Mikael, o Emissário de Deus. A Virgem com o Menino assegura a mediação entre o Homem e Deus, encontrando em São Miguel o veículo do Verbo. Por isto, a coluna central é a expressão, por via icónica, da corporificação do Verbo, a designada Shekinah ou “Presença Real de Deus”, como Arquétipo Divino, cuja presença emanente na Terra representa-se no Infante, instaurador do Templo Terrestre, e a presença transcendente no Céu aponta-se no Arcanjo, sacerdote do Templo Celeste. A aparição de Mikael equivale sempre à revelação da Shekinah, como diz a tradução latina do Sepher-Ha-Zohar, do rabino Moisés de Leon, obra do século XII escrita em Leão mas, pressupostamente, começada em Alfama de Lisboa: Ubicumque inveneris Michaelem qui est primus illorum (angelorum), ibi subintellige Schechinam (“Sempre que encontrares mencionado Mikael, que é o primeiro dos Anjos, subentende a Shekinah”). “Enfim, uma aparição de Miguel equivale a uma aparição da Shekinah”, remata Henri Corbin[17].

Portal Sul do Mosteiro dos Jerónimos e o seu esquema sephirótico composto por Manuel Joaquim Gandra[18]

Essa coluna central de comunicação Criador-Criação é, pois, o canal central da Árvore das Sephirots da concepção kabalística. A organização global da imaginária “porta travessa” visa concordar com a representação da mesma Árvore. Esta constela os Poderes emanentes (criadores, intervenientes na Terra) de Deus, ao mesmo tempo abscôndito (Ain-Soph), consubstanciado em 10 Sephirots, que no pórtico (sobrepondo-lhe o esquema sephirótico) correspondem aos grupos de imaginário ali figurados e a sua ética peculiar:

(1) KETHER ELION (“Coroa de Deus”)

No topo, onde está São Miguel Arcanjo, correspondendo ao Metraton ou “Intermediário” entre o Céu e a Terra.

(2) CHOKMAH (“Sabedoria”)

(3) BINAH (“Inteligência”)

Correspondem aos Padres e Doutores da Igreja.

(4) CHESED (“Misericórdia”)

(5) GEBURAH (“Temor”)

Correspondem aos Profetas e Sibilas, ou seja, aos tempos messiânicos anteriores à vinda do Cristo, tempos da religião de Deus Pai, a dos Patriarcas.

(6) TIPHERETH (“Beleza”)

Ao centro do esquema iconográfico, cabe a Virgem Nossa Senhora dos Reis Magos.

(7) NETZACH (“Vitória”, “Resistência Passiva de Deus”)

(8) HOD (“Honra”, “Força Activa de Deus”)

Cabe inteiramente à ética martirial e evangelizadora dos Apóstolos de Cristo.

(9) YESOD (“Fundamento”)

Sobrepujada pelo pequeno S. Sebastião, iconográfico da Alma encoberta pelo Corpo descoberto.

(10) MALKUTH (“Reino”)

Esta sephiroth, a “Glória” ou o “Reino de Deus na Terra”, está representada no Infante D. Henrique, com o seu estatuto privilegiado de representante da comunidade dos homens perante o Eterno, incarnando a natureza feminina da Shekinah ou o Espírito Santo de quem foi Avatara Momentâneo, iniciador do período em que começa-ram as Descobertas Marítimas, inicialmente lideradas por ele, donde ser conhecido como o da Gesta Henriquina.

As duas colunas laterais (equivalentes a Jakim e Bohaz, respectivamente, “Sabedoria e “Rigor”, no Oriente conhecidas como Jnana e Bhakti, ou sejam, “Conhecimento” e “Devoção”) da Árvore da Vida (Otz Chaim) e respectivas Sephirots sobrepõem-se aos restantes grupos de imagens, adequando-se esses atributos à ética dos santos, profetas e sibilas ali representados.

Perde-se na noite dos tempos a origem da Kaballah, termo hebraico que, como disse, literalmente significa Tradição. Mas Tradição Primordial, esotérica ou velada como “espírito” subjacente à “letra” das escrituras sagradas. Este conhecimento herdou-o a raça hebraica dos sábios egípcios adaptando-o ao seu monoteísmo, logo após o Êxodo do Egipto dirigido pelo Patriarca Moisés.

