Uma mansão numa quinta digna dos contos das Mil e Uma Noites, instalada num dos recantos luxuriantes de Sintra, junto a Seteais, no lugar dos Pisões, é a comummente conhecida Regaleira, Torre ou, ainda mais vulgarmente, “dos Milhões”.

Inacessível até 1998, quando foi aberta ao público por determinação da Câmara Municipal de Sintra, que a comprara ao grupo japonês Aoki Corporation em Março de 1997, desde a primeira hora vim dizendo que o conjunto ímpar da Regaleira deveria destinar-se, sobretudo, a Quinta-Museu dos dias idos do Romantismo “neomanuelino”, aberto a Portugal e ao Mundo, deixando a cada um e cada qual cada um a sua apreciação e leitura, conforme a sua visão e entendimento alcance, a despeito de porventura ser alheio a conotações e colagens que se fazem hoje, atribuindo-lhe filiações no mínimo bizarras, tanto quanto o desinteresse pelas mesmas da parte do proprietário original, António Augusto Carvalho Monteiro.

A Quinta da Regaleira está hoje classificada como “Imóvel de Interesse Público” de acordo com o Decreto n.º 5/2002, Diário da República, 1.ª Série-B n.º 24, de 19-02-2002, abrangida pela “Paisagem Cultural e Natural de Sintra” incluída na Lista de Património Mundial – MN (n.º 7, do art.º 15, da Lei 107/2001 de 8 de Setembro).

A mansão da Regaleira afigura-se um “bolo de noiva” ou um “palácio de fadas”, tendo para isso contribuído o seu molde arquitectónico, num ecletismo de estilos apesar de sobressair o neomanuelino, e a decoração coreográfica, dando-lhe halo de sortilégio e encantamento, essa é inspirada numa “heráldica falante” de exaltação das armas e feitos familiares com o singular de beber a inspiração directa no simbolismo da Divina Comédia, de Dante Alighieri, e de Os Lusíadas, de Luís de Camões, também autor de uma Comédia (1587), aquele o escritor ao serviço da Ordem do Templo e este o Fiel de Amor que cantou Portugal e a Tradição dos seus Maiores que Carvalho Monteiro aqui mandaria pintar, cinzelar e esculpir, deixando à posteridade os símbolos principais da “religião pátria” segundo o seu entendimento peculiar.

Esse entendimento peculiar, revelado por uma amálgama simbológica extraída da mitologia greco-romana, do catolicismo e do hermetismo, acabou resultando numa fusão feliz, ao mesmo revelando a sua grande cultura e conhecimento profundo dos símbolos da Tradição, como também a sua possível filiação a um tipo particular de cristianismo gnóstico ou teosófico, em que parecia não encontrar conflitualidade ou desafecto entre o sapiencial e o confessional. Por esse motivo, escrevi numa outra obra[1]:

“Esse vínculo supra-esotérico (de Carvalho Monteiro), direi assim, levou-o ao culto permanente do Oculto, do Subterrâneo, do Mistério escondido (tomando por base as lendas árabes das 1001 Noites, nisto tanto valendo por Véus de Io ou Ísis). Donde a constância de criptas, grutas, etc., em toda a sua obra, culminada com a deposição do seu féretro na cripta fúnebre do Jazigo da Família Carvalho Monteiro (gizado por Luigi Manini, e lá está a assinatura dele), no Cemitério dos Prazeres, Lisboa, tendo entrado nele a 2 de Abril de 1922, trasladado do anterior da família no mesmo cemitério, onde entrara às 17 horas do dia 27 de Outubro de 1920.

“Obra tendo sempre por centro axial a torre (havendo na quinta, como já disse, duas torres subterrâneas, erroneamente chamadas «poços», ainda que de poços nada tenham…), cerne do mito Lusignan, romance medieval cujos elementos simbólicos principais terão servido de programa a Carvalho Monteiro que bem parece o ter recriado neste espaço (havendo numa terceira torre – que ao espaço infinito está vertida, as outras invertidas – a imagem pétrea de Melusina, “la Dame du Lac” na versão pastoril própria do Romantismo, a qual tem no regaço uma pomba com um cisne aos pés (ou talvez um ganso, simbolicamente aparentados, pois aquele designa a irmandade, e este a operática) de que um, o possivelmente serpentário, está oculto, a qual daria o seu nome ao jardim: da Fada). Isso pelo motivo possível da aproximação directa do ortónimo Carvalho Monteiro ao outro de Sampaio e Lusignan o qual, segundo a história da qual não se sabe onde acaba a lenda e começa a realidade, possuiria o Sangue Real (donde Sang Greal, Saint Grial e finalmente Santo Graal) herdado do próprio Jesus Cristo acaso unido maritalmente a Maria Madalena de que Sara “Kali” seria filha e iria insuflar o sangue dos progenitores numa linhagem iniciada por São Maurício[2], fundador da Casa de Lorena cuja Cruz fora feita, ainda segundo a lenda áurea, com a madeira da própria Árvore de Jessé – patente na parede exterior do Palácio da Regaleira, onde um menino suporta um tronco florido cujo topo é uma goteira figurativa da “Água da Salvação” que é o próprio Messiah ou Avatara – de cujo tronco genealógico, rezam as profecias bíblicas[3], haverá de vir o futuro Messias Redentor da Humanidade, motivo que seria transposto para o tema nacional do Rei Encoberto, pedra angular da doutrina da “religião pátria”. Com a quase certeza pessoal que o cenário envolvente impõe, Carvalho Monteiro possuiria todos esses dados históricos, bíblicos e míticos e com eles assumiria, tomado da sua razão e direito, o estatuto da sua ascendência a tão grande e divina linhagem – a linhagem apostólica provinda do Médio Oriente para o Ocidente, após a Tragédia do Gólgota – vindo criar obra soberba condigna à mesma, o figurino simbológico decorativo da própria Quinta da Regaleira, linhagem essa com cujo sangue se uniu pelo seu matrimónio com Perpétua Augusta Pereira de Melo (nascida em 1852 e falecida na tarde de 25 de Dezembro de 1913 – por causa disto C.M. passou a azarar o n.º 13, doravante nunca mais tirando o luto – com 61 anos de idade), com ligações familiares a Sebastião José de Sampaio Melo e Castro Lusignano (1764-1826). A mãe deste, a condessa Teresa Violante Eva Judite de Daun, descendente dos Sabóia de Lorena, significativamente está deposta no Jazigo da Família Carvalho Monteiro, no Cemitério dos Prazeres em Lisboa.

“Resta não esquecer que os descendentes de Carvalho Monteiro possuem ainda hoje o apelido “fulano X de Poitier”, como é o caso do seu falecido neto, faz alguns anos, José António de Carvalho Monteiro Poitier ou Poitiers, esta a cidade francesa vizinha de Lusignan e ambas no condado do Poitou, onde se deu a lenda nobiliárquica originada pelo cavaleiro Remondin e a fada Melusina. Inclusive o brasão de Coimbra, onde Carvalho Monteiro em sua juventude viveu e estudou e o mandou pintar neste seu Palácio da Regaleira, também é associado à lenda de Melusina[4]. Será tudo isto mero acaso? Duvido.”

É a seguinte a origem e descendência do proprietário original da Quinta da Regaleira:

António Augusto Carvalho Monteiro – Nasceu no Rio de Janeiro em 27 de Novembro de 1848 e faleceu no seu palácio de Sintra em 25 de Outubro de 1920.

Pai – Francisco Augusto Mendes Monteiro * 9.3.1816 – 1.11.1890.

Mãe – Teresa Carolina de Carvalho * 1.10.1810 – 2.4.1871.

Casamento (1.º e único) – 1873 com Perpétua Augusta Pereira de Melo * 1852 – 25.12.1913.

Filhos do casamento – Pedro Augusto de Melo Carvalho Monteiro * Petrópolis, Rio de Janeiro, 10.11.1873. Casou com Maria Raquel George Poitier.

Maria de Melo Carvalho Monteiro * 1877. Casou com D. Francisco de Assis Nazaré de Almeida, nascido em Santos-o-Velho, Lisboa, em 16.12.1868.

Foi precisamente no Brasil, no Rio de Janeiro, que Carvalho Monteiro nasceu, vindo para Portugal com 10 anos de idade. O que humana e intelectualmente era e para traçar o perfil da sua pessoa, restam os testemunhos dos seus netos[5], além das entrevistas pessoais que fiz à sua neta, a marquesa de Pombal, Sr.ª D. Maria de Nazaré Monteiro de Almeida Carvalho Daun e Lorena, e à Sr.ª D. Jesélia Fonseca, filha do escultor José Fonseca que interveio nas obras da Regaleira.

António Augusto Carvalho Monteiro tirou dois cursos, Filosofia, que não terminou, e Direito, licenciando-se em Leis (1871). Matriculou-se pela primeira vez no ano lectivo de 1866-1867 e terminou a licenciatura em 1870-1871. Para a sua entrada na Universidade de Coimbra houve necessidade de fazer publicar uma portaria especial, pois era ainda muito novo[6]. Pertenceu ao grupo de Guerra Junqueiro (a quem o Professor Henrique José de Souza (1883-1963), fundador da Sociedade Teosófica Brasileira, deu-o com ligações à misteriosa Ordem de Mariz), João Penha, Gonçalves Crespo, Júlio Vilhena, Simões de Castro, Hintze Ribeiro, Bernardino Machado, Vicente Monteiro e Victório Paretto, com os quais conviveu intimamente. Também iniciou o curso de Medicina, mas desistiu. Curiosamente, nunca recorreu a nenhum médico: automedicava-se, tal qual os antigos terapeutas que no tempo de Jesus Cristo eram os essénios. Pouco depois de se haver licenciado, Carvalho Monteiro regressou ao Brasil, onde permaneceu alguns anos, vindo posteriormente a fixar a sua residência em Lisboa, primeiro na Quinta do Vadre ou da Torre de São Domingos de Benfica, e depois no antigo Palácio Farrobo, na Rua do Alecrim, tendo destinado inicialmente a Quinta da Regaleira de Sintra a residência de Verão, mas acabando por tornar-se morada permanente.

Como diz muito bem Regina Anacleto, valendo-se do estudo de José Lobo d´Ávila Lima[7], António Augusto Carvalho Monteiro era dono e senhor de uma maneira de ser muito peculiar, e já desde os tempos de Coimbra frequentava um dos vários “templos” da cultura que então ali se desenvolviam. Na sua opção, além de outros factores (interesses nacionais, místicos, etc.), certamente pesava a nacionalidade brasileira que o levava amiudadamente ao n.º 97 da Couraça de Lisboa (em cujo prédio funcionava o “Parnasso em dois andares”: Gonçalves Crespo no rés-do-chão e João Penha no primeiro andar), residência do mesmo Gonçalves Crespo, não muito longe da sua casa, que ficava no n.º 28 da mesma rua. Nesse “Parnasso” coimbrão, a mística camoniana deve ter começado a desenvolver-se nele de forma tão singular quanto aquele cenáculo mondeguino onde se reuniam Marçal Pacheco, Coelho de Carvalho, Vicente Monteiro (amigo íntimo de Carvalho Monteiro), Luís de Andrade, Sérgio de Castro, Alberto Braga, Vicente Pindella, Teixeira de Queiroz (que assinava os seus escritos com o pseudónimo de Bento Moreno), Bernardino Machado, Cândido de Figueiredo, António de Melo e Carvalho Monteiro, que discutiam calmamente, quase sempre em pé por falta de cadeiras, assuntos dos seus interesses ligados aos aspectos sociais e culturais do país[8].

– Ele falava latim como nós falamos o português. Dizia Os Lusíadas de cor, canto por canto. E soubemos há pouco que tinha uma enciclopédia luso-brasileira. – Lembrou o seu neto, António Poitier Carvalho Monteiro.

Aliás, Carvalho Monteiro custeou várias edições de Os Lusíadas e muita fama adquiriu a Camoniana que reuniu (onde contava com um exemplar da primeira edição da Comédia, de Luís de Camões). Encontra-se hoje, infelizmente, longe de Portugal, na Biblioteca do Congresso, nos EUA, depois de ter seguido um curso tortuoso. Com efeito, em 1926, Pedro Carvalho Monteiro vendeu um primeiro lote da biblioteca particular de seu pai a Maurice Ettinghausen que o enviou para Londres, com o intuito de enriquecer a colecção de livros portugueses antigos do rei D. Manuel II, então exilado na capital de Inglaterra[9]. Em 1927 a Maggs Brothers adquiriria o segundo lote, e o terceiro derradeiro em 1929, ano em que, contrariando os acordos firmados com Pedro Carvalho Monteiro e seu filho António Carvalho Monteiro, seriam vendidos à Biblioteca do Congresso em Washington, onde estão depositados. Há um catálogo em inglês discriminando as obras literárias que pertenciam a Carvalho Monteiro[10], no qual constam 3602 itens referentes à adquirição em 1927 e 1929 de livros, panfletos e 600 manuscritos das bibliotecas particulares do conde de Olivais e Penha Longa e do dr. António Augusto Carvalho Monteiro, que em 1909 comprara a biblioteca daquele. Entre os manuscritos, que recuam até 1438, incluem-se documentos originais e cópias[11]. Nos itens da livraria de Carvalho Monteiro há um número significativo respeitante ao Messianismo e ao Sebastianismo (de que destaco dois títulos: Tratado da Quinta Monarquia, de frei Sebastião de Paiva (século XVII), e Oráculo dos Oráculos Sebásticos, miscelânea dos meados do século XVIII incluindo versos, escritos e profecias do padre Cristóvão dos Mártires, de D. Pedro Pires (um dos emissários do rei D. Dinis junto da Santa Sé para tratar da criação da Ordem de Cristo a partir da do Templo), de frei Jerónimo Basílio, do padre Bartolomeu Salutivo, etc.), adquirido entre 1850 e 1920. Denota-se ainda, pelos mesmos itens, o interesse particular de Carvalho Monteiro pela acção histórica do marquês de Pombal (estando em sua posse o original do seu último discurso, informação reiterada pela Enciclopédia Luso-Brasileira), de D. Pedro IV, de D. Miguel e de D. Maria II. A Colecção dos Manuscritos Portugueses está ainda microfilmada em 75 rolos contendo 3.602 títulos num total aproximado de 154.000 páginas. Diz Manuel J. Gandra[12]:

“Em 1929, o núcleo central da Biblioteca de Carvalho Monteiro, transacionado por 1000 libras (doc. 4)[13], era expedido de Lisboa, por via marítima, com destino à DCL (Biblioteca do Congresso), onde lhe havia de ser atribuído o código de aquisição 387270´29.

“A encomenda pesava quinze toneladas e ascendia ao astronómico número de 28.480 livros, 14.000 dos quais em língua portuguesa, 6.000 em francês, 900 em inglês, 450 em italiano, 400 em espanhol, 500 em alemão, 150 em latim, 40 jornais, 650 revistas, 920 almanaques, 70 livros de música, 4.400 panfletos (doc. 6)[14], não incluindo nem os 767 volumes manuscritos, nem um número indeterminado de peças iconográficas, ofertadas pelo vendedor[15].”

Livro raro (1749) de Leonarda Gil da Gama[16]pertencente à biblioteca particular de Carvalho Monteiro

Eram igualmente comentadas e elogiadas as inúmeras colecções de Carvalho Monteiro, desde borboletas, conchas, relógios, instrumentos musicais, mobílias, pratas artísticas e outras antiguidades, nas quais gastou somas consideráveis, que hoje andam perdidas ou dispersas nas mãos familiares ou de conhecidos, ou de simples coleccionadores anónimos.

Mas segundo Denise Pereira, no seu estudo Quinta da Torre da Regaleira[17], “todavia nem tudo se perdeu. Uma preciosa colecção camoniana adquirida pelo município em 1980 é o título de um artigo publicado na revista municipal de Lisboa[18], em que se refere que a edilidade conseguiu comprar algumas centenas de espécies, muito diversificadas, pertencentes ao acervo de António Augusto Carvalho Monteiro. Das restantes colecções, saliente-se o conjunto de instrumentos musicais adquirido para o Conservatório Nacional de Lisboa pelo Dr. Júlio Dantas, entre 1930 e 1935, e a colecção de conchas que se encontra integrada no Museu da Universidade de Ciências de Coimbra”.

No tempo em que não havia “uma folha no chão da quinta”, a criadagem do dr. Carvalho Monteiro era composta por seis pessoas (cocheiros e motoristas), dois carpinteiros permanentes, dois homens encarregados do gerador que podia fornecer luz a Sintra inteira, uns 14 criados e mais de uma dúzia de jardineiros. “Vendêmo-la porque a vida teve uma evolução enorme. Aquilo só dá despesa. É uma quinta para ser tratada como um menino”, comentou o seu neto António Poitier em 1985, adiantando: “Nem sei quanto valerá aquilo hoje. Diz-se que há uns 12 anos pediam 100 mil contos a uns árabes. Na minha opinião, aquilo não se devia vender a estrangeiros”. A neta D. Maria de Nazaré é da mesma opinião: “Sem ser nas mãos do meu avô, só para o Estado”[19].

Católico assumido, monárquico convicto, António Augusto Carvalho Monteiro era amigo particular do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia, e essa simpatia política valeu-lhe a prisão em Outubro de 1913, sendo levado para o Quartel dos Loios, em Lisboa, como descreve o jornal A Capital (Lisboa – Terça-feira, 21 de Outubro de 1913): “Prisão do dr. Carvalho Monteiro – Pelas 19 horas deu entrada no governo civil o sr. dr. Carvalho Monteiro, abastado capitalista, conhecido em Lisboa por Monteiro Milhões o residente na Rua do Alecrim. Do governo civil, seguiu em trem para o Quartel dos Loios”. Dois dias depois, o mesmo jornal dava a notícia seguinte (Lisboa – Quinta-feira, 23 de Outubro de 1913): “Últimos acontecimentos: o sr. Carvalho Monteiro protesta a sua inocência e diz que se deu dinheiro para a caravela o fez no uso d´um direito – O sr. Carvalho Monteiro, preso anteontem como sendo um dos cabecilhas da trapalhada conspiratória que tão ridiculamente acabou, continua preso no Quartel dos Loios, de onde tem vindo ao governo civil para ser interrogado. Tanto na polícia como no referido quartel, o riquíssimo capitalista e proprietário não deixa de afirmar a sua inocência, clamando que nada tinha com o movimento monárquico e jurando que nunca foi conspirador. A sua atitude de protesto tem atingido por vezes uma veemência extraordinária, que o leva a um estado de irritação verdadeiramente excepcional. O sr. Carvalho Monteiro apenas confessou que contribuiu largamente para a caravela que os monárquicos portugueses ofereceram ao ex-rei, por ocasião do seu casamento. Acrescenta, porém, que o fez no uso d´um direito, visto dispor como entender do seu dinheiro que é muito. Resta ver até que ponto são verdadeiras as afirmações do opulento proprietário e esperar que se saiba se os cabecilhas monárquicos se reuniam nas suas propriedades com o seu consentimento ou sem que para tal contribuísse com a sua cooperação. A polícia o dirá”.

António Augusto Carvalho Monteiro fora preso como implicado na intentona monárquica de 1913 contra Afonso Costa, presidente da República, cujos revolucionários costumavam reuniam-se no antigo Hotel Levy, na Praia das Maçãs[20]; após o fracasso da intentona o seu chefe, Azevedo Coutinho, procurou refúgio no Palácio da Regaleira onde seria detido juntamente com o proprietário, conforme narra a revista Illustração Portugueza, n.º 401, de 27 de Outubro de 1913.

Carvalho Monteiro foi julgado como criminoso de “lesa-pátria” quase um mês depois no Tribunal da Boa-Hora, acusado de promover reuniões monárquicas conspiratórias contra a República no seu Palácio da Regaleira de Sintra e no n.º 70 do seu palácio da Rua do Alecrim, em Lisboa, e de auxiliar com largas verbas o rei no exílio, D. Victor Manuel II. Essa prisão deveu-se a dois factos absolutamente contrários ao estado de anarquia revolucionária que lavrava no país onde os carbonários haviam apontado como inimigos maiores da causa republicana a Igreja e a Coroa: 1.º) quando em 4 de Setembro de 1913 se celebrou o matrimónio de D. Manuel II, no seu exílio de Londres, com a princesa Augusta Vitória de Hohenzollern, Carvalho Monteiro organizou em Lisboa uma subscrição pública para um presente de casamento aos reais consortes, uma caravela em prata, o que foi considerado um “pecado capital” pelos republicanos e jacobinos; 2.º) em 20 de Outubro de 1913 deu-se a intentona revolucionária monárquica liderada por João de Azevedo Coutinho, que embora prevista também para o Porto acabou por restringir-se à capital, não indo além da destruição das redacções dos jornais republicanos O Dia e A Nação, bem como alguns estragos no Museu da Revolução, vindo Carvalho Monteiro a ser detido acusado de fazer parte da intentona falhada[21].

Mas a sua boa-conduta, a sua dupla nacionalidade, o não se provar o seu crime e, sobretudo, a sua incomensurável fortuna que por certo encheu as bolsas dos carcereiros, salvaram-no às penas das masmorras da República que, de tão infante e ociosa, não se sabia bem se era um novel regime republicano jacobino ou carbonário… ou uma mistura inextrincável de tudo isso, para todo o efeito, anti-regalista e anti-papista.

Quando o rei D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço em 1 de Fevereiro de 1908, a dor, a revolta, as lágrimas e o luto campearam na Quinta da Regaleira e Carvalho Monteiro cobriu o palácio de crepes roxos e negros durante vários dias, contou-me a marquesa de Pombal sua neta.

