DEMANDA DO GRAAL (“Quête du Graal”) – Por Vitor Manuel Adrião Domingo, Jan 1 2023 

Se alguma coisa marcou e se destacou, desde a alva ao ocaso da Idade Média, determinando decisivamente a mentalidade espiritual e religiosa dos que nela viveram[1], foi sem dúvida a Lenda do Graal transbordada da Lenda Arturiana, que oficialmente entrou na Literatura Ocidental, no século XII, através do cronista e poeta francês Chrétien de Troyes (c. 1130 – c. 1190), autor, dentre outros títulos, de Érec et Énide (c. 1170), Lancelot ou le Chevalier da la Charrette (c. 1175-1181) e Perceval ou le Conte du Graal (c. 1182-1190), obras escritas em langue d´oil (o francês romanizado do Norte)[2], a mesma utilizada pelo cluniense São Bernardo de Claraval para redigir a Regula Vitae (Regra de Vida) da Ordem do Templo (1128), por exemplo.

Chrétien de Troyes tomou a primazia, encabeçou um corpo de poetas e cronistas de seu tempo na divulgação da Matéria da Bretanha que marcou o Ciclo Arturiano, fortemente efabulado por maravilhamentos aventurescos na constante órbita da Quête du Graal, a Demanda do Graal, a Taça Sagrada dotada de propriedades miraculosas com que o Espírito Santo a bafejava assim a dando por Eucarística, portanto, na feição cristianizada, decerto tomada da celta anterior, druida, do “caldeirão da abundância” de Dagda e do “caldeirão mágico” de Ceridwen.

Esse autor francês e os seus ilustres pares criaram uma novelística francamente heterodoxa recambiando para o Hermetismo mais puro e transcendente que marcou decisivamente a mentalidade espiritual e religiosa da Baixa Idade Média (séculos X-XV), tendo esse efabulamento se inspirado em factos históricos reais anteriores ocorridos durante o final do império romano na Ilha Britânica, sobretudo em Gales, e no Norte de França, na Bretanha, com personagens que deveras existiram mas que eles transpuseram, por via do romance e da parábola com grande engenho, para aventuras iniciáticas no terreno da mais pura heterodoxia a que Portugal não foi alheio[3], como veremos mais adiante, desde Afonso Henriques e o seu “Porto-Graal” a D. Nuno Álvares Pereira, o “Galaaz do Carmelo”[4].

Pois bem, a Alta Idade Média (séculos V-IX) fez do Cálice Sagrado motivo de Iluminação Espiritual que diversos autores e autoras desse período registaram em fólios e pergaminhos, a maioria de profissão religiosa de acolhimento mosteiral, que nos períodos paleocristão (visigótico) e moçarábico (sob regime árabe) serviram para a pregação às assembleias de fiéis catequisando-as pela moral e o instigo à perfeição interior. É assim que em 1151 aparece a Scivias (do latim Scivi vias Domini, “Conhece os Caminhos do Senhor”), obra ilustrada constando das visões espirituais da monja beneditina alemã Hildgard von Bingen (1098-1179)[5], claramente inspiradora dessa outra do século XIII, de autor anónimo, A Demanda do Santo Graal, sendo o famoso Manuscrito de Heidelberg, que Chrétien de Troyes toma como referência principal e funde lendas celtas e germânicas, bretãs, irlandesas e ibéricas, a maioria de fonte oral, tomando por base justificativa o Antigo Testamento[6].

Da Matéria da Bretanha destacam-se três títulos que cedo marcaram decisivamente a “mentalidade mágica” portuguesa: Livro de José de Arimateia, Demanda do Santo Graal e História de Vespasiano, esta atribuída a Jafel, sobrinho de José de Arimateia, onde descreve com vivacidade a conversão ao cristianismo do imperador romano Vespasiano e de seu filho Tito. A restante novelística da Matéria da Bretanha seria igualmente traduzida – inicialmente, a partir do século XII português, graças ao labor cisterciense, sobretudo dos copistas de Santa Maria de Alcobaça – desde o início do reino e sobretudo no reinado de D. Dinis, cuja difusão ampla influenciou a demais literatura místico-cavaleiresca e até o onomástico português da época (vulgarizando-se na fidalguia lusa os nomes de Tristão, Iseu, Lançarote e outros)[7], tornando-se a corte portuguesa o centro da vida cultural peninsular.