Mais tarde, de entre os fariseus e saduceus já afastados da Tradição Primordial e logo do entendimento correcto do Pentateuco reunido no Talmude, surgiu uma terceira corrente: a dos “puros” ou essénios. Foram estes os garantes fiéis da sabedoria da Kaballah até à época de Jesus Cristo, que imediatamente a acoplou ao seu pensamento. Depois de Cristo, a Kaballah judaica foi assimilada pela corrente dos gnósticos cristãos de Alexandria e adaptada ao seu conceito particular do Universo e do Homem. Assim nasceu a Kaballah judaico-cristã.

No século XII, a ideia da Kaballah foi reunida na extensa obra do rabino Moisés de Leon, chamada Sepher-Ha-Zohar, o “Livro do Esplendor”, escrito em Leão mas pensado talvez em Lisboa. Por esse livro, juntamente com um outro anterior (século III d. C.) chamado Sepher-Ha-Yetzirah, “Livro da Criação”, considera-se o sistema kabalístico com origem na Maasseh Merkavah, o primeiro compósito místico judaico, que no século I d. C. escolarizou-se por via da sua “História do Carro” ou da Tradição volante, móvel, interpretando os textos sagrados da Torah e criando nova doutrina, ao início só comunicada por via oral (shebeal pe) aos seus cultores chamados iordei merkavah.

Pelo Sepher-Ha-Yetzirah, tratando do Universo e das leis que o regem, num monólogo do patriarca Abraão, revela-se a compreensão da Natureza e das suas manifestações como Emanações de Deus. Os vários Planos da Criação formam dez Esferas (Sephirots) interligadas por tramos que são vias de realização espiritual do kabalista e vêm a configurar uma Árvore da Vida (Otz Chaim). O Espírito feito Palavra ou Verbo é a primeira Esfera, e por meio do Sopro a segunda Esfera, que dele emana, cria as demais através de combinações de letras. A terceira Esfera é a da Água que produz a Terra, a Matéria, o barro, os elementos subtis tornados rudes. A quarta Esfera é a do Fogo que alimenta a Vida. As últimas seis Esferas são os quatro pontos cardeais e os dois pólos. Em suma, a Árvore da Vida é a representação gráfica do Universo Humano e Cósmico com as suas mutações e evoluções.

Ao contrário da Kaballah Rabínica atribuída a Isaac Luria e que era a de Jerusalém ortodoxa, a dos asquenazes restritos à letra da Escritura, a praticada pelos sefarditas ibéricos era a Kaballah Profética, atribuído a Abraão Abulafia (1200 d. C.), heterodoxa, intérprete do espírito sob a letra da Escritura, e que foi a principal fonte do milenarismo hispânico (doutrina apocalíptica sobre o Final dos Tempos e a vinda do Messias universal), do sebastianismo português (doutrina apocalíptica sobre o advento do Messias como Rei nacional) e demais correntes gnósticas luso-europeias nos seus primórdios, inclusive a dos mestres canteiros no século XVI e da Maçonaria Portuguesa no século XVIII.

A doutrina de Abulafia procurava “desvelar a alma, desatar os nós que a emperram”, isto é, o retorno da multiplicidade universal à Unidade Primordial, usando da figuração simbólica e da visão profética, no particular nacional, do Homem ante o País e o Mundo.

Como disse, a oração mental possuía especial destaque entre os monges jerónimos, por sua natureza pessoal impelindo à meditação e contemplação, estados místicos direccionados ao sentido de conquista espiritual do Mundo que deixaram testemunhado simbolicamente intra-mosteiro, precisamente no claustro monumental, em 20 medalhões junto às arcadas geminadas e mais 8 insculturas emblemáticas, decorando com mensagem simbólica este espaço que já foi ajardinado, dividido em quatro partes ou canteiros, e teve uma fonte no centro, como descreve o erudito abade de Rio de Moinhos, Arcos de Valdevez, António Dâmaso de Castro e Sousa[19]:

“… dando lugar no meio deste claustro a um tanque que, em forma engenhosa e figura circular, sustenta um repuxo, como chapéu de pedra um pilar, e em roda dele o circundam quatro passagens, também de pedra, e quatro canteiros, que costumam ter flores.”

Estando o claustro posicionado em conformidade ao significado hermético das posições cardeais, disponho-o conforme abaixo com a fonte ao centro, em guisa de síntese daquelas como Fons Vitae.