Atitudes como essa desencadearam o ódio e a inveja insuperáveis contra o abastado e culto Carvalho Monteiro por parte dos republicanos e jacobinos. Odiavam-no de morte e não tinham como o atingir… restava-lhes a maledicência, filha da inveja, e a intriga, filha da raiva. Foi quando Francisco Valença (1882-1962), o cartoonista republicano dos “sete costados”, servindo-se da sua arte que outra possuía para mal dizer e pior fazer, inventou uma alcunha boçal para o riquíssimo luso-brasileiro: “caga-milhões”, nome de um seu cartoon onde representa Carvalho Monteiro montado num burro expelindo como fezes moedas de ouro. A alcunha pegou e ficou até hoje na vox populi. O tal cartoon aparece em O Moscardo, semanário humorístico dirigido por Francisco Valença mas de muito curta duração: de 27 de Maio a 17 de Junho de 1913. Tendo como lema “zumbe, zomba e ferra… o ridículo”, na carta de apresentação de O Moscardo o autor define claramente o seu posicionamento político e a finalidade do semanário: “Zumbindo e zombando, irei ferindo os ridículos da política e dos maus costumes. Metendo o ferrão em toda a parte, menos na privada de cada qual, entrarei no Congresso e boca de certos oradores que quando a abrem é para entrarem moscas ou saírem asneiras. Nas pastas dos ministros acharei pasto para a minha “verve”. Irei pelas redacções, cafés e teatros ouvindo, comentando e documentando. Enxergando uma calva à mostra pousarei, não para repousar, mas para ir pousar n´outra. Republicano de antes de 5 e d´antes quebrar que torcer, reservarei para os monárquicos a graça grossa. Perante eles ou seja quem for, jamais baterei as asas, ainda que esteja em perspectiva apanhar umas de pau”.

Nem após a sua morte Carvalho Monteiro foi poupado aos vilipêndios e estórias anedóticas saídas da verve republicana que enchiam as revistas e jornais em 1920 sobre ele, dando-o como avaro nababo, como a seguinte ainda o corpo recém-falecido estava quente:

“Acaba de falecer em Lisboa o dr. António Augusto Carvalho Monteiro, conhecido em todo o Portugal por “Monteiro dos Milhões”. Como o cognome indica, era riquíssimo, e tinha uma qualidade raríssima no mercado dos milionários: era esmoler. Conta-se dele a seguinte anedota:

“Como quase sempre o fazia, mandou um seu criado particular comprar dois bilhetes para a loteria espanhola do Natal. Um bilhete era para ele, e o outro para a criadagem. De uma vez bateu-lhe a sorte grande à porta, mas no bilhete com que ele tinha ficado, saindo o dos criados, branco. O servo foi ter com o dr. Monteiro e disse-lhe muito comovido:

“– Eu trouxe os dois bilhetes a Vossa Excelência…

“– Sim, e depois?

“– Vossa Excelência guardou um e deu o outro aos seus criados…

“– Sim, e depois?

“– Ora o de Vossa Excelência saiu com a sorte grande…

“– Continua, homem!

“– E o nosso saiu em branco…

“– Mas o que queres tu dizer com tudo isso?

“– Eu vinha ver… se Vossa Excelência dava alguma coisinha à criadagem. Era de justiça…

“O doutor tirou uma pitada da sua caixa de ouro, e respondeu repoltreando-se na cadeira:

“– Ora diz-me com franqueza, se te tivesse saído a sorte grande davas-me alguma coisa?

“– Saiba Vossa Excelência que lhe dava os meus agradecimentos.

“– Pois é isso mesmo o que eu vou fazer…

“E levantando-se, estendeu a mão ao criado e disse-lhe muito cortês:

“– Agradecido João pelo bilhete que te mandei comprar.

“Posso garantir que este facto autêntico correu todo o Portugal.”

O panfletário republicano Conceição e Silva Júnior (João Paulo), tomado de inveja mortal do dr. Carvalho Monteiro, ainda em 1909 dedicou-lhe o seguinte mimo gratuito: “Doutor António Augusto Carvalho Monteiro (Monteiro Milhões) – Um filósofo de pacotilha a deitar milhões para as suas arcas”[22].

Ficando até hoje nas vozes dos simples como o “caga-milhões”, a pessoa deturpada de António Augusto Carvalho Monteiro é tida como a de um avaro excêntrico incapaz de ajudar quem quer que fosse – por na realidade, como homem de negócios que era, naturalmente não gostar de esbanjar a sua riqueza e normalmente regatear, no momento do ajuste, o preço dos serviços que lhe prestavam, embora não conste que entrasse nos seus hábitos ficar a dever a alguém – e a de um narcisista que cultuava a sua própria imagem. Antes se devera dizer que realçava o sentido humano da casta familiar, dando-lhe foros sagrados, em guisa de divinização do nome da mesma; por outro lado, foi mecenas anónimo de muitos a quem a pobreza afligia, no que lembro aqui, de uma penada, ter ajudado com largas somas a Misericórdia de Sintra, contribuído com somas e bens para o depauperado elenco artístico do Real Teatro de S. Carlos e prestado auxílio regular ao célebre Padre Cruz (1859-1948), que só soube quem era o seu benfeitor secreto depois da morte dele.

António Augusto de Carvalho Monteiro revelava-se “um homem humilde, tímido, discreto e avesso a festas e coisas mundanas”, afirmou-me a sua neta D. Maria de Nazaré. Ele agia anonimamente, sem ostentação, pelo que, em palavras do próprio, “quando a mão direita faz a caridade, a mão esquerda fica no bolso”, ou “a mão esquerda não precisa saber o que faz a direita”.

Dele, disse-me ainda D. Maria de Nazaré Carvalho Daun e Lorena:

– Era um homem bom, extraordinariamente simples; estatura mediana, barba que parecia seda, voz suave e doce. Detestava discussões, era muito difícil zangar-se e amava a verdade acima de tudo. Não gostava de mostrar o que sentia. Era muito reservado e só se abria com íntimos.

E prosseguiu:

– Gostava da beleza e do grandioso. Tinha o culto do belo mas não era para se exibir. Era “família” o mais possível e nunca dava festas. Era muito bom, dava muita coisa mas com a condição de o seu nome não aparecer. Educou muita gente no estrangeiro, dava imensas mesadas a pessoas que necessitavam, ajudou a montar negócios sem exigir fosse o que fosse em troca. Foi um dos fundadores da Assistência Nacional aos Tuberculosos. Muito religioso e fechado tinha horror à Maçonaria e a tudo que fosse escuro.

Essa sua feição filantrópica lembra-me o episódio protagonizado por Carvalho Monteiro que a própria marquesa sua neta me contou. Sendo cliente habitual da “casa da música”, vendedora de instrumentos musicais situada no Largo do Chiado em Lisboa e de cujo proprietário era amigo, passando longas horas juntos em amena cavaqueira, conheceu aí um jovem escriturário empregado da casa, o qual, apesar de dotado de escassos recursos, também queria abrir um negócio seu, sem no entanto ter possibilidades económicas para o fazer. Sem que soubesse, o mecenas piedoso arranjou-lhe casa para instalar esse negócio. Casa já tinha, faltava tudo o resto e ele não sabia como conseguir… Ora, passado algum tempo, pouco, esse rapaz casou com uma jovem, também de parcos recursos, e, como prenda de casamento Carvalho Monteiro ofereceu-lhes uma linda secretária de escritório, adiantando para tomarem atenção ao “segredo”. O casal, mal chegou a casa, foi cuidar de descobrir o “segredo” que a escrivaninha escondia. Mexendo daqui, dali e dacolá acabaram descobrindo um botão que, premido, abriu uma gaveta secreta… cheia de moedas de ouro. Carvalho Monteiro era assim.

Acrescento ainda que Carvalho Monteiro também foi, durante muitos anos, mecenas benfeitor do Jardim Zoológico de Lisboa, ele próprio sócio-fundador do mesmo assim como o seu pai, Francisco Augusto Mendes Monteiro, e igualmente o rei D. Fernando II.

António Augusto Carvalho Monteiro comprou a Quinta da Regaleira em 11 de Dezembro de 1893 por 25 contos de réis, e o tabelião que “o comprador pagou em moeda corrente do reino”. Para as obras do palácio, capela e jardim (tendo-as começado nos inícios de 1900 e terminado em 1910, com mais uns arranjos que demoraram até 1912, e um pouco mais até 1918 para os arranjos florais do jardim) mandou vir de diversas partes do país artistas nacionais, especialmente de Coimbra[23]. Mas quem concessionou a obra foi o arquitecto-cenógrafo italiano, acabado de executar o Palácio-Hotel do Buçaco, Luigi Pietro Manini.

– Era um senhor de compleição forte de quem nós, os netos, então crianças, não gostávamos, pois só tinha conversas sérias com o nosso avô das quais não percebíamos nada, além de que as suas visitas significavam ficarmos apartados do convívio com o avô que gostava tanto de nós quanto nós o adorávamos. Ciúmes… era, enfim, conversa animada de arquitecto e matemático… mas o avô gostava muito dele, e perdiam horas juntos a falar e a passear pela quinta: o avô apontava um sítio, dizia-lhe uma coisa e o Manini escrevia num livro de apontamentos, o “caderno dos recados”, que trazia sempre consigo. O avô pensava e dizia e o Manini fazia escrupulosamente o que lhe era mandado fazer. – Afirmou-me a marquesa de Pombal.

António Carvalho Monteiro encomendara em 1898 a esse mestre d’arte o projecto para as obras da Regaleira (palácio, capela e cocheiras), começando-se a lançar os caboucos ainda em 1899 e levantando-se as paredes da capela e cocheiras já em 1900. Em 1905 iniciou-se a construção do palácio, tendo Manini dado largas à sua mestria inigualável que tornaria o conjunto da Regaleira um dos mais belos e expressivos monumentos neomanuelinos de Portugal e, quiçá ou decerto, da Europa e do Mundo, com toda a sua composição arquitectónica, paisagística e cenográfica assente nos símbolos principais da Tradição Primordial de acordo com a vontade expressa do solicitador[24].

Sobre isso mas sobrepondo o saber de Manini ao querer de Monteiro, Paulo Pereira, investigador da História de Arte, escreveu o seguinte[25]:

“Mas é provável, ainda, que para o resultado inaudito da quinta tenha contribuído o conhecimento eventualmente tradicionalista do arquitecto Luigi Manini, contratado por Monteiro. Luigi Manini veio para Portugal em 1879 como cenógrafo do Teatro de São Carlos, no qual sucedeu à dupla Rambois e Cinatti, numa altura em que a arte cenográfica em Portugal necessitava de renovação. Sem deixar discípulos, Manini produziu cenários de teor naturalista de grande qualidade cénica, ilustrando óperas de todos os géneros. Dotado de uma ampla cultura visual, que o levava a dominar com rigor os diversos estilos “históricos” exigidos pelas muitas óperas que cenografou, Manini logo se interessou pelo poderoso efeito decorativo do manuelino, que interpretou à sua maneira, algo eclética. A sua familiaridade com o imaginário operático pode ter determinado algumas das opções ornamentais e estruturais do palácio. Por outro lado, dada a densidade simbólica deste e o agenciamento de espaços insólitos e de cariz iniciático a que nele se assiste, não custa admitir que Manini conhecesse romances “de formação” ou “de iniciação” e que neles se tivesse inspirado. No Palácio Milhões, Luigi Manini trabalhou com João Machado (que ficou em Coimbra), José da Fonseca e Luís da Fonseca enquanto escultores e entalhadores de pedra (além de outros oficiais do chamado “ateliê do Arnado” que com eles se deslocaram à boa maneira das empreitadas medievais, em que o nomadismo dos artistas era uma constante), e Júlio da Fonseca (irmão de José e Luís), que foi o entalhador de madeira. Manini enviava os desenhos das peças principais para Coimbra, que ali eram executadas em pedra-de-ançã e depois transportadas e assentadas em Sintra. Outras peças foram talhadas no local ou próximo dele, sendo pensadas na altura em articulação com o arquitecto-cenógrafo e com o proprietário. Sabe-se que Monteiro acompanhou os trabalhos com rigor extremo e chegou a recusar peças “prontas a assentar”. Este facto explica, quanto a nós, porque é que o capitalista recusou o projecto inicial encomendado ao francês Henry Lusseau, que o executou em estilo neogótico. Mas a escolha do manuelino e de Manini parecem encerrar, igualmente, outra dimensão: a de que nenhum outro estilo poderia corresponder ao empenho historicista e simbólico – sobretudo simbólico – que Monteiro queria ver constelado em pedra.”

Quanto à pedra utilizada para construir o palácio e a capela da Quinta da Regaleira, trata-se de um calcário muito fino. vindo da zona do Outil, próxima de Coimbra, transportado, diz-se, em carros de bois, num processo idêntico ao utilizado para o Convento de Mafra. Fernando d´Orey, que foi um dos 18 herdeiros dessa família donatária tardia desta propriedade, disse que Carvalho Monteiro fez as obras “com o rendimento dos rendimentos”.

Para a cenografia quase ou mesmo mágica do jardim, sobremaneira singular, inclusive inédita (como é inédito e singular tudo nesta quinta), informa Denise Pereira[26]: “A vegetação exótica, no caso particular da Quinta da Regaleira, importada do Brasil, é plantada sem ordem aparente, parecendo reforçar o efeito de nostalgia. Dos trópicos chegou pela mão do dr. João Victório Paretto, primo e amigo pessoal de Carvalho Monteiro, um número considerável de palmeiras, grande parte delas plantadas na alameda das cavalariças. A encomenda, feita no Grande Estabelecimento de Horticultura em Villa Isabel, no Rio de Janeiro, a 27 de Junho de 1905, chegou a Lisboa por via marítima, no vapor Victória. Contudo, esta não foi a única porque em cartas familiares se menciona por várias vezes, desde 1903, a compra de fetos e palmeiras para enviar para Portugal. A identificação de grande parte destas espécies na Regaleira, ainda existentes, permite confirmar o destino da encomenda. O documento permite-nos ainda definir em termos cronológicos que as preocupações com o jardim tiveram início por volta de 1903, prolongando-se pelo menos até 1918. Na listagem sobressaem particularmente as palmeiras e as tamareiras, destinadas a zonas como o patamar dos deuses e a avenida das cocheiras. A palmeira e a tamareira são símbolos de renascimento. Árvores da mesma família eram conhecidas dos gregos sob o nome de phoenix, ou seja, a fénix hermética que se imola no ninho construído com aromáticas folhas de mirra e incenso e renasce das próprias cinzas”.

Diga-se ainda que a capela de Nossa Senhora da Peninha também pertenceu a Carvalho Monteiro, que mandou construir um palácio encostado à mesma no alto das fragas, mas a morte veio surpreendê-lo quando se preparava para a restaurar.

Antes de penetrar a neose ou ciência dos símbolos esculpidos e pintados na Regaleira, constantes do aparato da sua cenografia singular, impondo neste espaço uma “microdimensão” de geografia sagrada ou geosofia, onde o recurso ao figurino dos clássicos de Dante e Camões revela-se constante, não me parece, ao contrário de alguns, que o figurino constante na Tábua de Cebes tenha sido transposto para ilustrar este mesmo espaço particular[27], posto que entre um e outro figurinos há severas dissemelhanças a despeito dessa obra clássica da mitologia grega ter integrado a biblioteca de Carvalho Monteiro, e inclusive participado nos estudos medievais e renascentistas como elo de ligação entre os saberes clássicos greco-romanos e as virtudes cristãs por via da hipérbole do duplo sentido encerrado nas figuras e discursos da mesma, o que tornava obrigatória a sua leitura nas cadeiras de teologia e moral.

Infinitamente menos ainda a Quinta da Regaleira será ou ostentará algum imobiliário iconológico maçonista derivado de eventuais ligações directas ou indirectas de Carvalho Monteiro ou Luigi Manini à instituição maçónica[28], como sustentam outros por motivos particulares que levantam suspeições severas ao comparar-se afirmativas como essa com a biografia de Carvalho Monteiro, mormente os seus interesses políticos e religiosos. Isto mesmo venho desdizendo desde 1990, quando se inventou a farsa do «palácio maçónico» da Quinta da Regaleira, e durante largos anos, a despeito dos ataques pessoais à minha pessoa, parecia “andar a pregar no deserto”… Ao fim de tanto tempo, recentemente vem juntar-se à minha voz e prosa, fazendo eco das mesmas, com inteira propriedade e justeza, conhecedor como eu dos motivos privados que o público geral desconhece, o dr. Manuel Joaquim Gandra, achando por bem contribuir para o acaso maçonista relativo à Regaleira, nestas suas palavras simples mas directas, justas e perfeitas[29]:

“Para alcançar um tal desiderato, e não obstante a Franco-Maçonaria constituir hoje uma fonte de curiosidade desmedida por parte dos profanos (mercê, designadamente, dos escândalos e atitudes censuráveis não apenas do ponto de vista maçónico, por parte de alguns dos seus membros destacados ou não), só lhe granjeará vantagens a circunstância de as suas actividades continuarem a ser conduzidas de forma discreta.

“O texto supra foi transcrito de A Maçonaria exposta, introdução ao catálogo Colecção Maçónica Pisani Burnay[30], cuja elaboração me foi cometida por Eduardo Geada, na sua qualidade de Administrador Delegado da Quinta da Regaleira (Fundação Cultursintra).

“A realização concomitante de uma Exposição de grande número de artefactos e bibliografia maçónicos e antimaçónicos, reunidos por Pisani Burnay, distinto maçom e colecionador, deu azo a que o argumento de que a Regaleira era uma Mansão Maçónica, mais se divulgasse, adquirindo foros de dogma.

“Convém salientar, no entanto, que tal dogma não se impôs tacitamente, na sequência da (para alguns) providencial aquisição da propriedade pelo município sintrense. Na realidade, esse dogma emergiu de uma campanha de marketing, gizada magistralmente e orquestrada, dentro e fora das fronteiras nacionais, por um lobby maçónico em ascensão[31], não dispondo de uma sede condigna, mas perseguindo activamente esse desiderato.

“É evidente que a impreparação da autarquia no que concerne ao enquadramento histórico e iconológico da Regaleira, bem como a atitude de desdém, seria mais adequado chamar-lhe menosprezo, por parte da historiografia de arte, ambas não garantindo, atempadamente, um discurso consentâneo com a índole não convencional do conjunto, fez o resto.

“E, não obstante, a Quinta da Regaleira, hoje tão celebrada enquanto alegada Mansão Maçónica, não contempla no seu programa iconográfico um só que seja dos símbolos consabidamente creditáveis à Maçonaria.

“São distintas as suas fontes de inspiração, de facto, porém, o grau de intoxicação atingiu tais proporções que não é frequente encontrar-se alguém com capacidade para discernir entre o que é catequese e o que releva do bom senso.

“No caso vertente, o bom senso mandaria que se escrutinassem minuciosamente as opções ideológicas do proprietário e do arquitecto que aquele elegeu para seu cúmplice.

“Que se revolvessem até à exaustão todas as fontes de informação credíveis, incluindo as bibliotecas e objectos pessoais dos protagonistas deste intrigante, mas igualmente fascinante, caso de estudo.

“E o que se tem feito, salvo em circunstâncias excepcionais?

“Uma vez preparado o argumento à exacta medida das paralaxes propagandísticas, tem-se conservado em lume brando, adicionando, de quando em vez, algum condimento susceptível de prolongar o mais possível a cozedura, sem a preocupação de averiguar previamente se a receita final é digerível ou intragável.

“E tudo isso à custa da curiosidade e da boa-fé de uma multidão de famintos, carentes de alimento espiritual, os quais, sentindo-se órfãos de um Evangelho caduco, crêem ter descoberto outro, contraponto daquele incapaz de responder aos seus anseios mais profundos e desígnios mais nobres.

“Convém recordar que António Augusto Carvalho Monteiro, católico confesso, professou um cristianismo gnóstico, nos antípodas dos ideais maçónicos, sendo de descartar, liminarmente, qualquer hipótese de uma filiação na Franco-Maçonaria[32].

“A sua biblioteca pessoal é um testemunho insofismável do desinteresse que votava ao tema.

“O catálogo que apresento, relativo ao insignificante núcleo bibliográfico (13 obras), saído de um acervo que ultrapassava os 33.000 títulos, exige duas clarificações:

“Não poderá dar-se o caso de existirem mais obras de índole maçónica, ainda não referenciadas, no acervo de Carvalho Monteiro adquirido pela Biblioteca do Congresso, uma vez que se desconhece o teor de uma parte significativa da segunda aquisição (1929)? A resposta é negativa, porquanto os livros sobre Maçonaria e afins (bem como outros temas não relevantes neste momento) têm, consoante as normas biblioteconómicas vigentes na Biblioteca do Congresso, tratamento privilegiado e prioritário, não aguardando catalogação durante muito tempo. Ora, desde a aquisição, em 1929, decorreram 83 anos…

“A colecção em apreço inclui uma obra impressa em 1924, a qual só poderia ter sido ali inserida por Pedro Carvalho Monteiro, uma vez que seu pai morrera em 1920. Poderá inferir-se daí que todos os demais títulos (à excepção dos dois antimaçónicos, transitados da biblioteca de Olivais Penha Longa) procedem da mesma origem?”

A seguir, Manuel Gandra enumera o catálogo magríssimo, insignificante desaparecendo entre milhares de títulos, da “biblioteca maçónica” de Carvalho Monteiro, com o quesito insuportável desses livros serem realmente seus ou anexados posteriormente pelo filho, tirando os dois supraditos títulos antimaçónicos pertencentes à livraria do conde da Penha Longa.

1. Boletim Official do Grande Oriente Lusitano Unido, n.º 4, 3.ªsérie, 12.º ano, Julho 1880.

2. Fernão Botto-Machado, A Maçonaria e a Sociedade das Nações (Tese apresentada ao Congresso Maçónico de 1924). Tipografia do Grémio Lusitano, Lisboa, 1924.

3. Constituição e Regulamentos Gerais da Ordem Maçónica no Brasil promulgados pelo Grande Oriente do Brasil. Tipografia Austral, Rio de Janeiro, 1842.

4. António Maria do Couto, Palmatoria contra Pedreiros-Livres, refutação à Herética Pravidade de seus Modernos Escriptos e à Introducção do Manifesto do Grande Oriente Lusitano por o Censor Profano. Impressão de Alcobia, Lisboa, 1821.

5. Miguel António Dias, Historia da Franc-Maçonaria ou dos Pedreiros Livres pelo author da Bibliotheca Maçónica. Tipografia de F. A. da Rocha, Lisboa, 1843.

6. G. O. de France – Solstice d´hiver 5839 – Procès Verbal de la Fête de l´Ordre, célébrée par le G. O. de France le 22 Jº du 10e mois lunaire (Thebet), l´an de la V. L. 5839 (27 Decembre 1839, ère vulg[ai]re). O. de Paris, Veuve Dondey-Duprè, 1840.

7. Ignacio Xavier Gayozo, Divertimento em forma de Analysi, sobre a Analysi dos Cathecismos dos Pedreiros Livres, a qual foi dada pelos senhores Tiburcio, & Firmino. Impressão de Joze Baptista Morando, Lisboa, 1823.