Representando a quadratura da Matéria concorrendo para o Centro Primordial, Espiritual, o 1.º grupo de medalhões está a Ocidente, representando a Terra, o Initio da transformação do Império do Mundo em Império do Cristo, na peanha da Lusitânia:

1.º grupo (lado Ocidental) – Terra – Initio

1Letra X
2. Lança+ vara
3. Cinco chagas
4. Coroa de espinhos
5. Mundo

O 2.º grupo está a Norte expressando o Ar, o Meditare subtil na unidade do Portugal de Cristo e Maria com o Jerónimo missionário no Mundo:

2.º grupo (lado Norte) – Ar – Meditare

6Cinco chagas
7. Ramo de açucenas
8. Letra M coroada
9. Esfera armilar
10. IHS

O 3.º grupo, a Oriente, indica a Água, o Contemplare das águas lacrimejantes e dores lancinantes da Paixão desfechada na Cruz da Morte mas com esperança elevada ao Monte da Ressurreição:

3.º grupo (lado Oriental) – Água – Contemplare

11. Coluna+corda
12. Cruz laureada sobre monte
13. Martelo, turquês, escada
14. Cravos+látego
15. Galo sobre coluna

O 4.º grupo, a Sul, expressa o Fogo, o Consummatum universal do Império Lusitano fundado pelos grandes navegadores sob o pendão luminoso do Sol Invicto de Cristo:

4.º grupo (lado Sul) – Fogo – Consummatum

16. Pedro Álvares Cabral
17. Nicolau Coelho
18. Paulo da Gama
19. Vasco da Gama
20. Sol

Reservo-me, apesar de já o ter feito[20], de interpretar aqui um a um o significado dos medalhões e das insculturas, isto por homenagem póstuma ao primeiro que o fez e foi quem teve a primazia de abordar e publicar o esoterismo deste Mosteiro de Santa Maria dos Jerónimos, ou seja o professor António Telmo[21].

Quanto às insculturas, tem-se:

Lado Ocidental

1. Brasão de Portugal
2. Mortificação

Lado Norte

3. Anunciação
4. Pietá

Lado Oriental

5. S. Jerónimo
6. Brasão de D. Maria

Lado Sul

7. Brasão de Avis
8. Brasão de Glória

Diogo Boitaca é o autor da ornamentação deste claustro, palavra que significa “o oculto”, “o fechado”. Todos esses símbolos associam a imitação jubilosa da vida de Cristo pelos jerónimos à glorificação apoteótica da gesta Pátria tendo o seu auge com D. Manuel I, portanto, dando prerrogativa à ideia de Portugal Sagrado, cujo brasão aqui se apresenta inclinado 17º com o dragão verde dos Lusos em cima, e nos lados a Esfera Armilar e a Cruz de Cristo plantadas no Santo Vaso, prerrogativa de Porto-Graal, ideia ecuménica reunida neste claustro de contemplação pátria e oração divina, enfim, um livro mudo de Alquimia Nacional para decifrar.

Poucos monumentos como o dos Jerónimos consubstanciam tão exuberantemente o valor da nossa Raça na rememoração do tempo e feitos que nobilitam a História Pátria. Há um sortilégio invocador no primor com que as pedras foram trabalhadas pela magia admirável do cinzel dos seus mestres-canteiros; esse poder raro de “abrandar a pedra”, no dizer eloquente dum grande orador sagrado, de “a afeiçoar aos seus dedos hábeis”, teve a sua acção magnífica nos Jerónimos. É necessário sentir o influxo dos grandes feitos e, mais do que isso, vivê-lo ardentemente, para conseguir esses prodígios que levam a uma verdadeira espiritualização que o lavrante soube imprimir numa hora de tão sublime inspiração, de conceição feliz e impulsionadora de grande significado artístico-simbólico. Vibração, sonoridade de linhas, palpitação de lavores, imaginário rico de motivos, tudo o que na Arte é alma, sentimento, beleza, se expande numa orquestração de decorativo excepcionalmente grandioso. Há que admirar, simultaneamente, o sentido rítmico da construção e a finalidade lusitana que ela fulgurante- mente sintetiza. No conjunto e no pormenor, é obra atingindo proporções inigualáveis no domínio da estética, e na plastificação das ideias e dos factos reside, compendia-se, incarna-se um mundo de rutilas criações do Belo levando à mais alta das expressões artísticas casada com o sentido espiritual, da mítica com o senso da História.