8. Guide des maçons ecossais, ou Cahiers des trois grades symboliques du rit ancien et accepté. Edimburgo, s.d.

9. Mitglieder-Verzeichniss, Der unter Constitution Hochwürdigsten Grossen Landes-Loge der Freimaurer von Deutchland in Berlin arbeitenden ger. verb. und volk St. Johannes-Loge. Waldenburg, 31 Mai 1847.

10. Regulador Maçónico do Rito Moderno, contendo os Rituaes segundo o Regímen do G. O. de França, bem como formalidades e disposições diversas, concernentes à Ordem, Offerecido, para uso das Oficinas deste Rito, ao G. O. do Brasil – Primeiro Grão Aprendiz. Tipografia Austral, Ano da V. L. 5837 [1837].

11. Regulador Maçónico do Rito Moderno, contendo os Rituaes segundo o Regímen do G. O. de França, bem como formalidades e disposições diversas, concernentes à Ordem, Offerecido, para uso das Oficinas deste Rito, ao G. O. do Brasil – Segundo Grão Companheiro. Tipografia Austral, Ano da V. L. 5837 [1837].

12. Regulador Maçónico do Rito Moderno, contendo os Rituaes segundo o Regímen do G. O. de França, bem como formalidades e disposições diversas, concernentes à Ordem, Offerecido, para uso das Oficinas deste Rito, ao G. O. do Brasil – Terceiro Grão Mestre. Tipografia Austral, Ano da V. L. 5837 [1837].

13. J. M. do Rosário, Instrucções para os Sublimes Capítulos dos Sublimes Principes de Heredom e de Kilwinning, Cavalleiros da Águia e Perfeitos Maçons Livres com o titulo de Rosa-Cruz do Rito Escocez Antigo e Acceito para o Império do Brazil, recopiladas dos melhores Authores e oferecidas ao I. Cav. R+, F. de Paula Brito, pelo seu amigo, Grau 30. Tipografia Imparcial do Ir. F. de P. Brito, Rio de Janeiro, 1838.

Tudo isso esfuma decisivamente a hodierna invenção propositadamente teimando em dar a Quinta da Regaleira como projecto jacobino, apesar de despossuído do que seja do simbolismo maçónico clássico[33], tendo chegado alguns ao inverosímil de dar Pedro Monteiro, filho de Carvalho Monteiro, como afiliado maçom, tendo recebido nesta propriedade em Setembro de 1930 o mago inglês Aleister Crowley e o poeta português Fernando Pessoa, onde todos juntos procederam a um “ritual mágico-maçónico-templário” (!!!), e que foi o motivo para uma exposição apresentada no Palácio da Regaleira em Julho de 1996, como prelúdio da abertura do seu espaço ao público geral[34]. O que então vi chocou-me sobremaneira, a ponto de ter aconselhado os familiares de Carvalho Monteiro a não irem à quinta enquanto durasse essa exposição com intenso e macabro cheiro a satanismo, e inclusive ter deixado o protesto pessoal junto do falecido Pisani Burnay, com quem me correspondi durante largos anos. Igualmente continua a chocar-me a toponímia incoerente inventada para os vários espaços da propriedade, toda ela com o gosto da fantasia juvenil de algum leitor das aventuras fantásticas de Harry Potter, e onde hoje “esotericistas” de todos os gostos e feitios têm aí verdadeira “disneylândia” à escala internacional.

Essa elaboração fantasiosa, absolutamente vazia da mínima prova provada, foi tecida para justificar pretensões pessoais, sobretudo de natureza maçonista, chegando-se a indicar um «caminho iniciático», associado à ideia avulsa de «maçonaria hermética ou alquímica», dentro da propriedade conhecida de muito perto por Fernando Pessoa, dizem (mas, afinal, quem vá ou esteja em Sintra não conhece a Regaleira, nem que seja só de vê-la da rua, devido à singularidade exuberante do seu aspecto?), o que  me leva a considerá-la em três alíneas cujos princípios estão interligados[35]:

1.º – Afirma-se que o simbolismo patente na Quinta da Regaleira é «maçónico-templário e católico-monárquico». Será antes católico e gnóstico, confessional e sapiencial, patenteando os símbolos primaciais das Ordens do Templo e de Cristo, como organizações expressivas da “religião pátria”, para não dizer, da Patrística Lusitana incarnada no seu pensamento nacionalista donde frutificaria a diáspora e cresceria o império, sempre mantendo a fidelidade rigorosa à sua Regra e Estatutos; a par disso, aparece aqui e acolá, na propriedade, aparte o figurino simplesmente decorativo, um cardápio razoável de símbolos facilmente identificáveis como resgatados da tradição hermética da Alquimia transpostos, assim mesmo, para o sentido de heráldica falante afim aos predicados quase ou mesmo supra-humanos, vazados no tema nacional da Sebástica, que Carvalho Monteiro conferia à sua família e ascendência.

2.º – Refere-se haver nesta quinta um percurso iniciático «alquímico-rosacruciano». Será antes alquímico e cristão gnóstico, imediatamente conectado às alíneas anterior e posterior.

3.º – Diz-se que a cenografia de todo este espaço aberto e fechado contém cifrada, na linguagem muda dos seus símbolos, a Tradição Espiritual Portuguesa, e isto está certo, sendo exactamente o que venho dizendo desde cerca de 1980, altura em que comecei a estudar o recheio da Quinta da Regaleira.

A ideia de “religião pátria” assumida por António Augusto Carvalho Monteiro, mais que um pressuposto é uma evidência, aliás, reforçada pelas palavras da sua própria neta, D. Maria de Nazaré: “O meu avô gostava de tudo que era de Portugal, e apesar de não ter nascido aqui era mais português que muitos portugueses”.

A via mais apropriada para a leitura simbológica da Regaleira será a teosófica ou gnóstica na sua vertente cristã[36], com um e outros apontamentos resgatados ao figurino da tradição hindu por Carvalho Monteiro e Manini, certamente para reforçarem o significado iniciático da mensagem encriptada como a entenderam expor.

Dominando o espaço envolvente da propriedade, tem-se a sua torre evocativa da Montanha Sagrada da Iniciação, conhecida pelos orientais como Monte Meru, que tradicionalmente é ascendido num trajecto espiralado a partir da sua “metade” encoberta representada por uma câmara subterrânea, ou por uma outra torre subterrânea, cuja chegada ao cume marca a conquista do Céu, servindo assim a torre para expressar os três Mundos: Céu, Terra e Inferno, o que está muito bem assinalado nas duas torres subterrâneas (erroneamente chamada “poços”) da Regaleira: uma inacabada assinalando o Inferno (Saturno), outra completa designando a Terra (Hermes ou Mercúrio), e a terceira como a principal elevada ao Céu (Júpiter). Isto representa-se nesta torre principal com a sua câmara inferior para o Mundo Subterrâneo, a câmara circular para o Mundo Intermédio, a cuja entrada está um escudo de pedra em campo vazio, por encher com as virtudes do futuro Adepto vitorioso, e finalmente o mirante para o Mundo Superior.

Expressiva da Torre da Fé presente nas três religiões do Livro (judaica, cristã, islâmica), o simbolismo da torre encontra-se nas litanias da Virgem (Turris Davidica, Turris Eburnea), sem esquecer que os termos Virgem e Igreja estão associados, ele encerra um significado muito preciso. As torres, na Idade Média, podiam servir para espreitar eventuais inimigos, mas tinham também o sentido místico da escada: as relações entre o Céu e a Terra eram recordadas pelos degraus. Cada degrau da escada, cada andar da torre marcava uma etapa na ascensão. Fixada num centro (Centro do Mundo, Axis Mundi), a torre revela o mito ascensional e, como o campanário, traduz uma energia solar ou superior transmitida à Terra[37]. Foi numa torre de bronze, onde se encontrava aprisionada, que Danae recebeu a chuva de ouro fecundante de Zeus. De acordo com Alredo de Rievaulx (1110-1167), a Ordem de Cister é comparável a uma cidade fortificada, cercada de muros e torres que protegem das surpresas do inimigo. A pobreza forma muros e o silêncio uma torre que eleva a alma até Deus[38].

Na câmara inferior da torre que deu o nome à quinta vê-se ao fundo uma gruta artificial donde escorre água para um pequeno lago, adiante do qual figura uma donzela sentada com uma pomba no regaço e um ganso aos pés, um dos quais  está escondido debaixo da veste, como se fosse alegórico do pé serpentário que ninguém devia ver e que é o motivo da “proibição melusínica”. Trata-se da “Senhora do Lago”, Leda, Melusina ou Lusina (representada precisamente pelo ganso, símbolo primitivo dos agremiações de mestres-construtores cristãos cuja padroeira era Santa Madalena ou Magdala, cujo diminutivo hebraico, Migdal, expressivamente significa “Torre”[39]). Na lenda arturiana, a “Senhora do Lago” é a progenitora sobrenatural do “Cavaleiro do Cisne”, Lancelote do Lago, “o melhor (mais perfeito) Cavaleiro do Mundo”, aqui só podendo ser figurado em Carvalho Monteiro.

Fitando a imagem, não deixa de acudir-me à memória o último soneto da Vita Nuova de Dante Alighieri, onde a figura de Batraz ou Beatriz faz o papel de Melusina:

Além da roda (torre) que mais ao largo gira (espiralada)
Passa um suspiro que meu coração exala:
Um espírito novinho, que o Amor em pranto
Colocou nele, sempre mais alto o eleva.
Quando alcança onde ele deseja,
Dama aparece, que recebe toda honra,
E ela reluz de tão claro esplendor,
Que o espírito peregrino demorado a admira.

Com efeito, o figurino geral visto nesta câmara parece ter sido copiado a “papel químico” do cenário descrito por Jean d’Arras no seu romance nobiliárquico O Livro de Melusina ou a Nobre História dos Lusignan, no qual a fada era guardada por um dragão postado à entrada da sua gruta ou torre subterrânea (a que se pode chegar subindo até à metade desta indo desembocando num pátio amplo onde ao fundo, guardando o acesso subterrâneo à torre levantada no ventre na serra, vêem-se os escultóricos de dois lagartos ou dragões encadeados, figurando, entre outras coisas, o princípio hermético do solve et coagula).

A torre subterrânea ou jina, como diria Mário Roso de Luna, compõe-se de nove patamares cada um com quinze degraus, cuja soma e redução cabalística (9×15 = 135, 1+3+5 = 9) dá o nove indicativo do Hommo Inferius ou Incarnado, que os cabalistas judaico-cristãos identificavam como Adam-Chevaoth, ou seja, o Terceiro Aspecto do Logos Único, correspondendo ao Espírito Santo (ou Shiva, para os orientais) interiorizado no seio da Terra como Saturno sombrio, enquanto à sua face superior ou Primeiro Aspecto como Júpiter luminoso chamavam Adam-Kadmon, sendo que a sua humanização correspondia a Adam-Heve, o Hermes-Mercúrio ou Andrógino em separado como Homem e Mulher, o que dá o Segundo Aspecto do Logos Único. Por isso as escrituras sagradas dizem que “o Homem foi feito à imagem e semelhança de Deus” (Génesis, 1:26-27).

Os nove patamares desta torre subterrânea levando ao ventre da Mãe-Terra, remetem igualmente para a ideia dos nove estados do Plano Físico de acordo com a noção teosófica dos tatvas ou “estados subtis da matéria”, como sejam: sólido, líquido, gasoso, químico, vital, luminoso, reflector, subatómico, atómico. Este conceito é afim à cosmologia gnóstica onde cabe a ideia teológica dos “sete e nove Céus” e respectivas Cortes Espirituais (Arqueus, Arcanjos, Anjos, etc.), que Dante Alighieri exprimiria nos cantos da sua Divina Comédia e inclusive Luís de Camões em Os Lusíadas, de cujos cantos Carvalho Monteiro selecionaria para si determinados versículos que escreveu e assinou com o próprio punho em tarjetas, a maioria deles expressando o conceito divino do Cosmos, como o seguinte do canto X, versículo 80:

Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
etérea e elemental, que fabricada
assim foi do Saber, alto e profundo,
que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
é Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
que a tanto o engenho humano não se estende.

Revela-se aí a aceitação da existência de Deus (an sit Deus) e a preocupação em entender a essência de Deus (quid sit Deus), que sendo aceite como profissão de fé contudo não é entendido na condição de saber, motivo para a adopção do “Saber alto e profundo” para chegar ao Conhecimento do Divino, ou seja, tornar-se Gnosis ou Iluminado, motivo onde a condição material é absolutamente indispensável para poder, com o consequente engenho da segurança, subir os degraus ou graus da Sabedoria de Deus, e isto acaso explicará uma sentença constante de Carvalho Monteiro: “A matéria supera o engenho”.

É assim que esta turris inferius de assunção ao superius, ou vice-versa[40], retrata bem aquela outra da viagem interior ou espiritual descrita por Dante no canto XXXI do Paraíso (43-48):

E como um peregrino que se consola
Quando olha para o templo de seu voto,
Esperando já contar como ele é feito,
Assim como, errante pela viva luz
Eu passeava pelos degraus de minha visão,
Ora p´ra cima, ora p´ra baixo, ora circulando (ou em espiral).

Estando a parede da torre decorada por nichos representativos das almas que se manifestam, com os mesmos também poderá ajustar-se o canto XXVIII do Paraíso (127-129):

Todos admirando para o alto se tendem
E para o baixo são vencedores por próprio esforço;
Para Deus são levados e todos a Ele levam.

Pode-se relacionar a conquista espiritual da torre (como sinónimo de absorção salvífica em Maria, Turris Fidelis) com o sentido derradeiro do poema medieval do trovador D. Gonçalo Eanes do Vinhal (CV 309, BNL 671)[41]:

Quand´eu subi nas torres sobe-lo mar
e vi onde soía a bafordar
o meu amig´, amigas, tan gran pesar
ouv´eu enton por ele no coraçon,
quand´eu vi estes outros per i andar,
que a morrer ouvera por el enton.

Quand’ eu catei das torres derredor
e non vi meu amigo e meu senhor,
que oj´el por mi vive tan sem sabor,
ouv´eu enton tal coita no coraçon,
quando me nembrei d´el e do seu amor,
que a morrer ouvera por el enton.

Descrente e vazio da mínima prova de algum tipo de ritual esotérico praticado nesta Quinta da Regaleira por Carvalho Monteiro ou algum dos seus descendentes, contudo admito, ante o figurino exposto, que ele terá mandado dispor aqui o cenário próprio das iniciações gnósticas sírio-egípcias, impondo como pano de fundo a ideia de Ordem do Templo, como a primacial portuguesa, porque antes dela não havia outra no país como milícia castrense com regra e estatutos conferindo-lhe o foro legítimo de Ordem religiosa e militar, e como cenário o romântico da própria Serra de Sintra, assumindo o Romantismo como a pretensão de “regresso ao campo”, ao estado natural, sinal da reintegração do Homem na Natureza, predicado igual ao do retorno à condição e Origem Divina, percurso iniciático cujo figurino é o próprio dispositivo monumental da quinta. Com isso, avento a hipótese da Regaleira (com a sua planta pentagonal) acaso repartir-se em cinco etapas iniciáticas exclusivamente cénicas e figurativas de um teatro sem elenco humano, as quais perfazendo um pentalfa (o Tetragramaton) disponho da seguinte maneira:

Recepção do Neófito (Elemental) = Interior da torre de Melusina ou “la Dame du Lac”;

1.ª Prova (Terra) = Entrada e saída nas duas torres subterrâneas, «velha» e «nova», designando a “morte do homem velho” e o “nascimento do homem novo”;

2.ª Prova (Água) = Saída das trevas cavernosas e travessia do lago dos cisnes por cima de quinze pedras serpenteantes;

3.ª Prova (Fogo) = Reflexão na casa ou “câmara egípcia”, a que tem a ave íbis retratada, simbólica da iniciação e renascimento, nas cercanias da estátua do leão e «encravada» entre três bancos triangulando-se, cujas figuras que os decoram são as mesmas usadas na Alquimia para designar os tradicionalmente chamados três “espíritos alquímicos”: Sal – Mercúrio – Enxofre;

4.ª Prova (Ar) = Subida ao cume da torre da Regaleira, subida essa que se deve achar pois a dada altura a ascensão interrompe-se;

5.ª Prova (Éter) = Recepção do Iniciado na capela da quinta e a sua investidura na cripta da mesma;

Recepção do Iniciado (Subatómico e Atómico) = Acesso pleno do novo Iniciado ao palácio e ao templo, usufruindo do Poder Real e da Autoridade Espiritual assim representados na Regaleira, esta bem parecendo o lugar privilegiado de encómio ao culto graalístico em Sintra logo ao começo do século XX, cujas iniciais C. M. da sua figura central, Carvalho Monteiro, por tudo isso, sou induzido a transpô-las para aquelas outras de Cristo-Maria, cuja mística do Sagrado Coração ainda hoje prevalece na paroquial de Lagos da Beira, terra natal do pai deste génio que em Sintra terá realizado os mais íntimos e sublimes anseios.

As iniciais C. M. repetem-se na fonte monumental postada no caminho que vai da torre da quinta às entradas para as torres subterrâneas. Mandada fazer por Carvalho Monteiro a José da Fonseca[42], vê-se na sua fácies um círculo formado por 16 esferas (valor remetendo para a correspondência tarôtica do Arcano XVI, “A Torre”) dentro do qual inscreve-se o C sobre o M, iniciais de Carvalho Monteiro, mas também de Cristo sobre Maria, e ainda mais veladamente, de Cordo Maris, “Coração do Mar”, alusivo à “Ilha Encoberta” (Insula Hermetica) como a mesma Agharta das tradições míticas do Oriente. Transpondo o CM para algarismos romanos obtém-se o número 900, sendo que este valor designa cabalisticamente a Lua com os seus 9 ciclos de gestação necessários à formação do ser humano; daí que igualmente seja o número cabalístico do “Homem” ou Adam, gerado nas águas do barro da Terra (movimento assinalado nas cruzes swástikas decorativas dos obeliscos laterais da fonte), dele saindo depois Heve, indo formar a parelha primordial geradora da espécie humana. Por este motivo genesíaco, defronte da torre está um trono destinado a ser ocupado por um par, e diante dele uma mesa larga, espécie de távola evocativa da Obra Divina da Criação, onde todos os elementos em jogo “são postos sobre a mesa”. Abaixo do círculo uma flor-de-lis fálica direcciona-se a dois golfinhos entrelaçados, simbólicos do Androginismo dos Tempos do início e do fim da Humanidade, estado de perfeição esse representado tanto na Pedra dos Filósofos como no Encoberto e Desejado com que a mitologia portuguesa designa o Avatara do Futuro, o Messias a advir na pessoa do próprio Cristo. Com isto, o tema da Génese e da Parúsia, alfa e ómega da Grande Obra do Criador, será a mensagem velada nos símbolos desta fonte monumental, motivo de inquietação para uns e de sossego para outros.

Considero ainda que a reprodução cenográfica das etapas da iniciação gnóstica, postada tão ao gosto do épico teatral de Carvalho Monteiro, toda ela é vazada do figurino constante na lenda dourada da fada Melusina, com o acréscimo ou enriquecimento dos símbolos nacionais que a transpõem para a conceição lusa de um Sebastianismo esclarecido, teosófico, milenarista talvez, certamente apologético da Parúsia sem tempo certo para acontecer, porque a acontecer será só quando o Paracleto entender.

Com tudo, mesmo assim e por isso mesmo, parece que o tipo de Mistérios Iniciáticos expressados cenograficamente nesta Quinta da Regaleira seriam os que Rudolf Steiner chamou de “Iniciação da Hibérnia”, esta a primitiva Irlanda filha da Ibéria, desta indo para aí  várias vagas humanas na Proto-História, a última a dos Milésios cerca do ano 1000 a. C. Consequentemente, essa “Iniciação Hibérnica” melhor se poderia chamar “Iniciação Ibérica”, a qual se dotava de dois atributos que afinal vêm a ser os mesmos que distinguem e tornam ímpar este espaço monumental: a Ciência e a Arte. Diz o referido autor[43]: “Já vimos que esta Iniciação da Hibérnia comportava duas estátuas simbólicas. Sobre a cabeça da estátua do Conhecimento lia-se a palavra Ciência, e sobre a cabeça da outra estátua lia-se o termo Arte. Após a iniciação, o iniciado era levado para fora do templo e os dois iniciadores ficavam à porta, e então um tomava-lhe a cabeça entre as mãos e voltava-a para o que o outro lhe mostrava: a figura do Cristo, e as palavras de advertimento ressoavam. O sacerdote que lhe havia mostrado a imagem de Cristo, dizia-lhe: “Toma em teu coração a Palavra e a Força deste Ser”. Depois o outro sacerdote acrescentava: “E recebe Dele o que as duas estátuas querem-te dar: a Ciência e a Arte”.

De certa forma trescala do texto a aproximação entre o gnosticismo cristão e o gnosticismo pagão, que no caso da Regaleira é observável em dois espaços distintos: a estufa e o patamar que desfecha o jardim. Sobre a fachada da estufa quente (idealizada em 1908 por Manini para recolher a colecção de orquídeas e espécies exóticas de Carvalho Monteiro), lateral à torre, abre-se um largo painel de azulejos pintado por Angelo Samarani, cenógrafo italiano colaborador de Manini que foi quem desenhou a composição do mesmo, diz-se que inspirado em gravuras oitocentistas das revistas Ilustracion Artistica e L´Illustrazione Italiana, paradigmas do gosto romântico da época, mas que esse arquitecto-cenógrafo transporia para o cenário mitológico de Sintra. O painel representa um grupo de seis vestais greco-romanos rodeadas de pombas, cães galgos lebreiros e uma corça, fazendo a oferenda de uma braçada de flores a uma possível deusa de que só se vê os pés sobre o pedestal, junto ao qual fumegam as fragrâncias sagradas elevando-se de uma pira acesa.

Servindo de decoração a um espaço destinado à flora, à primeira vista o painel parece evocar a Arcádia ou Paraíso original, motivo central do Romantismo tomado como estado naturalista de retorno do homem moderno dessacralizado à aurea mediocritas ruralis, a poética primitiva da Primavera dos Deuses ou Idade de Ouro (Satya-Yuga, em sânscrito). Possivelmente a deusa homenageada será a própria Cynthia, nome grego da deusa Artemis ou Artemísia a quem os romanos chamaram de Diana, a mais pura e casta das deusas, irmã gémea de Apolo, o Sol, filhas de Zeus e Latona, mas cuja origem mitológica está na Kinthya celta, vulgarizada Cynthia e que deu nome à serra da sua eleição, Cintra ou Sintra. É a divindade lunar protectora da Natureza, musa inesgotável dos artistas e a primeira das ninfas sua rainha[44].