Monumento glorioso de Lisboa, glória monumental de Portugal, ele serve de afirmação ao voo prodigioso da Arte Iluminada, quando posta a representar e, mais que isso, a expressar o augusto tempo berço da Portugalidade, do ser Português, aqui e no Mundo, e se “mais houvesse lá chegaríamos”.

É como diz, em remate final, a inscrição no cruzeiro deste templo:

… o sinal santo que as remata e une
e que por toda a parte está marcando
as vitórias do Lenho triunfante,
o vexilo da Glória portuguesa.

 

NOTAS

 

[1] José Pedro Machado, Arabismos na toponímia lisboeta. Sociedade de Língua Portuguesa, Lisboa, 1992.

[2] Fr. Agostinho de Santa Maria, Santuário Mariano, tomo I, pp. 112-116. Lisboa, 1707.

[3] José Custódio Vieira da Silva, O Tardo-Gótico em Portugal (A Arquitectura no Alentejo). Livros Horizonte, Lisboa, Abril de 1989.

[4] M. C. Mendes Atanázio, A Arte do Manuelino. Lisboa, 1984.

[5] M. Costa Ramalho e Nogueira de Brito, Mosteiro dos Jerónimos. In Guia de Portugal Artístico, volume III, Lisboa, Junho de 1940.

[6] Mário de Sampaio Ribeiro, Do Sítio do Restelo e de suas Igrejas de Santa Maria de Belém, p. 345. Lisboa, 1949.

[7] Frei Jacinto de São Miguel, Mosteiro de Belém, p. 57. Lisboa, 1901.

[8] Descrito por Vitor Serrão, O Baixo-Relevo Tardo-Renascentista da Igreja-Matriz de Rio de Mouro. In Sintria, I-II, Câmara Municipal de Sintra, 1982-83.

[9] Ramalho Ortigão, O Culto da Arte em Portugal. Lisboa, 1896.

[10] Américo Castro, Aspectos del vivir hispânico. Espiritualismo, messianismo, actitud personal en los siglos XIV al XVI. Cruz del Sur, Santiago do Chile, 1949.

[11] José Adriano de Freitas Carvalho, Joachim de Flore au Portugal: XIII.ème – XVI.ème siècles. Un itineráire possible. Marietti, Génova, 1991.

[12] Cândido dos Santos, Os Jerónimos em Portugal, das origens aos fins do séc. XVII. Centro de História da Universidade do Porto, 1980.

[13] José Adriano de F. Carvalho, Das Origens dos Jerónimos na Península Ibérica: Do Franciscanismo à Ordem de S. Jerónimo – O itinerário de Fr. Vasco de Portugal. Separata da Revista da Faculdade de Letras do Porto, n.º 1, Porto, 1984.

[14] Cândido dos Santos, ob. cit.

[15] Mendes Atanázio, ob. cit.

[16] Ana Cristina, L. Paulo Pereira, Iconologia e Imaginário do Mosteiro de Santa Maria de Belém. Revista História, n.º 87, Lisboa, Janeiro de 1986.

[17] “… o misericordioso Miguel (…) aparece à comunidade de Israel como que investido, na sua posição mediadora, da mais alta dignidade que essa comunidade conhece: Miguel é o grande príncipe e o grande padre oficiante no templo celeste. É que, como tudo sobre a Terra, o templo terrestre, com o seu culto, tem igualmente o seu arquétipo no céu.” – Henri Corbin, Necessité de l’angeologie in L’Ange et l´Homme, p. 38. Albin Michel, Cahiers de L’ Hermetisme, Paris, 1978.

[18] Manuel Gandra, O Projecto Templário e o Evangelho Português. Ésquilo Edições e Multimédia, Lisboa, 2006.

[19] Abade A. de Castro e Sousa, Descripção do Real Mosteiro de Belém com a notícia da sua fundação. Lisboa, 1837.

[20] Vitor Manuel Adrião, As Forças Secretas da Civilização (Portugal, Mitos e Deuses). Madras Editora Ltda., São Paulo, 2003.

[21] António Telmo, História Secreta de Portugal. Editorial Vega, Lisboa, 1977.