No patamar onde o jardim finda, quase a tombar sobre a Rua dos Pisões, corre uma fileira de nove estátuas de deuses da mitologia greco-romana, de certa forma relacionados com os signos do Zodíaco e as Hierarquias Criadoras do Universo Divino, segundo as concepções teosóficas ou gnósticas. À direita e sobre o portão de entrada pela supradita rua, aparece em primeiro plano o deus Hermes (Mercúrio, relacionado com Gémeos e a Virgem); segue-se Vulcano (deus dos fogos subterrâneos, assim expressando a própria Terra com o seu Núcleo Central ou Sol Oculto), logo seguido de Dionísio ou Baco (deus de eleição das primitivas bacantes e pai de Luso, o progenitor mitológico da raça com o seu nome, a lusa ou lusitana. Está em simpatia com Marte e os signos do Carneiro e do Escorpião). Depois surge Pã (o fauno saturnino que os primitivos povos migratórios aclamaram deus da pastorícia, sinónima de mobilidade ou nomadismo. Relaciona-se com Capricórnio e Aquário), seguido de Ceres (a deusa das colheitas relacionada aos primitivos povos agrários que se sedentarizaram em terrenos férteis regados por águas boas, e por isso expressa a Lua e o Caranguejo), logo vindo a deusa Flora (expressiva da Primavera e do início do ciclo agrário desejado de boas colheitas, com isso sendo associada a Vénus e ao Touro, este também representativo das boas gestações maternas), completada pela deusa Vénus (a do amor e da paixão, com isto representada pelo signo da Balança, sendo igualmente a padroeira dos mistérios sagrados). Por fim, aparece Orfeu (deus da poesia e da música, ligado à sabedoria e à iniciação, completando-se como Mercúrio com a anterior Vénus, donde Hermes-Afrodite ou Hermafrodita, que melhor seria chamá-lo Andrógino Perfeito representativo do próprio Adepto Real) antes de terminar na estátua da deusa Fortuna (a da abundância terrena e divina, pelo que carrega a cornucópia ou cornu-copus dos deuses, repleta de dádivas por graça de Júpiter ou Zeus, com isto associada aos signos de Sagitário e Peixes). Entre essas duas últimas estátuas e as restantes, está postado num pedestal a estátua de bronze de um enorme leão, fitando na direcção do palácio, obra de P. Rouillard (assinada por ele), remontando à época da baronesa da Regaleira, facto atestado por um grafite sobre papel de 1885 feito pelo rei D. Carlos, desenhando o animal junto à balaustrada primitiva da quinta. Posteriormente seria colocado por Carvalho Monteiro no pedestal onde hoje se vê, precisamente aí para assinalar cenograficamente a sua saída do bosque, motivo que levou Manuel Gandra a associá-lo ao “leão saído do bosque” bíblico mas com a ponderação acautelada que o tema suscita. Diz[45]:

O Leão saído do Bosque. Este tema radica numa fonte contemporânea dos derradeiros escritos do Novo Testamento, considerada um dos pontos altos da literatura messiânica hebraica pós-exílio, originada pela destruição de Jerusalém por Tito, no ano 70. Consagrada pelos títulos de Esdras IV e Apocalipse de Esdras, a Igreja Católica chama-lhe deuterocanónica, por outras palavras, não lhe reconhece o carácter de livro autenticamente revelado. A redacção original realizada numa língua semita, o hebraico ou o aramaico, data do século I da era cristã. A partir do século V passaria a ser considerado apócrifo. No entanto, ao contrário de inúmeros outros apócrifos de pendor geralmente apocalíptico que haviam representado idêntico papel no misticismo hebraico (e que foram alvo de sistemática censura por parte da Igreja Romana), a versão latina, não obstante ter sido parcialmente expurgada, teve uma extraordinária difusão durante a Idade Média.

Esdras IV pertence, com efeito, a uma outra classe de textos. Com efeito, centra-se na problemática da Restauração Messiânica e do papel escatológico e ético do Messias no Juízo Final. Os protagonistas são personagens bíblicas que acedem a uma revelação ou epifania mediada por um Anjo e completada pela contemplação da Mercabah (Carro ou Trono) de Deus, ou pelo arrebatamento e ascensão ao Empíreo.

“Quererei com isto sustentar que o programa da Quinta da Regaleira se inspira em Esdras IV?

“De modo nenhum! Viso apenas mostrar que um elemento, regra geral inócuo e desvalorizado, porque pré-existente nas abordagens hermenêuticas vigentes, foi reintegrado de forma subtil por Carvalho Monteiro na cenografia do lugar, encerrando o percurso da peregrinação alegórica exposto na Regaleira. Refiro-me, é óbvio, ao leão em bronze que, literalmente, sai do bosque, o qual serve de guia aos visitantes-viandantes, apontando-lhes o sentido da marcha em direcção ao Olimpo, por outras palavras, ao Quinto Reino ou Império.”

Símbolo-mor da Realeza e particularmente parte distinta das Armas de Lusignan, como quinto signo do Zodíaco no sentido cosmogónico, o Leão expressa o próprio Sol em torno do qual se postam os doze signos assinalados aqui pelos deuses greco-romanos do Empíreo. Este simbolismo zodiacal é corroborado por René Guénon, quando escreve acerca dos doze Adityas ou “Sóis” menores promanados do Sol Único e Indivisível (Surya), expressivo da Divindade Absoluta[46]: “São igualmente manifestações de uma Essência Única e Indivisível. E diz-se também que esses doze Sóis aparecerão simultaneamente no fim do Ciclo, reentrando então na Unidade essencial e primordial da sua natureza comum. Entre os gregos, os doze grandes deuses do Olimpo estão também em correspondência com os doze signos do Zodíaco”.

Postado em destaque o leão, animal solar associado ao ouro como “o mais nobre dos metais”, é também considerado um dos símbolos do Rei do Mundo, pelo que René Guénon na obra citada avança: “É exactamente o que a liturgia católica atribui ao Cristo, quando lhe aplica o título de Sol Justitiae: o Verbo é efectivamente o “Sol Espiritual”, isto é, o verdadeiro “Centro do Mundo”; além disso, essa expressão Sol Justitiae refere-se directamente aos atributos de Melki-Tsedek. É também de notar que o leão, animal solar, era na Antiguidade e na Idade Média um emblema da justiça e, ao mesmo tempo, do poder; o signo do Leão é, no Zodíaco, o domicílio próprio do Sol. O Sol de doze raios pode ser considerado como representando os doze Adityas; sob outro ponto de vista, se o Sol representa o Cristo os doze raios são os doze Apóstolos (a palavra apóstolo significa “enviado”, e os raios também são “enviados” pelo Sol). Por outro lado, pode ver-se no número dos doze Apóstolos uma marca, dentre muitas outras, da perfeita conformidade do Cristianismo à Tradição Primordial”.

Poderoso, soberano, símbolo solar e luminoso ao extremo, o leão, rei dos animais, por sua categoria incarna os predicados do Poder, da Sabedoria e da Justiça, com isso tornando-se a representação do Pai, do Mestre, do Guia. Pela qualificação de Justiça, faz-se garantia tanto da Autoridade Espiritual como do Poder Temporal e por isso serve de montaria ou trono a numerosas divindades, ornamentando tanto o trono de Salomão como o dos antigos reis de França e até o dos bispos medievais, associando-se a figura do animal resplandecente à do Trono de Deus, igualmente chamado Leão de Fogo e de certa maneira ligado à doutrina cabalística da Merkabah. Com isto, torna-se igualmente símbolo do Cristo-Juiz e do Cristo-Doutor, de quem ele carrega o livro ou o rolo, e nesta mesma perspectiva é o emblema do evangelista S. Marcos, fundador da Igreja de Alexandria, uma das principais sedes do Cristianismo primitivo. O leão de Judá falado ao longo de toda escritura sagrada, desde o Génesis (49:9) até ao Apocalipse (5:5), manifesta-se em plenitude na pessoa de Cristo ,cujo advento como “Coração do Universo” (expresso como quinto signo do Zodíaco de quem o Leão é o “coração” do mesmo) é aguardado pela comunidade dos fiéis lusitanos sob o figurino alegórico afim ao tema sebástico do Encoberto, também este “Coração”, Vaso Sagrado ou Santo Graal revelado na hora final da consumação do V Império ou Reino Espiritual a urgir na “Terra de Luz”, isto é, Lux-Citânia ou Lusitânia, tudo em conformidade com a ideologia messiânica da “religião pátria” cultuada por Carvalho Monteiro.

Isso explicará também a sua predilecção por esse animal (cuja figura espalha-se por toda a Regaleira), a ponto de trazer ao pescoço uma medalha de ouro com um leão entronizado e a divisa Quis audet (“Quem ousará atacá-lo?”), “decerto alusiva ao carácter universal e insuplantável do Encoberto”, diz Manuel Gandra. Este autor informa ainda que aquela (a única que usava) fazia parte de um total de sete medalhas “todas emblemáticas do seu desígnio de vida”, com figuras e as respectivas legendas latinas significando em português: “Não desces nunca”, “Conquanto me agrade”, “Dá o teu fruto sem o prometer”, “Serpenteio, mas não me desvio”, “Privado de ti, morro”, Não espero, senão de mim mesmo” e “Quem ousará atacá-lo?”. Como Carvalho Monteiro reservava exclusivamente para si esses conceitos metafísicos de lonjura mental, revelando-se insuperáveis e incompreensíveis até para os seus mais próximos, a sua neta D. Maria de Nazaré teve o desabafo próprio de quem não entende: “Era o mais supersticioso que havia”.

De maneira que, à parte o significado iniciático, o leão ficaria tão-só como emblemático da Realeza que Carvalho Monteiro aproveitaria para si da baronesa da Regaleira, atendendo à atribuição da mercê de Moço Fidalgo da Casa Real que lhe fez D. Luís I em 1882. E talvez também e por igual, no contexto mágico das crenças populares concessoras de poderes sobrenaturais a seres e objectos, o leão da Regaleira ficasse com a reputação de afugentar os demónios e de trazer saúde e prosperidade para os locatários e até a toda a vila de Sintra, esta que o poderoso magnata pretendeu adquirir como revela ainda a sua neta: “Ele queria comprar todas as quintas à volta e fazer ali um domínio só seu”.

Tão grande cultura a par de ainda maior espiritualidade, dispõe António Augusto Carvalho Monteiro no patamar de quase Mahatma, ou seja, de “Grande Alma” para a teologia hindu, afim à condição de Homem Perfeito ou Adepto Real. Não quero dizer com isso que o tenha sido mas que houve pretensão a tanto, nem que fosse só como Homem Representativo da Tradição Espiritual Portuguesa fincada em Sintra, facto reforçado na Regaleira por uma figura estranha à iconologia ocidental. Com efeito, aparece na chaminé do palácio (em guisa de escudo armoriado na fachada sul e por cima de uma esfera armilar com um letreiro onde se lê Domvs aedificata ano domini MCMX, “Casa edificada no ano do Senhor [de] 1910”) a escultura de um estranho animal mitológico o qual, com inteira exactidão, corresponde à alegoria hindu do Makara (que estando junto à esfera armilar significa Makara Lusitano, ou por extenso, Casa do Makara Lusitano), termo com que os sábios orientais designam os deuses humanizados como “Grandes Almas” ou Adeptos Perfeitos. Na iconologia védica, o Makara é provido de uma espécie de tromba parecida à do elefante e o qual Varuna, deus do Oceano, monta. É representado com a forma de um animal, possuindo a cabeça e as patas dianteiras de um antílope e a cauda de peixe[47]. É exactamente isso que está esculpido na chaminé do Palácio da Regaleira, tanto como sinal do que Carvalho Monteiro acaso assumia ser, como igualmente indício de ter bebido nas fontes teosóficas dos seus contemporâneos Helena Petrovna Blavatsky e Francisco Stuart Mourão, o visconde de Figanière, numa época em que a Sociedade Teosófica estava em plena expansão na Europa, apesar do orientalismo teosófico ser transposto aqui para os signos da Tradição Espiritual Ocidental, particularmente para o contexto nacional do tema sebástico.

Ainda sobre o Makara, na cosmologia teosófica ele é disposto como a quinta Hierarquia Criadora (segundo a contagem dos Reinos Mineral, Vegetal, Animal, Humano e Espiritual) do Mundo e do Homem, o padrão da perfeição integral deste. Por esse motivo, a estrela de cinco pontas, o pentalfa, marcando o quinto princípio espiritual, é a signa representativa do Makara, chamada na cultura védica Makaram. Em português, Makara significa literalmente “crocodilo”, o animal cuja natureza anfíbia simboliza a condição psicopompa ou intermediária entre o Cosmos criado e o Caos primordial (o Leviathan bíblico). A sua postagem no alto do palácio da Regaleira expressa isso mesmo: a Ordem saída do Caos (Ordo ab Chao), ou por outra, o estado diferenciado nascido do estado indiferenciado. A natureza dúplice do Makara presente às funções mentais e reprodutoras do Homem, por esta mesma razão a mitologia greco-romana correlacionou-o com o deus Cúpido (Kama-Deva nos Vedas), cuja seta inquietante (expressiva da cauda do crocodilo representado no Empório pela constelação do Escorpião, e nisto a seta cúpida será o aguilhão do mesmo) podendo acertar em qualquer um(a), tanto pode despertar o sentimento do mais elevado e puro amor, como a emoção da mais fogosa e intensa paixão. Se a seta será de ouro ou de ferro, tudo depende da motivação e interesse para que pende cada um e cada qual.

Direccionado a norte, o Palácio da Regaleira ostenta antes do padrão com a Cruz de Cristo à entrada onde o visitante é recebido pelo listel “Salvé”, a estranha figura de um animal mordendo a própria cauda: trata-se do ouroboros hermético, motivo do apodo “mansão filosofal” resgatado a Fulcanelli[48]. Com efeito e alguma estranheza geral, por vezes encontra-se na iconologia e literatura teológica cristã a imagem, desenho ou pintura de uma serpente enrolada mordendo a própria cauda. Apresentada assim, é a representação simbólica do conhecimento universal que dispõe o Ser em unidade com o Universo, sendo o sinal remoto que introduz no significado da genealogia ou linhagem a divinis do Cristo, princípio e fim da Igreja Universal, tendo os Profetas por começo e os Apóstolos por final, sendo a Palavra de Deus o elo de ligação presente do Passado (cauda da serpente) com o Futuro (cabeça da serpente). Por tratar-se de um símbolo pré-cristão, para todo o efeito, o conceito de Sabedoria é predominante nele, não só no Cristianismo como em todas as culturas religiosas desde a mais alta Antiguidade.

É chamado tradicionalmente ouroboros, palavra de adopção grega mas oriunda do copta e do hebraico, sendo que ouro significa “rei” em copta, e ob quer dizer “serpente” em hebreu, portanto, “serpente real”, a mesma naha hebraica ou naga hindu, simbólica do hommo serpens indicativo do Iluminado espiritual de quem o réptil, elevado da base do corpo ao alto da cabeça, figurativamente falando, é simbólica da respectiva Iluminação, por o mesmo representar o Fogo Divino chamado pelos orientais Kundalini, o qual a Medicina ocidental da Idade Média e Renascença viria a associar esse calor corporal subindo do cóccix ao crânio à venena bibas (“veneno tragado”, de que fala São Bento de Núrsia) da serpente, cuja mordida venenosa só se cura com peçonha igual, facto que se transporia para o sentido místico de que só uma vivência espiritualizada poderia resultar numa realização espiritual.

Os gregos vulgarizaram a palavra ouroboros, dando-lhe o significado literal de “serpente engolindo a cauda”. Eles receberam essa figura dos fenícios relacionados aos hebreus que, por sua vez, a herdaram do Egipto, onde o ouroboros já aparece numa estela datada de 1600 anos a. C. que retrata o deus Rá, ou da Luz, ressuscitando das trevas da noite, sinónima de morte. Isto reporta ao tema do eterno retorno, da vida, morte e recomeço da existência, facto que também dispõe o símbolo como indicador da reencarnação das almas em sucessivos corpos humanos até alcançarem o máximo da evolução que as torne perfeitas corporal e espiritualmente, tema caríssimo aos povos do Médio e Extremo Oriente. É assim que o acto da serpente engolir-se a si mesma também pode interpretar-se como uma interrupção do ciclo de desenvolvimento humano (representado pelo réptil) para iniciar o ciclo de evolução espiritual (representado no círculo). Pitágoras deu-lhe o sentido matemático de infinito, por a serpente disposta assim configurar o zero, número abstracto utilizado para designar a eternidade que toma forma ou se concretiza quando o ouroboros é figurado a girar sobre si mesmo, representando a actividade universal de um ciclo de evolução assinalado no círculo, desta maneira contendo as ideias de movimento, continuidade, autofecundação e, por consequência, eterno retorno. Fechando-se sobre o próprio círculo, ou seja, mordendo a própria cauda, a serpente evoca a Roda da Vida, da Existência, donde ser a evocação plástica da Criação do Universo por Deus Omnipresente, identificado pelos cristãos gnósticos com o Espírito Santo, cuja Sabedoria revela-O Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, dando-Lhe por expressão máxima na Terra o próprio Cristo. Por este motivo, o ouroboros é associado na literatura gnóstica grega à frase Hen to pan, isto é, “O Todo”, “O Único”, e desde os séculos IV-V foi adoptado popularmente como amuleto protector contra os maus espíritos e as mordidas das serpentes venenosas. Ficou conhecido como Abraxas, nome de deus do primitivo panteão gnóstico que os egípcios reconheciam como Serapis, tendo-se tornado um dos mais famosos talismãs mágicos da Idade Média.

A Alquimia grega cedo adoptou a figura do ouroboros (ou uroboro) que chegou aos filósofos herméticos de Alexandria, com os quais os pensadores árabes aprenderam e difundiram a sua imagem através das suas escolas de Hermetismo e Alquimia que se tornaram conhecidas na Idade Média graças aos cristãos que as procuravam, inclusive havendo registos históricos de alguns membros da Ordem dos Templários, além de outros místicos cristãos, terem-nas procurado no Cairo, na Síria e até em Jerusalém para iniciarem-se nas ciências herméticas, apesar de proibidas pelas autoridades eclesiásticas mais por motivação política a ver com a sobrevivência da secularidade da própria Igreja, do que propriamente com alguma questão teológica.

O ouroboros representa a síntese de todos os elementos da Grande Obra de construção do Universo e do Homem, primeiro “vomitando” de si os elementos metálicos “em estado puro”, e depois, após depurá-los e apurá-los no processo de evolução universal do Ciclo da Vida, “engolindo” esses mesmos elementos já aperfeiçoados, “em estado maduro”, resultado da sabedoria que os tornou de incipientes em sapientes. Por conter a ideia de síntese de todos os elementos manifestados desde o Abismo (Abyssus) da Substância Universal, os hermetistas gregos apodaram o ouroboros de Agathos Daimon, o “Espírito Bom”, expressando a ideia do “Tudo no Todo”, ou seja, os seres vivos como partes do Absoluto. Foi assim que Heráclito comparou o Demiurgo, Deus, a uma “criança a jogar”, dando a ela o nome de Éon, Ciclo de Evolução Universal, e ao jogo de solve et coagula apodou de ouroboros, dessa maneira o período cósmico que vai da criação à destruição do Universo, durante o qual a sabedoria (gnôsis) que se obtém dará o conhecimento necessário para se criar novo e mais amplo Universo, ideia que mantém a solução eterna da Evolução do Criador e das criaturas encontrada no conceito hindu de Manvantaras e Pralayas, ou seja, os períodos de “Actividade” e de “Repouso” universais, em que num se acumula sabedoria pelas experiências múltiplas e noutro se assimila ou digere essa mesma sabedoria, para depois executá-la com maior experiência e exactidão.

No palácio abunda a letra M, por vezes vista envolta em grinaldas de rosas, a qual, além de ser a inicial óbvia de Monteiro, é também a da Mãe de Deus, Maria, em quem o Espírito Santo incarnou como Matéria-Prima, aqui figurada nos melhores materiais com que se edificou a residência. O M e as rosas sugerem igualmente o Roseiral Mariano, nome dado na Idade Média aos tratados de Alquimia genericamente chamados Roseiras dos Filósofos. Tomada como indicativa da décima terceira letra-mãe do alfabeto hebraico, Mem, esta assinala tanto o Eterno Feminino (indicado na vulva humana e geográfica que é a gruta ou cripta, de onde sai a vida e se recolhe a mesma pela morte) como as próprias Águas da Criação marcadas sideralmente por Vénus, a carmelitana Stella Maris, aliás, o planeta afim ao biorritmo da própria Sintra cuja natureza sobretudo feminina Carvalho Monteiro parece ter querido assinalar aqui, ele que, como anteriormente desejou D. João de Castro, queria para si toda a serra.

O facto de dominarem temas evocativos de Santo António, de predominarem alegorias do carvalho e cenas abundantes de montaria nesta propriedade, de maneira alguma são sinónimos do narcisismo desmedido do “ricaço nababo” António Carvalho Monteiro: são antes elementos de heráldica falante que ele assim quis plantar como encómio e perpétuo da memória familiar, motivo justificado no antigo direito romano da sucessão e transmissão hereditária[49], aqui acrescida, por via simbológica, do princípio da transmissão iniciática, crucial para a dispor no patamar privilegiado de linhagem eleita, tema remetendo novamente ao sentido sebástico da Parúsia.

Fernando Martins de Bulhões, o Santo António português doutor da Igreja, é um beato helíaco, solar por seu próprio nome associado ao cóptico Aton, “Sol”; o carvalho, com a equivalência simbólica de templo entre os celtas, é a árvore do fogo e do poder; finalmente, a montaria relaciona-se à supradita tradição dos “santos caçadores”, acontecendo a iluminação espiritual “durante uma caçada”, sinal claro da busca da Transcendência, do Saint Vaisel ou Santo Graal marcado pela presença do “veado carregando a cruz entre as suas hastes”, ou então no “javali indómito”, simbólico da “posse do poder e da sabedoria espiritual”, facto originador de numerosos mosteiros em “enclaves mágicos” tradicionalmente consagrados e reconhecidos[50], como foi o caso notável da Nazaré com a sua “carvoaria” ou “bafometaria” (colégio de estudos corânicos) associada à anterior igreja visigótica de S. Julião, a qual motivou a célebre lenda local do caçador-templário D. Fuas Roupinho, episódio aliás patente num painel de azulejos policrómicos dentro da capela desta quinta.

As referências à caçaria, abundando na Regaleira, vêm a ser transpostas, pelos motivos já descritos, para o sentido de “caçada mística”, um dos principais paradigmas da gnose dos Fiéis de Amor medievais que o maneirista Camões, a seu modo também um Fiel de Amor, não deixou de expressar no seu Auto do Filodemo (1587)[51], obra teatral conhecida de Carvalho Monteiro, o maior bibliógrafo camoniano de sempre, até hoje não superado, sendo tão grande a sua mais que admiração devoção pelo poeta pátrio que até os charutos que fumava eram da marca “Camões”.

Sobre isso, diz Paulo Pereira[52]: “Na obra de Camões, que Carvalho Monteiro conhecia muitíssimo bem, encontra-se igualmente o paradigma da caça, precisamente num dos seus escritos mais curiosos, o Auto do Filodemo. O seu conhecimento por parte do proprietário pode ter feito bascular positivamente o efeito da representação deste acto, como referência subliminar ao universo camoniano e reforço semântico e celebrativo do conjunto.

“Este auto, que foi já objecto de interpretações esotéricas – começando pelo título, com “Filodemo”, que esconde a palavra philo-daimon, “amante do espírito ou da alma” –, trata da caça ao veado ou cervo como forma de demanda prática de uma Filosofia do Amor, simétrica à procura da senhora ou pastora amante.

“Na caça aí empreendida, como parte integrante de uma peça muito complexa, encontramos a personagem do “monteiro”, companheiro do seu senhor, Venadoro. Acerca da nobreza de tal função diz o monteiro, enaltecendo-a: “Aprovada antiguamente / Foi, e muito de louvar, / A ocupação de caçar, / E da mais antigua gente / havida por singular. / É o mais contrário ofício (ao) / Que tem a ociosidade, / Mãe de todo o bruto vício: / Por este limpio exercício / Se reserva a castidade”.

“É ainda o mesmo monteiro que depois se queixa de ter perdido o seu amo na caça: “Perdeu-se por esta brenha / Venadoro, meu senhor, / Sem que novas dele tenha: / Queira Deus que inda não venha / desta perda outra maior. / Contra esta parte daqui / Despós um cervo correu; / logo desapareceu. / Como de vista o perdi, / O gosto se me perdeu”.

“Sem pretender simplificar em demasia este jogo de identificações e cumplicidades, podemos dizer que brenhas existem em profusão no parque do palácio e, neste, frequentes referências à caça, sobretudo em pequenas fontes ou recantos. E não faltará até uma fonte dentro de uma gruta, com uma dama, como que recordando o episódio de Florimena (que canta “O monte e a sua aspereza / De flores se veste ledo;”) quando encontra Venadoro, “com um pote que vai à fonte”.”

Quanto à morte do javali (varâha, em sânscrito, simbólico da Autoridade Sacerdotal) sob a lançada do monteiro, equivale à conquista do Pólo Espiritual que está assinalado na torre mística, consequentemente, vale pela integração no Centro Primordial oculto, até então pressentido e doravante possuído[53]. Posto assim, o monteiro prefigura-se em pleno acto iniciático inscrito na chamada Iniciação Mariana ou Senhorial, herança das antigas tradições guerreiras celtas que igualmente demandavam o domínio do corpo e da alma como fórmula activa de Iniciação Transcendente e que era representada na caçada ao javali ou ao porco selvagem, prosseguida como arte venatória como exclusiva da nobreza medieval, cedo tornada sinónima de conquista da Sabedoria pela morte ou domínio da mundanidade, da condição profana assinalada no dito animal.

Relacionada com a montaria anda a falcoaria (o falcão era a ave caçadora predilecta da nobreza medieval, com isso vindo a representar a casta Militar, Cavaleiresca ou Kshatriya e até a ser associada à fénix, a ave mitológica expressiva da ressurreição em que se crê o guerreiro tombado na guerra justa, usando a expressão de São Bernardo de Claraval no seu Louvor da Milícia do Templo[54]), ambas artes lúdicas de preparação pela caça para o exercício efectivo da guerra, motivo da sua ligação estreita à Iniciação Kshatriya, cuja expressão superior se vai encontrar na Arte Real de “guerrear” os elementos naturais que é a Alquimia.

O motivo do dragão, lagarto, serpente, etc., presente na iconologia hermética da Quinta Regaleira remete para a “caçada hermética” do “monstro fabuloso”, isto é, para o domínio do Fogo Sagrado no próprio Homem e na Natureza, latente no imo de ambos, o qual, como já disse, os orientais chamam Kundalini e os ocidentais de Fogo do Espírito Santo, representado na Virgem Maria que é a Padroeira dos Philosophos per Ignium, os Filósofos do Fogo, nome tradicionalmente dado aos Alquimistas, detentores da Arte Real de marear os elementos subtis e físicos da Natureza, demandando a maior Perfeição, e também possuidores da Arte Sacerdotal que acompanha a devoção e entrega a Deus pelo serviço à Humanidade. A ambas chamavam Ergon e Paraergon, Teurgia e Alquimia, Opera Magna ou Grande Obra de aprimoramento do espiritual e do humano onde um não prescindia do outro, acasalando na mais sublime das núpcias químicas a mente e o coração, a cultura e o carácter, vivendo na Terra as venturas do Céu. Serge Hutin chama-as de Taumaturgia Alquímica, adiantando[55]: “O que constitui a originalidade da Gnose Alquímica é o facto de ela se aliar estreitamente a uma Taumaturgia, a operações práticas realizadas sobre a “Matéria-Prima” da Obra. Existe um rigoroso paralelismo entre o processo interno de Iluminação e as operações materiais que são, simultaneamente, a sua “simbolização” e “confirmação” prática. Ao mesmo tempo que é iluminado pelo conhecimento que salva e se opera nele a “transmutação” mística, o Adepto contempla, no Ovo Filosófico, a operação pela qual o Princípio Luminoso pode ser extraído da Matéria em que está “cativo” e tornar-se, desse modo, susceptível de transfigurar esta última. Fazendo isso, o Alquimista contempla uma manifestação do Fogo Divino da Vida Universal”.

A Alquimia (matriz da Química moderna) fez parte das ciências tradicionais ou esotéricas que a Igreja Católica tolerou relativamente num dos seus três aspectos, a saber: a Externa ou Alquimia Metálica, portanto, laboratorial e física; a Interna ou Alquimia Mística, a ver com a mudança espiritual dos estados de consciência do homem, e era esta que a Igreja tolerava (como se viu pelas práticas filosóficas de Santo Agostinho e Santo Alberto Magno, por exemplo); finalmente, a Arte Magna, a mais perfeita, onde simultaneamente à transmutação da Matéria dava-se a transformação da Alma, sendo esta a preferida de todos os verdadeiros Alquimistas.

A Alquimia processa-se por duas vias, chamadas Via Húmida e Via Seca. A primeira é um caminho de experimentações metálicas graduais, lentas mas seguras, sempre com a presença de um casal, cujo elemento principal nessas operações é a água que se ferve num fogo intensificado gradualmente, à medida que o crisol da Matéria-Prima aparece no fundo da retorta. A esta fase chama-se Anunciação. A Matéria-Prima é a Primordial, ausente de metais impuros, e é com ela que se obtém a Pedra Filosofal, chamando-se este caminho para a fábrica da Pedra de Crisopeia, “obtenção do Ouro”, tanto místico como metálico. Enquanto na Via Húmida se passa primeiro pela “obtenção da Prata”, chamada Argiopeia, na Via Seca não: o caminho é directo para a Crisopeia e o elemento dominante é o fogo, com o Alquimista operando sozinho abreviando o tempo para alcançar o seu fim, o que não deixa de ser muito arriscado. A Via Seca é representada pela árvore seca com nós, estes os «nós» (nidhanas) da Alma que o Adepto do Fogo vai «desatando» de maneira radical ou ascética, ou seja, procurando alcançar a Iluminação espiritual no mais breve prazo de tempo possível, resultado assinalado na obtenção externa do Ouro alquímico.

A colagem dos processos das operações alquímicas, representadas desde símbolos e emblemas astrológicos e mitológicos a episódios específicos dos Antigo e Novo Testamentos, principalmente aqueles onde domina a presença feminina, seja como heroína ou como santa, ou ambas, recua ao ano 1100 na Europa, quando as universidades árabes passaram a divulgar a ciência alquímica, tendo-as frequentado místicos e sábios judeus e cristãos, adaptando os símbolos e alegorias herméticas a passagens demarcadas das escrituras sagradas, levando a leitura e interpretação dessas para o campo da heterodoxia característica da Tradição Primordial. Na Europa, foram precisamente os beneditinos, e depois os cistercienses seus descendentes, os primeiros a aceitar a ideia de ligar a Bíblia à Alquimia, facto que no mundo bizantino já era aceite desde Zózimo de Panápoles, que cerca do ano 300 d. C. deu início à Escola Alquímica em Alexandria e foi o primeiro a ser chamado Filósofo do Fogo. Ele havia recolhido esses conhecimentos herméticos junto dos sábios da Ásia, na China e sobretudo na Índia.

Ora, encontra-se no piso superior do Palácio da Regaleira um pequeno aposento possuído das especificidades de um laboratorium alquímico. Neste compartimento só entrava o proprietário, como contam os seus descendentes, o qual pega com outra contingência octogonal identificada como o scriptorium, também exclusivamente reservada a Carvalho Monteiro. Socorrendo-me da Cabala Fonética – que o Islão apoda poeticamente de “Fala dos Pássaros”, identificados com os Anjos – poderei muito bem transpor scriptorium e laboratorium para o sentido do ora et labora dos hermetistas beneditinos e cuja frase originou o filólogo laboratório, isto é, labor+oratório, expressão estática do universo alquímico. Ademais, em guisa de reforço da ideia desse mesmo universo, saindo desses aposentos para subir ao belveder por cima, vêem-se os seus colunelos decorados com conchas de caracol, que é a expressão simbólica da evolução gradual da Grande Obra do Supremo Demiurgo. Nos colunelos aparecem as efígies dos mais que certos inspiradores de Carvalho Monteiro: Ulisses (sem certeza mas com a certeza de ter sido o inspirador lendário da Ulisseia homérica), Platão ou Séneca (também sem certeza, porque um era filósofo e o outro legislador, saberes em que C. M. era formado, isto se não for a sua própria efígie), Gualdim Pais (como possibilidade, que foi o Grão-Mestre Templário donatário da Vila de Sintra no século XII), Luís de Camões (com toda a certeza, o épico da Portugalidade laureado), e Beatriz (com menos certeza mas certo de ter sido a musa amorosa de Dante Alighieri). Não faltam ainda, nos beirais sobre os terraços do edifício, motivos escultóricos decisivamente herméticos: a águia com seios de mulher, o coelho com escudo vazio, o morcego críptico, o canguru austral, etc. Neste expositório representa-se indiscutivelmente a Tradição Hermética da qual a Alquimia é o corpo, o Corpus Hermeticum.

A passadeira que cobria o soalho de acesso ao pressuposto laboratório era vermelha e tinha em banda, alternadas, a esfera armilar manuelina (insígnia de Hermes Trismegisto, consignado “selo hermético” da retorta adoptado pelos cabalistas judaico-cristãos portugueses dos séculos XIV-XV) e a cruz de Santo André, aspada, dentro de um oval. Este motivo seria aproveitado para o desenvolvimento posterior da tese destinada a vincular Santo André tanto com a “Terra Branca”, como com a presença “regular” de alguma maçonaria neste espaço, com descuro de todo o cenário simbológico envolvente, o que obriga a dizer umas quantas palavras sobre o assunto. Com efeito, a antiga Albion, “Terra Branca”, epíteto da Virgem Branca ou da Assunção (Alba, em gaélico), foi o nome dado à primitiva Escócia, cujo termo latino Scotia aparece pela primeira vez na Crónica Anglosaxónica do século X, generalizando-se o nome na Baixa Idade Média. Ora, Alba tinha por símbolo mítico o unicórnio mas que, com a cristianização, foi substituído por Santo André, até hoje Orago desse país. Este Apóstolo, padroeiro dos construtores e arquitectos, junto ao nome primitivo “Terra Branca”, foi assumido como o mestre-construtor do país dos scotis ou “homens livres”, nome gaélico dado tanto aos escoceses como aos habitantes da Hibérnia, actual Irlanda. Talvez por isso, no século XVIII a Maçonaria Especulativa tenha originalmente se cognominado de Escocesa e posto a Arte Real (simbolizada pelo leão) sob o padroado de Santo André (substituto do unicórnio)[56].

André provém etimologicamente do grego Andrós, significando “homem”. Andrós é uma contracção de Alexandrós, correspondendo a “defensor dos homens”. Ora Santo André relaciona-se com a ideia da ressurreição alquímica da ave Fénix, queimada sobre uma fogueira feita de dois lenhos em aspa, tal como a cruz em que ele foi crucificado em Patras, ele que fora discípulo de João Baptista e depois se tornara apóstolo de Jesus Cristo, razão porque na interpretação sinóptica da Escritura é considerado intermediário entre o Anunciador e o Anunciado, entre a Palavra da Anunciação (Prenúncio) e a Palavra da Revelação (Verdade)[57].

A forma oval com a cruz de Santo André representa o “Ovo d’Ouro” (Hiranyagharba, em sânscrito), a Substância Universal da qual nasceram todos os elementos da Matéria de que é formado o Universo, cujo movimento contínuo é dado pelo impulso do Pramantha ou “Cruz Cíclica” no centro da qual está a “fénix”, antes, Andrós ou o Demiurgo repartindo em ciclos a Vida Universal.

Por o conceito de ressurreição estar presente no simbolismo de Santo André, é que este tornou-se expressivo da própria Magnus Opus para os praticantes da Alquimia laboratorial, sobretudo para os que estão na sua fase derradeira, prestes a conquistar o “Ouro Filosófico” extraído da igualmente “Pedra Filosófica”: a realização da Crisopeia. Este período final da Grande Obra fica sempre assinalado pelo próprio templo como lugar de realização divina; talvez ou certamente por isso, observa-se na traseira exterior da capela da Regaleira, na direcção do acesso ao interior da torre, a sua goteira artisticamente esculpida dando a ideia de “forno alquímico” ou athanor, no formato singular de castelo cerrado assente sobre ondados (não só representativos da sua função de goteira mas igualmente expressivos da mareação dos elementos), sob o qual se oculta esta goteira bizarra, que é uma boca escancarada com a língua de fora, simbólica da Revelação de Deus. O facto do athanor alquímico assumir a forma de um castelo ou, mais commumente, de uma torre, significa que as transmutações procuradas nas operações metálicas humanas e naturais encaminham-se todas no sentido da elevação, tanto da água ao ar, como do chumbo ao ouro ou do peso carnal à leveza espiritual.

O pressuposto de ter havido aqui prática hermética por Carvalho Monteiro, sob que pretexto fosse, certamente não colidiria com a sua confissão religiosa e, ainda mais certo, estaria dentro do cenário simbólico de uma Alquimia Nacional, se assim pode dizer-se, posto os símbolos nacionais dominarem os restantes, inclusive aos mais herméticos ou esotéricos. A exaltação pátria está patente na antiga “sala do bilhar”, fortemente remodelada por Waldemar d´Orey cerca de 1950, que a alterou sensivelmente. As suas paredes estavam pintadas de folhas de arminho em losângulos onde alternadamente estavam inscritas as expressões latinas épicas Festina lente (“Apressa-te devagar”), atribuída pelo cronista Suetónio ao imperador Augusto (27 a. C.), e Macte animo (“Toma coragem”), verso do poeta Estácio ligeiramente modificado por Virgílio (Eneida IX, 641). Na fácies da chaminé do fogão de sala, “lareira medieval” projectada por Luigi Manini e lavrada por João Machado, mestre conimbricense, em pareceria com José da Fonseca, cerca de 1907, o mesmo Manini desenhou o brasão monogramado de António Augusto Carvalho Monteiro, que Waldemar d´Orey substituiria pelo brasão de Sintra. As armas do proprietário encabeçavam os brasões parietais de quatro cidades relacionadas com a sua pessoa, todas pinturas do arquitecto-cenógrafo italiano que felizmente sobreviveram ao germanismo d´Orey: Lisboa (onde residiu, o político), Coimbra (onde estudou, o intelectual), Porto (onde foi accionista da Bolsa, o empresário) e Braga (onde a sua mulher viveu, o religioso). Lisboa também pode ser interpretada como a cidade de Ulisses, herói solar, destinada a capital do V Império sonhado pelos Maiores da Portugalidade, Carvalho Monteiro incluído. Coimbra como a cidade da Rainha Santa Isabel e onde também Pedro Vicente da Torre se fixaria. Porto como o primitivo burgo de Vímara Peres, que no ano 868 lançaria os caboucos geopolíticos do que viria a ser o Portugal monárquico. Braga como o Primaz hispânico da Igreja Católica, religião professada pelo senhor da Regaleira.

Nas sancas parietais correm duas galerias iconográficas, sobre fundo de ouro, de vinte reis e quatro rainhas das várias linhagens dinásticas da monarquia portuguesa – Borgonha, Avis e Bragança – como programa pátrio delineado por Carvalho Monteiro e Luigi Manini em 1907, e concretizado pelo pintor ferreirense António Francisco Baeta. Os retratos reais, possivelmente inspirados na obra de Pedro de Mariz que foi a primeira obra historiográfica ilustrada com os retratos dos reis de Portugal[58], seriam pretexto para um artigo regionalista de Jorge Matos[59] que lhes deu a identificação seguinte:

Galeria leste. Dinastia de Borgonha: D. Afonso Henriques (1139-1185), D. Sancho I (1185-1211), D. Afonso II (1211-1223), D. Sancho II (1223-1248), D. Afonso III (1248-1279), Santa Isabel de Aragão, D. Inês de Castro, D. Dinis (1279-1325), D. Afonso IV (1325-1356), D. Pedro I (1356-1367), D. Fernando I (1367-1383. Dinastia de Avis: D. João I (1385-1433). Galeria oeste. Dinastia de Avis: D. Duarte (1433-1438), D. Afonso V (1438-1481), D. João II (1481-1495), D. Manuel I (1495-1521), D. João III (1521-1557), D. Filipa de Lencastre, D. Luísa de Gusmão, D. Sebastião (1557-1578). Dinastia de Bragança: D. João IV (1640-1656), D. Afonso VI (1656-1683), D. Pedro II (1683-1706), D. João V (1706-1750).

Mais concorde com Manuel Joaquim Gandra e a tese sebástica quase de certeza afim ao pensamento gnóstico-nacional de Carvalho Monteiro exposta nesta hoje chamada “sala dos reis”, reproduzo uns quantos excertos de uma sua interessante monografia editada[60]:

“Em suma: o duque de Bragança, que não se revia detentor dos sinais apontados pelas profecias, jamais parece ter-se creditado, nem como a 16.ª geração atenuada de Afonso Henriques, nem como o Capitão e Supremo Imperador alegado por elas[61], apenas aceitou ser aclamado (consoante ditava a tradição nacional), na condição de Libertador dos portugueses do seu cativeiro, suposto exórdio ou acto precursor do regresso de D. Sebastião e prelúdio da ventura que o seu advento representaria para Portugal.

“Para promover tal advento maravilhoso, e face ao exposto, tornam-se compreensíveis os motivos pelos quais D. João IV abdicaria em favor de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa!

“Assumindo-se, doravante, como um mero regente de Portugal, inaugurou o Interregno identitário nacional (que interrompeu Portugal), prognosticado em Ourique, lançando um anátema ou maldição sobre herdeiros e sucessores (bem como sobre os respectivos primogénitos masculinos) daqueles, incluso monarcas, que violassem o compromisso de vassalagem[62].

“Atento à mensagem implícita no acto joanino, António Augusto Carvalho Monteiro[63] dar-lhe-ia corpo na denominada Galeria dos Reis que se observa na Sala de Bilhar da Mansão.

“Aí, além de 4 rainhas (Santa Isabel, D. Inês de Castro, D. Filipa de Lencastre e D. Luísa de Gusmão), são figurados 16 monarcas (acham-se ausentes o Cardeal D. Henrique, bem como os Filipes, reis, ilegítimo, o primeiro, e intrusos, os espanhóis), o derradeiro dos quais, D. Sebastião (ostentando Coroa Imperial), encerra o ciclo monárquico português. Os quatro Braganças que lhe sucedem (D. João IV, D. Afonso VI, D. Pedro II e D. João V), destituídos de Coroa, não passaram, por conseguinte, de regentes do Reino.

“Enfim, aqui chegados, o leitor poderá legitimamente suspeitar ser minha convicção firme a adesão de António Augusto Carvalho Monteiro ao ideário Sebástico. Sim, de facto, além de coleccionador das fontes do Sebastianismo (Luís de Camões e Camoniana, incluídos), Carvalho Monteiro foi convicto adepto sebástico.

“A profissão de fé na Tradição Profética Lusíada foi-nos legada pelo próprio em dois impressivos monumentos, um destinado a ser exibido, outro absolutamente do foro íntimo: um brasão de armas e uma medalha emblemática, respectivamente.

“O campo do brasão de armas, concebido para acompanhar a Galeria dos Reis, é integralmente ocupado pela letra S, de Sebastião…

“A medalha em ouro que trazia ao pescoço juntamente com outras seis, todas emblemáticas do seu desígnio de vida, apresenta um leão entronizado, acompanhado pela divisa Quem ousará atacá-lo, decerto alusiva ao carácter universal e insuplantável do Encoberto…”

Retrato de D. Sebastião no Palácio da Quinta da Regaleira

O motivo por que a partir de D. João IV, com excepção de D. João V (também identificado ao Encoberto Imperador do Mundo, e talvez por isso), os reis e rainhas de Portugal nunca mais usaram coroa, merece explicação mais detalhada obrigando a recuar ao período da fundação histórica de Portugal em Guimarães, como já explicitei numa outra obra[64], certamente clareando ainda mais qual seria o sentido real de “religião pátria” para Carvalho Monteiro, posto o autor estar morto e só restar os sinais dos seus interesses quando vivo.

O culto vimaranense primitivo do tellos draconis (dragão telúrico) teve o seu espaço ocupado pelo do Sancte Spiritus ou Creator Spiritus ao qual o país foi consagrado, na pessoa de Maria, propagada pela escolástica eclesial assegurando o Marialis Cultus, que na sua expressão erudita vem a ser a Iniciação Senhorial característica da Honra da Ordem de Cavalaria, na qual eram iniciados os futuros cavaleiros que deviam ser tão puros e honrados quanto pudessem, à semelhança do que é a Mãe do Céu dando de si a Matéria-Prima com que se fez o Mundo e, no particular, Portugal. Razão de dizer-se que o Espírito Santo toma forma feminina em Maria ainda que, essencialmente, Ele participe das duas naturezas do Filho e da Mãe, esta que iconograficamente O traz sempre em Seus braços, no regaço ou no colo, como demonstrativo velado da natureza dúplice ou estado andrógino do Santo Espírito.

Cristo fica participando da natureza do Pai como Espírito, e Maria como Mãe ou Matéria em estado Santo ou de Santidade participa da natureza de Seu Filho, a quem oferece ao Mundo. Donde se conclui:

Se o Conde D. Henrique de Borgonha sonhou ou visionou a Divindade precipitar-se em forma cometária flamejante no rio separando a Galiza do Minho, que o levou e à progénie que para aqui trazia, no mesmo sonho ou visão, a exclamar: “Porto Graal! Porto Graal! Porto Graal!”, este o símbolo maior do Divino Espírito Santo, tanto como objecto sagrado como estado de consciência santificada, já o seu filho Afonso Henriques ofereceu o reino sonhado ao Divino ignorando a humanidade de Roma, inclusive Cristo tendo-lhe aparecido no Cruzeiro nas vésperas da Batalha de Ourique, decisiva para a independência definitiva da terra sua e de Deus que lhe garantiu os favores do Céu e a bênção eterna à gente portucalense.

Mais tarde, a Rainha Santa Isabel de Portugal e Princesa de Aragão, oficializa o Culto do Divino acompanhado das prerrogativas sobre-humanas da Páscoa Rosada em que se traduz o célebre “Milagre das Rosas”. Independência ameaçada, “Terra de Luz” perigando apagar-se, eis aí no século XIV o “Galaaz de Portugal”, o Santo Condestável D. Nuno Álvares Pereira, depois Frei Nuno de Santa Maria, levando D. João I, em vésperas da Batalha de Aljubarrota, a ter a visão exaltada de Nossa Senhora da Oliveira acompanhada de São Bernardo de Claraval. Mais uma vez, o Céu abençoou a terra pátria por Deus escolhida, e o perigo foi vencido. Finalmente, após os “60 anos fatais” da profecia, correspondendo ao tempo de ocupação Filipina de Portugal, D. João IV libertou o país da mesma e ofereceu a Nossa Senhora da Conceição, em Vila Viçosa, a Coroa dos Reis nacionais, investindo-a, além de Mãe dos Céus que já era, Rainha de Portugal. Desde então, nunca mais as rainhas portuguesas (e até os reis) tornaram a usar coroa, que não concebiam dignidade para tanto comparando a sua míngua humana à grandeza divina da Mãe Soberana, a mesma que sob este título é aclamado na antiga terra árabe de Alolieh ou Loulé, no Algarve, terra que tão-bem conheço das horas passadas da infância e adolescência.

Conclui-se que, desde a primeira hora, Portugal está consagrado ao Divino Espírito Santo em Cristo e Maria sob o evoco Conceição, e, seja por qual e misteriosa maneira for, a Sua protecção nunca escusou aos seus filhos e ao desta “Terra de Luz”, por certo a caminho de um Império de Espírito que também é o Seu, abraçando a toda a Terra numa unidade de Amor e Graça.

O dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria foi proclamado pelo Papa Pio IX, em 1854, com a bula Ineffabilis Deus. Esta solene definição pontifícia foi resultado do desenvolvimento da devoção popular aliada a intervenções papais e infindáveis debates teológicos. O calendário romano já incluíra a festa em 1476, mesmo existindo desde o século VII a sua celebração na Igreja Oriental e que cedo entrou na Hispânia através do rito visigótico, paleocristão. Em 1570, Pio V publicou o novo Ofício e, em 1708, Clemente XI estendeu a festa, tornando-a obrigatória em toda a Cristandade.

Em Portugal, o culto foi oficializado sob feição patrística por D. João IV, primeiro rei da dinastia de Bragança, assim aclamado no 1.º de Dezembro de 1640, quando se iniciava a Festa da Imaculada Conceição. Seis anos depois, com a aprovação das Cortes de Lisboa, o monarca dedicou à Virgem Imaculada todo o Portugal e o seu vasto Império de então, fazendo-a sua Rainha e Padroeira, e fê-lo através da Ordem honorífica por ele fundada no Alentejo: a Real Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, de que fez parte o comendador Francisco Monteiro, pai de Carvalho Monteiro, e em cuja igreja matriz está a imagem do Orago e Soberana celeste da pátria comum à lusitana gente[65].

O acto piedoso oficial de D. João IV foi confirmado pelo Papa Clemente X, que aprovou a solene declaração régia de 25 de Março de 1646. Esta fora rezada de joelhos e em voz alta pelo monarca na capela real dos Paços da Ribeira, em Lisboa, nos termos seguintes:

Dom João, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, de aquém e de além-mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia, etc., faço saber aos que esta provisão virem, que sendo ora restituído por mercê muito particular de Deus nosso Senhor à Coroa destes meus Reinos e senhorios de Portugal.

Considerando que o Senhor Rei Dom Afonso Henriques meu progenitor e primeiro Rei deste Reino, sendo aclamado e levantado por Rei, em reconhecimento de tão grande mercê, de consentimento de seus vassalos, tomou por especial advogada sua a Virgem Mãe de Deus Senhora nossa, e debaixo de sua sagrada protecção e amparo Lhe ofereceu todos seus sucessores, Reino e vassalos com particular tributo em sinal de feudo e vassalagem.

Desejando eu imitar seu santo zelo, e a singular piedade dos Senhores Reis meus predecessores, reconhecendo ainda em mim avantajadas e contínuas mercês e benefícios da liberal e poderosa Mãe de Deus nosso Senhor, e por intercessão da Virgem Nossa Senhora da Conceição.

Estando ora juntos em Cortes com os três Estados do Reino, lhes fiz propor a obrigação que tínhamos de renovar e continuar esta promessa, e venerar com muito particular afecto e solenidade a festa de sua Imaculada Conceição. E nelas, com parecer de todos, assentamos de tomar por Padroeira de nossos Reinos e senhorios a Santíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição, na forma dos Breves do Santo Padre Urbano VIII, obrigando-me a haver confirmação da Santa Sé Apostólica, e Lhe ofereço… à sua Santa Casa da Conceição sita em Vila Viçosa, por ser a primeira que houve em Espanha desta invocação, cinquenta cruzados de ouro em cada ano, em sinal de tributo e vassalagem.

E da mesma maneira prometemos e juramos com o Príncipe e Estados, de confessar e defender sempre (até dar a vida sendo necessário) que a Virgem Maria Mãe de Deus foi concebida sem pecado original… esperando com grande confiança… que por meio desta Senhora (Deus) nos ampare e defenda de nossos inimigos para glória de Cristo nosso Deus, exaltação da nossa Santa Fé Católica Romana, conversão das gentes e redução dos hereges.

E se alguma pessoa intentar coisa alguma contra esta nossa promessa… queremos que seja logo lançado fora do Reino; e se for Rei (o que Deus não permita) haja a sua e nossa maldição, e não se conte entre nossos descendentes… e esta minha provisão se guarde no Cartório da Casa de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, e na nossa Torre do Tombo.

Dada nesta nossa cidade de Lisboa, a 25 de Março de 1646 – El-Rei.

Na antiga sala de jantar do Palácio da Regaleira, hoje chamada “sala de caça”[66], encontra-se uma lareira monumental, obra do escultor Rodrigo de Castro, onde se vê um monteiro com dois cães, um galgo e um pastor, defronte para um javali, no extremo da sala, obra do mesmo autor. Representa a demanda, a quête, a aventura do Iniciado protegido pelo cão, simbólico do guardião mas também do fogo (do lar, donde “lareira”). Sendo demanda simbólica com sentido hermético, neste sentido o galgo vem a designar o “solve” e o pastor o “coagula”, estando de lado a figura dum encapuçado: será o Filósofo do Fogo, o Superior Incógnito. A escultura monumental da montaria ao veado como se vê transversalmente nesta lareira, igualmente obra de Rodrigo de Castro, denuncia o dito Filósofo do Fogo como o próprio Augusto Carvalho Monteiro, posto que na relação axional entre o monteiro e o carvalho do baixo-relevo incrustado na lareira alude-se à pessoa do proprietário, cujas iniciais AACM aparecem envoltas no cordame que cinge o baixo-relevo, unificando a emblemática obra em torno da personalidade do seu encomendante[67].

No piso superior do palácio, o aposento que se julga ter sido o da biblioteca de Carvalho Monteiro, tem o seu tecto decorado por um grande painel com a linda pintura de três deusas. São as representações tradicionais, inspiradas na mitologia greco-latina, das três Parcas, Normas ou Graças do Mundo que o Cristianismo colaria às três Virtudes capitais: , Esperança e Caridade ou Amor cujo facho jamais se apaga. Tais Ragas (“Normas”), as mesmas da Divina Comédia de Dante, assistem às três tradicionais e iniciáticas Margas (“Caminhos”): Dever (Karma-Marga – Físico, Fé), Devoção (Bhakti-Marga – Emocional, Esperança), Inteligência Iluminada (Jnana-Marga – Mental, Caridade). Contudo, a despeito de alguns verem na pintura as “Três Luzes da Maçonaria” (Força, Sabedoria e Beleza) dando-a como prova flagrante da simpatia ou até mesmo afiliação maçónica de Carvalho Monteiro, recentemente Manuel Gandra veio afirmar que a mesma foi adquirida pela família d´Orey em 1950, logo, não fazia parte do imobiliário artístico do proprietário original.

O motivo da Trindade repete-se em igual número de portais monumentais neomanuelinos (dois abrindo para varandas sobre a rua e um para a escadaria levando ao cimo da torre de prazer ou miradouro) numa sala vizinha à do referido painel, e que talvez fosse o motivo para os d´Orey terem-no colocado aí, mesmo quase de certeza desconhecendo o significado desses portais nesta sala tendo a um canto uma lareira feita de ferro forjado, decorada por uma cabeça de leão flamejante dentro de um trevo (donde três). O portal encimado por uma cabeça de leão e decorado nos colunelos por bustos de meninos, sinónimos de pureza e virgindade, representará a Idade do Filho, o “pequeno Leão” ou Regulus, em latim, expressão menor do Grande Rei ou Divindade Suprema prefigurada por Cor Leonis (“Coração de Leão”), devido à posição central que ocupa no Empório como superior a todos os astros e signos. A estrela Regulus ou Régulo era considerada a coroa da constelação dos reis, e por isso o “novo Leão jubado” associava-se à tribo de Judah e ao próprio Cristo como o Messias aclamado Senhor do Mundo, o Leão Ardente da Nova Jerusalém[68]. O portal oposto é encimado por uma cabeça menino cercada de motivos florais, que pode muito bem ser alusão simbólica da Idade do Espírito Santo. No portal central, por cima de uma esfera armilar cercada de cordões de marear, vê-se Adão e Eva como a parelha primordial nascida na primeira Idade do Pai, o Senhor das Alturas (marcadas pela ascensão ao miradouro). Como andrógino separado pela macieira do Paraíso, em cujo tronco se enrola a serpente, figuração do Pecado Original como perversão do Mental caído no Sexo, tem-se aí o casal progenitor do Género Humano assumido e identificado pelas letras no tecto da sala, ou seja, um P e dois AA entrecruzados, casados, iniciais de Perpétua (nome da mulher de Monteiro) e do nome próprio do proprietário (António Augusto). Revela-se nisto a heráldica falante cujo sentido místico aqui associa-se abertamente ao tema translatio imperii, que no século XII foi concebido como as Idades do Mundo (os portais que abrem para uma nova visão da existência) pelo abade cisterciense da Calábria, Joaquim de Flora[69].

Por fim, a capela. Privada, exclusiva da família, o proprietário freguês ou filius Ecclesiae, “filho da Igreja”, não se poupou a mimoseá-la com os mais finos requintes e particularidades eruditas do simbolismo cristão entre 1904 e 1910, com tão grande e singular riqueza artística que a deixaria como um dos mais expressivos edifícios religiosos neomanuelinos de Sintra e do país.

Encimada pela cruz pátea dada como a primacial da Cristandade no Oriente e que a partir do século XII a Ordem do Templo adoptaria como insígnia com o mesmíssimo sentido, a capela parece reservar assim o sentido de primaz salvífico para a cristianíssima família Carvalho Monteiro. Esta intenção devocional é reforçada pelo motivo escultórico da Anunciação, por cima da entrada no templo, no qual o Padre Eterno aparece abençoando por cima de dois Anjos abrindo um listel com a frase latina retirada do Evangelho de S. Lucas (considerado o evangelista mariano): Ecce Ancilla Domini, “Eis [aqui] a Serva do Senhor” (Lucas, 1:38). A “Serva do Senhor” é a própria Igreja, sendo o motivo do nascimento pelo baptismo em Maria, expressiva da assembleia cristã, o mesmo que receber a Salvação, que é Cristo Filho daquela. A Mãe é a Igreja e o Filho é o Sacramento. Para o ministério dos sacramentos teria que haver sacerdote, posto que a capela só a é quando há capelão, e havendo-o – possivelmente da igreja de Santa Maria de Sintra de que Carvalho Monteiro era freguês assíduo – foram encomendados a Luigi Manini os vários desenhos para a execução das alfaias litúrgicas, o que ele fez, tendo viajado em seguida, em 1908, para Itália, indo confiar a sua realização à oficina de Giuseppe Guelfi, em Milão.

As alfaias realizadas segundo o estilo da ourivesaria portuguesa, concebidas para aparelharem harmoniosamente com o estilo da capela, foram as seguintes: crucifixo, cálice, patena, galheta, moldura, sineta, lampadário, píxide para as hóstias, o hostiário, naveta em forma de caravela para o incenso, cibório e turíbulo. De entre todas sobressaía a custódia neomanuelina, imitação da Custódia de Belém (século XVI), com pé hexagonal, encimada pela esfera armilar onde assenta a cruz (que no desenho de Manini era uma cruz pátea), abrindo-se no repositório destinado a receber o Santíssimo Sacramento, obra muito rica que Guelfi, orientado por Manini, terminou em 1911. Quando a Quinta da Regaleira foi vendida a Waldemar d´Orey, a família Carvalho Monteiro recolheu e levou consigo todas as alfaias da capela e, em 1956, doou ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima essa rica custódia, e fê-lo certamente porque o seu patriarca, António Augusto, revelara-se crente nas chamadas aparições marianas na Cova da Iria, não tendo recusado encomiá-las em privado e em público, como soube junto das fontes familiares. Adianto ainda que foi a esposa de Carvalho Monteiro, Perpétua Augusta, senhora muito devota, a ter o papel relevante da decoração do templo, sobretudo na rica paramentária (toda ela executada com requinte, nas cores litúrgicas – branco, vermelho, roxo e negro – em tecido adamascado e lavrado a ouro), contando para isso com a orientação de um clérigo próximo da família.

Laterais à entrada no templo, estão postadas em dois nichos as estátuas em tamanha natural de Santo António de Lisboa e de Santa Teresa de Ávila, bem podendo ajustar-se os seus nomes aos de António e Teresa, esta como a mãe do proprietário, mas sobretudo revelando ao mesmo tempo que guardando (como guardas da entrada na Casa do Senhor), os ideais patrístico e matrístico da Igreja levados a efeito, respectivamente, pela Ordem Franciscana e pela Ordem Carmelitana, nas quais esses santos ibéricos foram as sumidades máximas, ele como doutor eclesial, expressando o pensamento superior, e ela como visionária profeta, manifestando o sentimento exaltado, ambos ao mesmo nível ou em perfeito equilíbrio, tal qual devem estar a cultura e o carácter, de maneira a possibilitar alcançar na Terra das venturas do Céu.

O desenho e modelação das estátuas da capela são do ilustre antigo professor da Escola de Desenho Industrial de Coimbra, António Augusto Gonçalves, tendo sido a execução das esculturas decorativas da autoria do seu discípulo e professor na mesma Escola, habilíssimo artista mondeguino, João Machado, a quem se deve o baixo-relevo do púlpito, “Lava-Pés de Cristo aos Apóstolos”, por sua vez distribuindo pelos seus assistentes outros trabalhos: António Gomes realizou o sacrário e João das Neves fez o baptistério, postado à esquerda de quem entra, com a Pomba do Espírito Santo, símbolo da Revelação de Deus como Orago do Sacramento do Baptismo, por cima.

Na fácies da pia baptismal está esculpido o busto de António Augusto com um leão por detrás, revelando-se novo motivo messiânico conformado ao significado do baptismo, singularmente particularizado na figura do patriarca da família Carvalho Monteiro, parecendo querer reproduzir (ou evocar o padroeiro S. João Baptista da terra natal de seu pai, Lagos da Beira) a acção pastoral do Baptista no deserto: “Então vieram até ele Jerusalém, toda a Judeia, e toda a região circunvizinha ao Jordão. E eram por ele baptizados no rio Jordão, confessando os seus pecados” (Mateus, 3:5-6). É o que se denominou baptismo por imersão, como foi praticado durante largos séculos, sendo simbólico da purificação e da renovação. Era conhecido no meio Zadokita e Essénio (assim como o ritual do “lava-pés”, ou da humilhação sacerdotal), como no Judaísmo em geral, tomando-o como rito de passagem, especialmente do nascimento e da morte. No entanto, os editores da Bíblia de Jerusalém observam, a esse propósito, aquilo que diferencia o baptismo de João dos outros ritos de imersão: tinha um objectivo já não só ritual mas sobretudo moral; não se repetia, o que lhe dava o carácter de uma iniciação; por fim, tinha carácter escatológico, introduzindo o baptizado no grupo dos que professavam uma espera diligente do Messias que estava para vir e que constituíam, por antecipação, a sua comunidade.

Quaisquer que fossem as modificações trazidas pela liturgia das diversas confissões cristãs, o rito do baptismo continua a incluir dois gestos ou duas fases de notável alcance simbólico: a imersão e a emersão. A imersão, hoje reduzida à aspersão, é por si só rica de muitos significados: indica o desaparecimento do ser pecador nas águas da morte, a purificação através da água lustral, o retorno do ser à fonte de origem da vida. A emersão revela a aparição do ser em estado de graça, purificado, reconciliado com a fonte divina de vida nova.

A análise mais detalhada do rito católico do baptismo faz ressaltar o riquíssimo simbolismo dos múltiplos gestos e objectos que intervêm na administração desse sacramento: imposição das mãos, insuflação, sinais da cruz, tradição do sal da sabedoria, abertura da boca e das orelhas, renúncia ao demónio, recitação do Credo, unção de diversos óleos de exorcismo e de Eucaristia, colocação da vestimenta branca e do círio aceso. Todos os passos desta cerimónia iniciática traduzem a dupla intenção de purificar e de vivificar. Revelam também a estrutura folheada do simbolismo traduzido numa acção efectiva: em primeiro plano, o baptismo lava o homem da sua sujidade moral e outorga-lhe a vida eterna (passagem da morte à vida); em segundo plano, evoca a morte e a ressurreição de Cristo: o baptizado assimila-se ao Salvador, a sua imersão na água simboliza a colocação no túmulo, e a sua saída a ressurreição; em terceiro plano, o baptismo liberta a alma do baptizado da sua sujeição ao demónio, introduzindo-o na Milícia de Cristo ao impor-lhe a marca do Espírito Santo, pois esta cerimónia consagra um compromisso de servir à Igreja. Não opera uma transformação mágica, antes confere a força de desenvolver-se, pela fé e pelos actos, no sentido do Evangelho. Toda esta liturgia simboliza e realiza, na alma do baptizado, o nascimento da Graça, princípio interior de aperfeiçoamento espiritual[70].

O trabalho da talha de todo o imobiliário da capela ficou a cargo de mestre Júlio da Fonseca, que com os seus irmãos José da Fonseca e Luís da Fonseca ficaram a ultimar os trabalhos da Regaleira depois da partida de Luigi Manini em 1912, desgostoso com o que via em Portugal (regicídio, deposição da monarquia, revoluções permanentes, etc.). Para o pavimento, Manini realizou esboços iniciais em grafite e um belo desenho final aguarelado, os quais foram levados para Itália para serem realizados pelo atelier Castaman de Veneza, assim como o painel do altar-mor. À firma italiana Corvaya Bazzi & C.ª devem-se igualmente os painéis de vidro feitos em 1910, simulando técnica de vitral, desenhados por Manini de acordo com a vontade de Carvalho Monteiro e colocadas por Júlio da Fonseca.

O interior da capela condiz com o seu exterior: sobre o fundo alvo das suas paredes, o encanto das suas formas e ornamentos revelam a mensagem devota de sabedoria e piedade, mas sobretudo a esperança solene num supremo e derradeiro momento a advir, o Advento.

Dentro, logo à entrada sobre o nártex[71], está o Triângulo com o Olho da Divina Providência ao centro, designando Deus como Três Pessoas distintas mas sendo Uma só em essência, assentando sobre a Cruz pátea em resplendor, simbólica da Cristandade triunfante. Desta maneira, ao transpor o nártex o crente é, simbolicamente, além de abençoado, reconhecido como fazendo parte da Milícia do Senhor, com direito a privar da sua Casa. Este Delta luminoso pode muito bem sujeitar-se a interpretações pitagóricas e platónicas afins às primitivas doutrinas gnósticas, e como está assente sobre a Cruz tanto basta para desmentir as pretensões avulsas a identificá-lo como triângulo maçónico, obviamente podendo estar em esplendor mas de certeza sem a Cruz. Além disso, querer que haja um delta maçónico numa capela católica vale tanto como dizer que “Maomé morreu de indigestão de toucinho”…

Aqui, sim, para afastar de vez pretensões inválidas simbólica e historiograficamente, por não passarem de lúdicas avenções, poderei arrematar com um pouco de cada um dos três poemas escritos por Fernando Pessoa em 9 de Junho de 1935, St.º António – S. João – S. Pedro, publicados por Yvette Kace Centeno[72]:

Santo António:

Santo António és portanto
O meu santo,
Por isso quero que passes
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Catholico, apostholico e romano.
(…) deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
(…) Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei Antonio –
Isso sim.

São Pedro:

Parece que com essas barbas brancas
Por um phenomeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.
(…) O Santo são as chaves, e não tu.

São João:

Eu a julgar-te até catholico,
E tu sahes-me maçom.
Bem, ahi é que há espaço para tudo,
Para o bem temporal do mundo vario.
Que o teu sorriso doure quanto estudo
E o teu cordeiro
Me faça sempre justo e verdadeiro,
Prompto a fazer falar o coração
Alto e bom som
Contra todas as fórmulas do mal,
Contra tudo o que torna o homem precario.
Se és maçom,
Sou mais do que maçom – eu sou templário.
(…) Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal.

Sobre o altar ao fundo, os escultóricos de dois anjos, turibulário (“o que agita o turíbulo para incensar”) e turiferário (“o que leva o turíbulo”), ladeiam o painel central representativo da Coroação da Virgem, donde a capela herda o nome (escusando o atributo de Santíssima Trindade que hoje lhe é dada gratuitamente, ainda assim repleto de intenções alheias aos cânones deste espaço sagrado), reforçado pelo M de Maria cinzelado na pedra branca sobre a ara com a pomba por cima. Feito em mosaico italiano, o painel representa a Pomba do Espírito Santo baixando e de cada lado três querubins (do hebraico kerub, “tesouro”, e cherub, “guardião”, logo, “guardiões do tesouro” que é “real segredo”, aqui por certo a ver com o mistério da eleição da Igreja de Cristo), os quais testemunham Jesus Cristo sentado no trono de glória coroando a mulher sem halo de santidade, nisto tanto podendo ser Santa Maria antes da sua eleição como Mãe dos fiéis que é a Igreja, como também Maria Madalena, a «pecadora arrependida» que na iconologia cristã é a única mulher a não apresentar halo de santidade. Seja como for, como “tesouro esposal” ou “tesouro filial”, Maria tem o reconhecimento da coroação pelo Verbo Vivo, e este é representado pelo querubim soprando sobre a coroa o ânimo provindo do Céu.

A Coroação da Virgem equivale à sua proclamação como Rainha dos Céus e da Igreja, a incarnação do Espírito Santo, cujo poder se manifesta pelos sacramentos, sobretudo o da conversão que é o do baptismo, seja pela água da confissão, seja pelo fogo da sabedoria ou entendimento. Neste último sentido, a Coroação da Virgem Maria equivale ao seu reconhecimento como Shekinah, a “Presença Real de Deus na Terra”, tema caríssimo à Cabala judaica incorporado no Cristianismo como a mesma “Coroação da Virgem”. A palavra “coroa” é originalmente muito próxima dessa outra “corno”, e exprimem a mesma ideia: a de elevação, poder, iluminação. Uma e outro elevam-se acima da cabeça e são simbólicas do poder e da luz. Este será o significado da coroa crística imposta a Santa Maria pelo seu Divino Filho, pois só se chega a Ele por Ela, tal como só por Ele se chega a Deus Pai. Por esta razão, Maria tinha que ser reconhecida como Rainha do Mundo e do Céu.

A origem do tema “Coroação da Virgem” tem por base o último episódio da vida de Santa Maria, sendo a sequência da Assunção ou Dormição. A sua base bíblica é encontrada no Cântico dos Cânticos (4:8), nos Salmos (44:11-12) e no Apocalipse (12:1-7). O título de “Rainha do Céu” (Regina Coeli) dado a Nossa Senhora remonta, no mínimo, ao século XII e a São Bernardo de Claraval. O tema foi atraído a partir da ideia da Virgem Maria como o “Trono de Salomão”, que é o trono onde a Mãe se senta com o Menino no regaço (e que é o significado do trono feito de carvalho dentro desta capela). Desde então o trono foi assumido cada vez mais como assento de realeza, retratando a corte celestial espelhada na corte terrena. Por fim, a “Coroação de Maria” é o quinto mistério glorioso do Santo Rosário, cujo fruto é a perseverança, a confiança na intercessão da Mãe de Deus. A Igreja Católica celebra o evento em 22 de Agosto.

A Coroação da Virgem influiu na tradição medieval do sacramento do casamento com Deus das religiosas que contraíam votos perpétuos, durante o qual o bispo colocava uma coroa na cabeça da virgem e proferia as palavras sacramentais: “Recebe um sinal de Cristo sobre a cabeça, a fim de que te tornes sua esposa. E se permaneceres nesse estado, serás coroada pela eternidade”.

A expressão mais notável da casada com Cristo por certo será Maria Madalena, a que O ungiu com perfumes e bálsamos, reconhecendo a sua realeza divina de Ungido ou Christus. Pelo enigma com que as próprias escrituras sagradas envolvem a sua pessoa muito próxima, de João Evangelista, póstero de João Baptista, Madalena, por todos predicados que a envolvem, inclusive o de “torre” presente no seu nome hebraico, veio a tornar-se a expressão venusta da iniciação críptica ou subterrânea (também pela vida eremítica que levou numa gruta no Sul de França após ter emigrado da Palestina para aí, segundo a Lenda Áurea como retrato figurativo da disseminação pastoral dos primeiros tempos dos Apóstolos e Padres Apostólicos, começo da Sucessão Apostólica), alegoria gnóstica aplicada à transmissão regular de um saber esotérico, secreto e heterodoxo, com isso ligando-se à Igreja “Secreta” de S. João Baptista, que ainda é a dos Padres do Deserto, aqui não como terreno árido mas como área sagrada vedada ao ordinário do mundo profano, destinada ao exercício da arte sacerdotal. Aliás, a cabeça «bafomética» de São João Baptista revela-se adiante e acima da cruz boleada que orna o altar.

Adiante do painel central sobressai o M encimado pela Pomba do Espírito Santo num lindo rendilhado de mármore alvo, numa espécie de dossel, pálio ou baldaquino, reforçando e destacando a importância e primazia do espaço sagrado. O dossel imóvel é igual ao dossel móvel, um pálio, que é um toldo com postes sob o qual se abriga a principal dignidade religiosa durante as procissões de maior pompa. É herança da primitiva jupa com que os antigos hebreus, no seu êxodo pelo deserto do Sinai, abrigavam a Arca da Aliança, e foi assim que este elemento que figurou depois no antigo Templo de Salomão, ficando como símbolo da antiga Aliança de Deus com o seu Povo, a Humanidade por Ele escolhida para O representar na Terra. Aqui, nesta capela da Regaleira, o dossel representa a Aliança de Cristo com Maria, a Igreja ou Assembleia, por meio da celebração da Santa Eucaristia onde se revela o Espírito Santo.

O baldaquino, dossel ou pálio, seja imóvel ou móvel, é sempre símbolo de protecção, seja oferecida ou seja recebida por aquele que se encontra debaixo dele. Se se tratar de um rei, ele oferece-a aos seus súbditos recebendo-a do Céu. O rei é o centro de irradiação de um núcleo humano e como tal é a representação do Centro do Mundo, do mesmo Rei do Mundo – representado aqui por Cristo – irradiando como Sol Vivo para os seres viventes em seu redor, a comunidade dos crentes. Daí o uso do dossel para tornar manifesta essa dignidade e esse poder. O dossel rectangular (que aqui é o formato do altar) tem relação simbólica com a Terra e os bens terrenos, portanto, com a Realeza ( encómio de exaltação divina da monarquia pelo “supra-monárquico” Carvalho Monteiro) e o Poder Temporal, donde o apodo de Pedro (a Petra ou Pedra Angular com que se construiu o edifício social da Igreja) como “príncipe dos Apóstolos”, sendo Cristo o Rei. O dossel circular (aqui expressado pelos círculos fechando as cruzes no chão, cerceadas de estrelas de cinco pontas) expressa os bens celestes vertidos do próprio Céu, com isso representando o Sacerdócio e a Autoridade Espiritual.

Por esse motivo, o Alcorão dispõe o simbolismo do baldaquino (al-rafraf) em relação com o Paraíso, pelo que os baldaquinos supremos designam a morada da Glória de Deus, ou seja, por onde Ele se manifesta desocultando-se através da graça da Fé e da Sabedoria, facto que a religião judaica chama Shekinah, “manifestação real de Deus”, e o Cristianismo de Revelação do Espírito Santo. Por tudo isto, ainda, os budistas e os hindus consideram o baldaquino como o objecto principal do Chakravarti, o “Rei do Mundo”, função que a sua catequese naturalmente atribui a Buda e a Vishnu. Isto por essa peça representar o Trono de Deus, por onde Ele se revela ao Mundo através do monarca ou do pontífice canonicamente investidos para o efeito.

As quatro colunas do baldaquino (aqui assinaladas nas ombreiras laterais do painel extensivas às duas bases do altar, onde figuram Santa Isabel, prima da Virgem Maria, e o Apóstolo S. Marcos) representam os quatro princípios naturais (Ar, Fogo, Água, Terra) que animam e sustêm o Mundo, facto que a iconologia religiosa por vezes assinala em quatro figuras angélicas com os nomes tradicionais de São Miguel, São Gabriel, São Rafael e o Santo Custódio (Ariel). Ao centro fica o altar como “quinta coisa” ou quintessência, para onde se dirige o foco da Fé e onde a Fé toma forma através da celebração sagrada.

Com efeito, para o altar, microcosmo catalizador do Universo sagrado, convergem todos os gestos litúrgicos, todas as linhas arquitectónicas. Reproduz em miniatura o conjunto do templo e do Universo no seu significado transcendente ou divino. No recinto consagrado, devidamente preparado e aparelhado, é onde o sagrado transcendente se condensa com a intensidade máxima através do sacerdote ou o que exerce o “sacro ofício”, isto é, o que realiza o sacrifício sagrado sobre o altar ou ara, ou junto a esta. Por isto o altar (de altum e altus, donde altare, em latim, “elevado, alto”) é o ponto mais elevado em relação a tudo que o rodeia no espaço do templo. Igualmente reúne em si o simbolismo de “Centro do Mundo”, ou seja, o ponto central donde irradia a Luz da Fé e para onde conflui a devoção da assembleia. Como centro activo da espiral ou passos graduais da celebração eucarística, procurando a santificação dos corpos e a assunção das almas dos fiéis, desta maneira sugere e influi sobre a espiritualização progressiva do Mundo e do Universo. O altar representa todo o templo e o momento em que o ser se torna sagrado por meio de uma operação sagrada que o divinizará, nem que seja só durante os instantes da celebração.

Por isso, o altar constitui o “ponto geométrico” onde confluem e se concentram as energias do Céu e da Terra. Estas representam-se no que o Judaísmo chama Debir Hekal, as três colunas ou pilares do Poder da Vontade, do Amor-Sabedoria e da Actividade Criadora de Deus (também representados nos três degraus tradicionais que levam ao estrado do altar), que no altar-mor da igreja católica ficam assinaladas nas duas colunas laterais ao sacrário. Essas colunas representam a Sabedoria de Deus indicada na linha vertical do altar ao Céu, e do Amor de Deus apontado na linha horizontal do altar à Terra ou assembleia dos fiéis. O altar é, com efeito, verdadeiramente a cabeça e o coração do templo, o seu espaço mais sagrado a partir do qual se organiza toda a sua estrutura, e onde simbolicamente finaliza o percurso horizontal (assimilado à passagem pelo labirinto), começando a ascensão vertical que conduz aos Mistérios mais profundos da Iniciação Mística, onde a Igreja de Pedro finda para iniciar a Igreja de Cristo nessa viagem axial para o Paraíso, a Jerusalém Celeste ou o Mundo Espiritual. O altar pertence assim ao simbolismo da “passagem” ou “trânsito” de uma realidade a outra, neste caso, da realidade condicionada e horizontal (limitada pelo tempo e o espaço) à realidade incondicionada e vertical, que é divinamente eterna e infinita.

Quem entra na capela, vê no seu pavimento ladrilhado primeira a Cruz da Ordem do Templo e após a Cruz da Ordem de Cristo sucessora daquela em Portugal, como se significasse estar em chão sagrado onde o Cristianismo presente é todo ele com sentido exclusivamente nacional, e que todo o recheio artístico trazido de Itália para aqui seria uma espécie de vazar Roma e encher Lisboa, que é dizer, Portugal, o que vai de encontro ao sentido camoniano da translatio imperii como se lê no Canto 6, 7, de Os Lusíadas:

Via estar todo o céu determinado
De fazer de Lisboa nova Roma;
Não no pode estorvar, que destinado
Está doutro Poder que tudo doma.

Isso vai de encontro ao tema do Quinto Império sob o Orago da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, tema caríssimo ao padre António Vieira no século XVII e que tão poucos têm compreendido por não saberem separar o sebastianismo vermelho (político e reaccionário) do sebastianismo branco (erudito e simbólico)[73]. Já nos meados dos anos 80 do século findado eu apontava haver sinais disso mesmo dentro desta capela, inclusive sendo também eu quem os apontou em primeira mão à dr.ª Denise Pereira da Silva, entidade responsável na Fundação Cultursintra, na altura em que a Câmara Municipal de Sintra acabara de comprar a propriedade. Pois bem, eles estão na balaustrada do coro onde vêem-se enrolados em cordame de marear o III e o V em letras romanas. III para o Espírito Santo e V para o Império…

Segundo o esquema escatológico do Padre Vieira (1608-1697), os cinco Impérios do Mundo (correspondendo às Yugas, Idades ou Ciclos tradicionais)[74] são os seguintes:

SATYA-YUGA – IDADE DE OURO – I IMPÉRIO ASSÍRIO
TETRA-YUGA – IDADE DE PRATA – II IMPÉRIO PERSA
DWAPARA-YUGA – IDADE DE BRONZE – III IMPÉRIO GREGO
KALI-YUGA – IDADE DE FERRO – IV IMPÉRIO ROMANO
KRITA-YUGA – IDADE DE OURO – V IMPÉRIO PORTUGUÊS

Esses 4+1 Impérios descritos por Vieira, aliás, de relações próximas com a Cabala judaica através do seu amigo Menasseh Ben Israel, o madeirense Manuel Dias Soeiro[75], inspiraram-se no episódio descrito no Antigo Testamento que relata o sonho de Nabucodonosor, interpretado pelo profeta Daniel, no qual o rei sonhou com uma estátua gigantesca com cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, as ancas de bronze e as pernas metade de ferro e metade de barro, destruída por uma pedra que logo se transformou numa alta montanha enchendo toda a Terra. Diz Daniel (2:44-45): “O Deus dos Céus fará aparecer um Reino que jamais será destruído e cuja soberania nunca passará a outro povo. Foi o que pudeste ver na pedra que se desprendia da montanha sem intervenção de mão alguma, e que reduzia a migalhas o ferro, o bronze, a argila, a prata e o ouro”. Logo concluindo Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco[76] que “a misteriosa Pedra, que derrubou a Estátua, representa o V Império de Cristo”, a irromper no Ocidente Médio e Extremo, isto é, em Portugal e no Brasil.

António Vieira reconhecia com verídicas as profecias do sapateiro do Trancoso, Gonçalo Anes Bandarra, referentes ao destino privilegiado de Portugal, e deu realce à 1.ª quadra do III Corpo de Trovas do dito profeta popular, reconhecendo nela o esboço das três Idades do Mundo segundo Joaquim de Flora (Idade do Pai – Israel; Idade do Filho – Roma; Idade do Espírito Santo – Lisboa):

Em vós que haveis de ser o Quinto
Depois de morto o Segundo
Minhas profecias fundo
Nestas letras que vos aqui pinto.

Nas variantes VOS e AQUI da quarta linha, condensa-se o mistério[77]. Desdobrando-as em palavras latinas, tem-se:

VOS – Vis (Força) / Otium (Ócio) / Scientia (Ciência).
AQUI – Arma (Armas) / Quies (Sossego) / Intellectus (Inteligência).

Com isso, fica-se perante o esquema de Flora e o seu modelo explicativo da História da Humanidade, onde a trasladação dos impérios acompanha a sucessão das Pessoas da Santíssima Trindade, explicação para a qual ele distingue dois tipos de inteligência: a “segundo a Letra” (exotérica) e a “segundo o Espírito” (esotérica).

1. Segundo a Letra ou típica: histórica – moral – alegórica.

2. Segundo o Espírito ou atípica: tropológica – contemplativa – analógica.

Aquele que “será o Quinto”, para o padre António Vieira é o Quinto Império do Mundo, Império simultaneamente espiritual e temporal, tendo como “Cabeça de Tibes” a Lusitânia[78]. Como disse, os Impérios anteriores haviam sido o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano, sendo o Português o derradeiro, incluindo no espaço lusófono o Brasil, este que já antes, em 1598, Pedro de Mariz chamara de “Nova Lusitânia”. Certamente Carvalho Monteiro, brasileiro nado, deteria todos estes conhecimentos da translatio imperii, ou não tivesse mandado colocar o III e o V na balaustrada do coro da sua capela, onde um vitral retrata sete cabeças de meninos (os seus sete netinhos) em torno de um triângulo dourado, expressivos dos “Virgens Celestes”, chamados Kabires na cultura assíria e Kumaras na hindu, cerceando o Deus Único e Verdadeiro manifestado como Três Hipóstases que são as mesmas “Pessoas” da Trindade.

Duas portas de carvalho laterais ao altar, dão acesso à torre e à sacristia, respectivamente, configurando os seus postigos a Grã-Cruz da Ordem do Santo Graal vertida na de São Bento de Avis. Na pequena sacristia, vê-se a escultura do Agnus Dei postado sobre o Livro da Revelação, estando esculpidos a um canto os vários instrumentos da Paixão do Senhor, com destaque para o Santo Cálice envolto num “laço de amor”, além da imagem de uma senhora em atitude de exaltação ao céus (a qual me intriga se será Santa Teresa, Santa Madalena ou Santa Noémia) com o olhar dirigido ao alto da torre sineira, e um novo vitral com a Cruz da Ordem de Cristo e o IHS desfeche o compósito onde claramente predomina a formula mentis lusitanea como base da “religião pátria”, aqui com o óbvio sentido gnóstico onde se dá primazia tanto ao Apocalipse como à Paixão segundo São João.

Na capela, do lado direito de quem entra, uma escadaria estreita em caracol conduz à cripta, de ambiente mais ascético com o seu despojamento austero. Feita em abóbada de berço com paredes pintadas de branco, além do seu chão ladrilhado em xadrez só apresenta uma pia de água benta e um altar ao fundo com uma cruz franciscana. Por esta cripta tem-se acesso ao jardim cuja entrada está vedada por um portão gradeado ostentando um pentagrama ou estrela de cinco pontas, cujo significado já dei quando se abordou Lagos da Beira e a propriedade de Quintais por motivo do seu portão com igual símbolo geométrico. No corredor subterrâneo que leva da cripta ao jardim há uma mina aberta no ventre da serra que se destinava a canalizar a água para a capela e a fonte exterior ao dito portão. Não foi terminada pela simples razão de entretanto ter-se aberto uma nova conduta, a que fornece água à fonte que alimenta o jardim dianteiro ao palácio.

Esta cripta serviu de câmara ardente a António Augusto Carvalho Monteiro, na sequência da sua morte ocorrida no Palácio da Regaleira em 25 de Outubro de 1920, facto que a própria neta D. Maria de Nazaré Monteiro confirmou-me pessoalmente, e depois de ter estado em vigília toda a noite, no dia seguinte o seu corpo foi levado daqui para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, fechando-se assim o ciclo de vida do homem mais enigmático que Sintra e o país conheceram nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do imediato. Mas ficou a sua memória eterna, como eterna parece ser a mensagem deixada neste “jardim de fadas” que é a Quinta da Regaleira.

 

NOTAS

 

[1] Vitor Manuel Adrião, Dogma e Ritual da Igreja e da Maçonaria. Editora Dinapress, Lisboa, 2000.

[2] Segundo a narrativa hagiográfica (cf. Jorge Campos Tavares, Dicionário de Santos. Lello & Irmão – Editores, Porto), Maurício de Agaune (22 de Setembro, mártir, terá sido o chefe da legião tebeia encarregada de combater os bagaudas (gauleses que, entre os séculos III e V, se revoltaram contra a ocupação romana) no tempo do imperador Maximiano Hércules. Como recusasse, com outros soldados cristãos, a participar num sacrifício, foi massacrado com os seus companheiros. Este massacre terá tido lugar em Agaune-en-Vallais, nos fins do século III. Dele escaparam alguns cristãos, entre eles Santo Urso, São Gereão e São Vitor. Iconograficamente é representado muitas vezes como negro (por confusão com São Mauro, o Africano, monge mártir do século III, que era negro). Veste armadura de cavaleiro, tem lança, espada ou um estandarte, e apoia-se no escudo. Raramente se apresenta a cavalo. Por confusão de dus (chefe) com duque, às vezes figura com uma coroa ducal na cabeça.

[3] A Árvore de Jessé é a representação da árvore genealógica de Jesus a partir de Jessé, pai do rei David, aparecendo o seu nome citado no Antigo Testamento, particularmente em Isaías, 11:1-3: “Porque brotará um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará”. Motivo frequente na arte cristã entre os séculos XII e XV, a Árvore de Jessé aparece em inúmeros manuscritos, pinturas, vitrais, talha decorada e esculturas de madeira e de pedra, sendo a sua representação mais antiga conhecida datada de 1086, no Codex Vyssegradensis. Nessas reproduções, Jessé surge reclinado ou adormecido, com uma árvore a crescer do seu corpo, sendo os antepassados de Jesus, de acordo com a Bíblia, são descritos nos galhos da árvore, juntamente com os profetas e o próprio Cristo no topo. Na igreja de Santa Maria de Olivença, fundada pela Ordem dos Templários nos inícios do século XIII, está a maior e mais monumental representação da Árvore de Jessé  não só da Península Ibérica como de toda a Europa.

[4] D. Luís Gonzaga de Lacerda, O selo medieval de Coimbra e o seu simbolismo esotérico. Separata da Revista Armas e Troféus, Lisboa, 1979.

[5] Leonor Figueiredo, Monteiro Milhões, o nosso “Luís da Baviera”. Jornal “Correio da Manhã”, 29 e 30.1.1985.

[6] O Annuario da Universidade de Coimbra no Anno Lectivo de 1866 para 1867 (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1866), no capítulo “Faculdade de Direito” para o 1.º ano da 3.ª cadeira de “História e princípios gerais de Direito Civil Português”, na página 34 dá o número, nome e morada do cursante: “30 António Augusto Carvalho Monteiro, filho de Francisco Augusto Mendes Monteiro, natural do Rio de Janeiro, império do Brasil – Couraça de Lisboa, n.º 28”.

[7] José Lobo d´Ávila Lima, Meio século de vida coimbrã. Revista Illustração Portugueza, 22, 1.º semestre, 2.ª série, p. 687, Lisboa, 1906.

[8] Maria Regina Dias Baptista Teixeira Anacleto, Arquitectura Neomedieval Portuguesa, 1780-1924, volume I. Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Coimbra, 1997.

[9] Maurice J. Ettinghausen, Rare Books and Royal Collectors: memoirs of and Antiquarian Bookseller. Simon and Schuster, New York, 1966.

[10] The Portuguese Manuscripts Collection of the Library of Congress: A Guide. Compiled by Christopher C. Lund and Mary Ellis Kahler. Washington, Library of Congress, 1980.

[11] J. Mimoso Barreto, Carvalho Monteiro – Mecenas da Cultura. Cadernos de Museologia, Associação Portuguesa de Museologia, Colóquio APOM/85 (Extracto das Actas), Sintra – 1986.

[12] Manuel J. Gandra, Colecção Portuguesa I e II da Biblioteca do Congresso (subsídios para a sua história). Centro Ernesto Soares de Iconologia e Simbólica, Mafra, Abril de 2012.

[13] Consoante informação constante de um Memorandum do Bibliotecário da DCL, datado de 21 de Março de 1929.

[14] Carta de Maurice Ettinghausen remetida, em 19 de Março de 1929, a Herbert Putnam, 8.º bibliotecário da DCL (1899-1939).

[15] Librarian of the Congress, Report of the Librarian of Congress for the fiscal yaer ending June 30, 1930, Washington, 1930, p. 54-55 [DCL: Z733. U57A]. Desta aquisição a estatística anual apenas consigna 12000 volumes entrados na DCL. Uma nota manuscrita apensa à correspondência trocada entre a DCL e a Maggs Brothers, bem assim como o Annual Report – Division of Accessions 1928-29, registam a oferta.

[16] Leonarda Gil da Gama, anagrama de Maria Madalena Eufémia da Glória, nasceu em Sintra a 17 de Maio de 1672 e terá morrido por volta de 1750. Ainda com 16 anos incompletos entrou a professar no Convento de Nossa Senhora da Piedade da Esperança de Lisboa, feminino franciscano da Ordem dos Frades Menores da Província de Portugal da Observância. Entre 1733 e 1749 fez imprimir, pelo menos, cinco obras de literatura monástica onde o virtuosismo barroco atinge o seu esplendor, em loas a santos e santas, em louvor da religião e de visões sagradas tidas pela própria. Os seus livros são muito raros por nunca terem sido reeditados, excepção feita a uma antologia organizada por Mendes dos Remédios, em 1914, publicada em Coimbra com prosa e versos de Leonarda Gil da Gama.

[17] Denise Pereira, Paulo Pereira, José Anes, Quinta da Regaleira – História, Símbolo e Mito. Fotografias de Nuno Antunes. Edição da Fundação Cultursintra, Sintra, 1998.

[18] Revista Municipal de Lisboa, 2.ª série, n.º 2, 1982.

[19] Leonor Figueiredo, Monteiro Milhões, o nosso “Luís da Baviera” – Quem era o homem que queria fazer de Sintra terra das mil e uma noites. Jornal Correio da Manhã, 30.1.1985.

[20] É tradição mais oral que documental o facto do Casal “Três Marias”, na Praia das Maçãs, vizinho da Vivenda “Rafaela” de Alberto Totta, ter sido a casa de praia de António Augusto Carvalho Monteiro, que a mandou construir para as netas (?) que tal como ele aí veraneavam, segundo informação disponibilizada por Waldemar d´Orey.

[21] Existem duas fotografias muito interessantes e significativas que retratam um grupo de presos políticos monárquicos na Penitenciária de Coimbra três anos após a implantação da República. Ambas de 1913, a mais importante delas no contexto histórico é a que, além de identificar os detidos, trabalho (17×23 cm) da “Photographia União – Avenida Navarro – Coimbra”, de 27.10.1913, tem uma dedicatória à “Exma. Sra. Dona Luísa da Costa Correia de Sampaio e Mello como homenagem pela protecção dispensada aos presos políticos”. Tratava-se, portanto, de uma lusignan do ramo português próxima da família Carvalho Monteiro.

[22] Conceição e Silva Júnior (João Paulo), in Varões Assinalados, 1909-1911. Publicação humorística bimensal de Francisco Valença, director e proprietário da mesma.

[23] Revista Arquitectura Portuguesa, números 8/9. Lisboa, Agosto e Setembro de 1917.

[24] Ainda em Sintra, em 1890 Luigi Manini terminou as pinturas decorativas da capela privada e salões do Chalé Biester e começou o projecto da Vila Sassetti. Também em Sintra, em 1897 realizou o projecto arquitectónico da casa de Lima Mayer, e em 1902 projectou a casa de Vicente Monteiro, amigo e antigo colega de carteira de Carvalho Monteiro na Universidade de Coimbra.

[25] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal (Templários e Templarismos), volume VIII. Edição Círculo de Leitores, Rio de Mouro, Agosto de 2005.

[26] Denise Pereira, ob. cit.

[27] Cebes Tebano, Tábua ou Quadro da Vida Humana. Tradução de António Teixeira de Magalhães, introdução e notas de Manuel J. Gandra. Centro Ernesto Soares de Iconologia e Simbólica, Mafra, Abril de 2012.

[28] José Anes, Digressão Hermética por uma Mansão Filosofal Portuguesa, o «Palácio Milhões» em Sintra. Revista “Vária Escrita”, n.º 1, Janeiro / Junho de 1994, Sintra.

[29] Manuel J. Gandra, Colecção Portuguesa I e II da Biblioteca do Congresso – Livros maçónicos. Centro Ernesto Soares de Iconologia e Simbólica, Mafra, Abril de 2012.

[30] Sintra, 2000.

[31] Dando de barato os reiterados anacronismos produzidos pelos proponentes da tese maçónica, nenhuma das fontes alegadamente apontadas como determinantes na concepção e desenho da propriedade constou da tão bem apetrechada biblioteca de António Augusto Carvalho Monteiro, o que não deixa de ser, concomitantemente, paradoxal e sintomático.

[32] O nome de António Augusto Carvalho Monteiro não consta (nem tão pouco o de Giuseppe Manini) de nenhum dos ficheiros de qualquer das obediências maçónicas portuguesas ou brasileiras activas durante o período correspondente ao da sua vida (1848-1920). Cf. M. Borges Grainha, História da Franco-Maçonaria em Portugal (1733-1912), Lisboa, 1913; Oliveira Marques, Dicionário de Maçonaria Portuguesa, Lisboa, 1986, 2 volumes; Joaquim Gervásio de Figueiredo, Dicionário de Maçonaria, São Paulo, 1978.

[33] Vitor Manuel Adrião, O sagrado e o profano na Quinta da Regaleira. Jornal de Sintra, sexta-feira, 28 de Fevereiro de 1997.

[34] Victor Belém, Fernando Pessoa versus Aleister Crowley. Exposição de foto-ficções, foto-colagens e objectos. Quinta da Regaleira – 12 a 21 de Julho de 1996, Festival do Monte da Lua, Sintra.

[35] Vitor Manuel Adrião, Sintra, Serra Sagrada (Capital Espiritual da Europa). Editora Dinapress, Lisboa, Abril de 2007.

[36] Se Teosofia significa em grego “Sabedoria Divina”, Gnose tem significado idêntico como “Sabedoria” do Supremo Demiurgo de que o gnóstico procura tomar conhecimento, equivalendo a luz da Revelação (Gnosis). Sendo o Gnosticismo uma corrente filosófica sincrética, ele veio a mimetizar-se com o Cristianismo a partir do ano 100 d. C. através de Cerinto, que fundara uma corrente gnóstica com elementos cristãos e essénios e que durou praticamente até meados do século IV, constituindo a vertente heterodoxa do Cristianismo Primitivo. Depois feneceu sob as diversas acusações papais de heresia face à ortodoxia da doutrina imposta, mesmo assim conseguindo sobreviver a título particular e até colectivo mas sempre privado, donde o onomástico esotérico, isto é, “reservado, privado, oculto”. A corrente gnóstica mais cristianizada foi a siríaca-egípcia derivada das influências platónicas, cedo se infiltrando no Catolicismo e moldando o pensamento de muitos católicos que não viam haver realmente conflito entre o confessional e o sapiencial, a catequese e a gnose, entre o pensamento confessional e o pensamento mistérico. Este parece ter sido o caso de António Augusto Carvalho Monteiro, igualmente resgatando, por via do panteão mitológico greco-romano, ideias do chamado Gnosticismo Pagão ou não-cristão, anterior a este, tendo origem na Pérsia e Babilónia, as quais transporia para o jardim da Quinta da Regaleira por via da estatuária que o decora.

[37] Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos. José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1990.

[38] Aelredo di Rievaulx, L´Amicizia Spirituale. Fonti Cristiani per il terzò millenio, Roma, 1927.

[39] Jacobo de Vorágine, La Leyenda Dorada, 2 volumes. Tradução directa do latim por José Manuel Macías. Alianza Editorial, Madrid, 2005.

[40] O sentido de assunção ao alto da torre é o mesmo da subida de Dante ao Paraíso, ou de Vasco da Gama ao cume da Ilha dos Amores; pelo contrário, a descensão configura a ida ao seio da Terra, seja no sentido cemiterial, seja no sacrificial mas sagrado da morte do profano e ressurreição do iniciado no Centro do Mundo, motivo apenas acessível a quem conheça o segredo da abertura da porta da torre, isto é, quem possua o conhecimento superior que lhe possibilite realizar hermeticamente o V.I.T.R.I.O.L. (Visita Interiora Terris Rectificando Occultum Lapidem), ou seja, “Visita o interior da Terra e rectificando encontrarás a Pedra Oculta”.

[41] Poesia e Prosa medievais. Selecção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, edição patrocinada pelo Instituto Português do Livro.

[42] A Construção Moderna, n.º 12, Lisboa, 25.6.1918.

[43] Rudolf Steiner, Centres Iniciatiques (Origines, Influences). 14 conferências realizadas em Dornach de 23 de Novembro a 23 de Dezembro de 1923. Editions Anthroposophiques Romandes, Genève/Suisse, 1977.

[44] Vitor Manuel Adrião, Sintra Encantada (Deuses e Tradição – Homens e Lenda). Espiral Editora, Sintra, Abril de 2017.

[45] Manuel J. Gandra, A Quinta da Regaleira. Legado Sebástico-Templarista de António Augusto Carvalho Monteiro. Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica, Mafra, Abril de 2012.

[46] René Guénon, O Rei do Mundo. Editorial Minerva, Lisboa, 1978.

[47] Helena P. Blavatsky, Glossário Teosófico. Publicações Sociedade Teosófica, Londres, 1892.

[48] Há quem diga que Fulcanelli era o Conde Saint-Germain, Adepto famoso na corte de Luís XVI e Maria Antonieta pelas suas práticas de Teurgia e Alquimia. Outros, mais recatados, aventam que Fulcanelli não passaria do pseudónimo do alquimista francês Eugène Léon Canseliet (Sarcelles, 18.12.1899 – Savignies, 17.4.1982). Tamanho secretismo e discrição da pressuposta pessoa de Fulcanelli explica-se pelo facto de a Alquimia ser uma via solitária e dos Adeptos Filosofais se resguardarem do que chamam “poluição psicomental”, provinda do mundo profano ou ordinário. Para não serem afectados por ela e continuarem com perfeição a sua Obra Filosofal, os verdadeiros Alquimistas resguardaram-se sempre do convívio mundano, ocultando-se no maior sigilo e anonimato. Isto lembra as palavras de D. Maria da Nazaré acerca do seu avô, Carvalho Monteiro: “Não gostava de festas nem de as dar. Reserva-se muito e era muito fechado, só se abrindo com os amigos íntimos”.

Deve-se a Eugène Canseliet a revelação de quem terá sido Fulcanelli, de quem se considerava um dos poucos discípulos aceite por aquele desde 1915: tratava-se do pseudónimo de Jean-Julien Champagne (1839-1953). Através do mesmo Canseliet sabe-se que Fulcanelli é um pseudónimo resultante do jogo de duas palavras: Vulcan ou Vulcano, que os hermetistas greco-latinos associaram ao “Fogo Subterrâneo da Terra”, ao “Metalúrgico operando os metais no Mundo Subterrâneo”, e El, “Deus”, para os cananeus. Portanto, Fulcanelli significa o “Portador do Fogo Divino”, algo assim semelhante a Prometeu ou Lúcifer (o Arabel do conto de Melusina), o mesmo que os antigos cabalistas judeus e gnósticos cristãos identificaram como associado ao Fogo Criador do Divino Espírito Santo, que os alquimistas chamaram Fogo Radical ou Seco e os sábios hindus de Kundalini, a Energia Electromagnética animadora da Terra desde o seu Centro.

Fulcanelli ficaria famoso como autor de dois livros sobre Alquimia que foram publicados com a ajuda de Canseliet: Le Mystère des Cathédrales (“O Mistério das Catedrais”), escrito em 1922 e publicado em 1926 em Paris, e Demeures Philosophales (“Mansões Filosofais”), publicado em 1929 em Paris. Escreveria ainda um terceiro livro que não chegou a ser editado: Finis Mundi Gloriae (“Fim da Glória do Mundo”), cujo manuscrito original esteve durante algum tempo na posse de Canseliet.

Os dois livros publicados de Fulcanelli estão escritos de uma forma enigmática, parabólica e erudita, repletos de trocadilhos latinos e gregos destinados a dar ao simbolismo alquímico duplos sentidos. É em Le Mystère des Cathédrales que “apresenta a Catedral fundada na Ciência Alquímica”, e descreve a de Nossa Senhora (Notre-Dame) de Paris possuída dessa mesma simbologia esculpida na Idade Média pelos argots ou mestres do Gótico, associando esta palavra a Got e God, “Deus”, logo sendo uma arte divina por as suas proporções e formas se elevarem da Terra ao Céu como que querendo trazer este a ela e unirem-se numa verdadeira “núpcia química”, o que vai bem com a palavra Alquimia ou Allah-Chêmia, isto é, “Química de Allah ou Deus”, portanto, “Química Divina ou Oculta”.

[49] Elbert Chamoun, Instituições de Direito Romano. Editora Forense, Rio de Janeiro, 1968. Arnaldo Rizzardo, Direito de Família. Editora Forense, Rio de Janeiro, 2004.

[50] Juan Atienza, Santoral Diabólico. Ediciones Martínez Roca, Barcelona, 1988.

[51] Luís de Camões, Auto do Filodemo. In “Obras completas – Teatro e cartas”, volume II. Edição Círculo de Leitores, Lisboa, 1984.

[52] Paulo Pereira, A Quinta da Regaleira. Simbolismo e História da Arquitectura. In Quinta da Regaleira (História, Símbolo e Mito), edição da Fundação Cultursintra, 1998.

[53] René Guénon, Os Símbolos da Ciência Sagrada, capítulo 24, “O Javali e a Ursa”. Editora O Pensamento, São Paulo.

[54] Vitor Manuel Adrião, Portugal Templário (Vida e Obra do Ordem do Templo). Madras Editora Ltda., São Paulo, 2011.

[55] Serge Hutin, La Tradition Alchimique. Pierre philosophale et elixir de longue vie. Éditions Dangles, St. Jean de Braye, France, 1979.

[56] As lendas e milagres referentes a Santo André, foram motivo de análise acurada por F. Dvornik, em The Idea of Apostolicity in Byzantium and the Legend of the Apostle Andrew. Dumbarton Oaks Studies, Cambridge, 1958.

[57] Gregório de Tours foi o biógrafo eclesiasticamente autorizado do Apóstolo, como consta na Monumenta Germaniae Historica II, e que foi traduzido por M. R. James em The Apocryphal New Testament. Oxford, 1963.

[58] Pedro de Mariz, Diálogos de Vária História dos Reis de Portugal com os mais verdadeiros retratos que se puderam achar. Editados por António Craesbeek de Mello, impressor da Casa Real, Lisboa, 1672.

[59] Jorge Matos, A Sala de Bilhar do Palácio da Quinta da Regaleira – um panteão heráldico-iconográfico. Revista “Vária Escrita”, n.º 5, Câmara Municipal de Sintra, 1998.

[60] Manuel J. Gandra, A Quinta da Regaleira. Legado sebástico-templarista de António Augusto Carvalho Monteiro. Centro Ernesto Soares de Iconologia e Simbólica, Mafra, Abril de 2012.

[61] Um Encoberto justamente à medida dos desígnios dos conjurados. Sintomaticamente, Ardizone Spínola chamou a D. João IV Encoberto de Portugal, reservando para outro “que Deus sabe” o título de Encoberto do Mundo…

[62] D. Pedro II terá sido muito afeiçoado a esta ideia, jamais tendo aceitado ser coroado. Já D. João V fez-se coroar. No entanto, talvez em desagravo, havia de receber do Papa Clemente XII, em 1732, o título de [João] Baptista. Na convicção de que tal pudesse ter ocorrido radicam os insistentes, quase obsessivos, votos formulados por sucessivos monarcas brigantinos no sentido de obterem descendência.

[63] A Biblioteca do Congresso (DCL) tornou-se proprietária da bibliografia manuscrita e impressa concernente à questão, que lhe pertenceu.

[64] Vitor Manuel Adrião, A Ressurreição de Portugal (Ser, Identidade, Pensamento). Edição da Academia de Letras e Artes, Cascais, Setembro de 2009. Do mesmo autor, Portugal, Sagrado e Mistério (Memória Histórica). Euedito, Lisboa, 2018.

[65] Pe. Miguel de Oliveira, Pe. Moreira das Neves, A Padroeira de Portugal. Edições Letras e Artes, Lisboa, 1940.

[66] Nesta sala, também remodelada por Waldemar d´Orey, havia igualmente legendas latinas cujo sentido explicava-se pela finalidade do espaço, mesmo sem deixarem de ter o sentido duplo de evocação pantagruélica e interpretação filosófica, talvez mesmo gnóstica: “O vinho bom alegra o coração dos homens”, “O Tempo é devorador, mas o Homem ainda mais”, “Com conta, peso e medida”.

[67] Quinta da Regaleira – Luigi Manini (Imaginário & Método – Arquitectura & Cenografia). Edição da Fundação Cultursintra, 2006.

[68] Também a Arte Real dos construtores livres é representada pelo leão, como símbolo de nobreza e poderio na arte escultórica de “cantar” Deus na própria pedra, revelando a estética divina nos contornos harmoniosos das formas esculpidas, como se vê nestes três portais do Palácio da Regaleira e em toda ela.

[69] Francesco Russo, Gioacchino da Fiore e le fondazioni florensi in Calabria. Nápoles, 1958.

[70] Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos. Livraria José Olympio Editora S. A., Rio de Janeiro, 1990.

[71] O termo arquitectónico nártex (em latim narthex, com origem no grego narthikas) refere-se à zona de entrada num templo, havendo outras designações associadas com ele: pronaos, átrio, vestíbulo, galilé ou paraíso. Quando se situa no exterior do edifício, é denominado exo-nártex, e quando está no interior do mesmo é chamado endo ou eso-nártex, como está aqui na capela da Regaleira, cujo átrio abre para o jardim legitimando o sentido canónico de paraíso.

[72] Yvette K. Centeno, Fernando Pessoa: Magia e Fantasia. Edições Asa, Porto, 2003.

[73] Padre António Vieira, Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo. In Obras Inéditas, volume I, Lisboa, 1856. Obra reeditada pela Editora Ática, Lisboa, 2007. O fundamento desta tese do Quinto Império é exposto pelo padre Vieira, seguindo os critérios rigorosos da exegese bíblica, na sua História do Futuro, Oficina de Domingos Rodrigues, Lisboa, 1755. Obra reeditada por Maria Leonor Carvalhão Buescu pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1982.

[74] Vitor Manuel Adrião, Lisboa Secreta (Capital do Quinto Império). Editora Nova Vega, 2.ª edição, Lisboa, 2017.

[75] António José Saraiva, António Vieira, Menasseh Ben Israel et le Cinquième Empire. Studia Rosenthaliana, Amesterdão, 1972.

[76] Anselmo Caetano Munhoz de Abreu Gusmão e Castelo Branco, Ennoea ou Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal. Lisboa Ocidental, 1732. Esta obra foi reeditada em Lisboa pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Fevereiro de 1987, com nota de apresentação de Yvette Kace Centeno, quase em simultâneo com uma outra reedição no mesmo ano, desta feita em Mafra, com nota preambular de Manuel Joaquim Gandra. Esta última conta com uma dedicatória final de Anselmo Caetano a D. João V e ao elogio do V Império, que a primeira não possui.

[77] Augusto Ferreira Gomes, Quinto Império. Prefácio de Fernando Pessoa. Edição António Maria Pereira, Lisboa, 1934.

[78] Vitor Manuel Adrião, História Oculta de Portugal. Madras Editora Ltda., São Paulo, 2000.

 

OBRAS CONSULTADAS

 

Vitor Manuel Adrião, Dogma e Ritual da Igreja e da Maçonaria. Edição Dinapress, Lisboa, 2002.

Raúl Proença, Guia de Portugal, volume I. Lisboa, 1924.

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Dalila Pereira da Costa, Da Serpente à Imaculada. Porto, 1984.

Armorial Lusitano (Genealogia e Heráldica). Edição de Representações Zairol, L.da, Lisboa, 1961.

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Domingos de Araújo Affonso e Ruy Dique Travassos Valdez, Pombal (Marqueses de). In Livro de Oiro da Nobreza. Prefácio do Dr. José de Sousa Machado. Tomo II, na Tipografia da «Pax», Braga, MCMXXXIII.

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Ian Caldwell, Dustin Thomason, A Regra de Quatro. Editorial Presença, Lisboa, 2004.

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Maria Regina Dias Baptista Teixeira Anacleto, Bolseira do Instituto Nacional de Investigação Científica e da Fundação Calouste Gulbenkian, Arquitectura Neomedieval Portuguesa, 1780-1924, volumes I e II. Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Coimbra, 1997.

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