D. Dinis revestiu-se de Hermetismo e até nos aparatos de seus trajes palacianos ele transparece, como se revela na espada retirada de seu túmulo em 24 de Outubro de 2022, no convento das bernardas de S. Bernardo e S. Dinis de Odivelas. Trata-se de uma espada de aparato, não de uma espada de combate. Além de apresentar restos das cores originais dos esmaltes na empunhadura e guarda-mão de prata, sendo a lâmina de ferro, está decorada por medalhões mostrando figuras zoomórficas e mitológicas que remetem para o simbolismo do Hermetismo medieval. Delas destaco: leão = valentia, coragem, ânimo; cão atrás de lebre = destreza, arte no manejo da lâmina; serpe no guarda-mão = protecção contra o mal, contra a má sorte no guerrear; três losangos na empunhadura = Santíssima Trindade; lucernas = clareza, lucidez.

Com essa matéria se constituiu a chamada Demanda Portuguesa, que pôs em relevo Portugal logo ao seu início, quando Matilde (Mahaut), filha de D. Afonso Henriques, desposou, em 1183, Filipe de Alsácia, conde de Flandres, o qual lhe forneceu um livro contendo a história do Graal que teria contribuído para a construção do Perceval, obra inacabada de Chrétien de Troyes por morte deste[8]. O tema do Graal é, pois, conhecido entre os portucalenses desde muito cedo, possivelmente desde o conde D. Henrique de Borgonha nos seus contactos com o Islão erudito em Sintra (Al-Shantara) e noutros lugares do nosso futuro país sob ocupação árabe. Também os santões e visionários do Islão ibérico, sobretudo os de corrente sufi caracterizados pela sua mística e erudição nos textos sagrados, deram relevo ao Santo Vaso (Saint Vaisel) como sinónimo de libações paradisíacas e sinal supremo de ascenso à Morada da Sabedoria (Bayt al-Hikmah)[9]. Nisto reside a origem das posteriores “cortes de amor” portuguesas[10], que juntou o amor cortês (palaciano) ao amor divino (monástico), pela prosa e a trova, exaltando a transcendência da coyta, ou seja, da “dor do amor”, onde a Mulher tomou papel destacado por via de firme e profundo entendimento hermético[11].

O certo é que aparece em anagrama o nome “Porto-Graal” em vários sinais rodados afonsinos nas cartas de doação e/ou de aforamento reais pelo nosso primeiro rei, como a de Sintra, a do Reguengo de Colares e a de Ceras, o que dispõe Portugal como Peanha ou o Trono do Graal, geograficamente na “cabeça da Europa inteira”, no dizer de Fernando Pessoa em sua Mensagem.

Esse documento assinalado na foto provém do original em latim depositado na Torre do Tombo (gaveta 7, maço 3, n.º 8. Com relação sucessora na Leitura Nova, Liv. 53 (Livro de Mestrados), f. 19 v, coluna 2, transcrito sumariamente na Reforma das Gavetas, Liv. 10, f. 142 v), Lisboa, foi reproduzido na Monumenta Henricina (1960-1974) e refere-se ao Castelo de Cera ou Ceras na carta de doação desse por D. Afonso Henriques, “Rex I Portucalensis”, à Ordem do Templo, englobando as terras que iam até Tomar e esta. A mesma carta, lavrada em Fevereiro de 1159, dentro da política de concórdia com arbítrio papal (Adriano IV, expedindo a bula Justis potentium sideriis) terá servido, segundo o professor Luís de Albuquerque (Monumenta Henricina, vol. 15, p. 10, Coimbra, 1974), para doar a mesma Tomaris ao Templo, que aí instalaria a sua Casa-Mãe em seguimento a Cera, Ceras ou Cellas, penúltima Casa-Mãe da Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo e do Templo de Jerusalém (Ordini Milites Pauperes Christi Templi Hierusalem) em Portugal.

O sinal rodado afonsino possui três leituras afins à grafia nos seus três círculos, interligando-se pela pontuação cimeira – hermética (PORTO-GR(A)AL), teológica (CUM FILII SUI, “com o seu Filho”, relação cristológica de Deus-Rei-País), nobiliárquica/militar (REX ALFONSUS, “Rei Afonso”, o I de Portugal assim aclamado no campo de lide de Ourique por templários e portucalenses, após a sua vitória militar no Gharb islâmico e já antes, pré-batalha, sagrado por Cristo, como descreve a miraculosa tradição hagiográfica[12]).

Em 1990 identifiquei essa carta como a da doação de Tomar à Ordem do Templo, e agora fica clareado o por que: abrange todo o espaço primitivo do concelho tomarense, portanto, Ceras e Tomar incluídos, em troca do espaço escalabitano[13]. Assim, o documento é carta de doação concelhia e não apenas da mingueza geográfica de um castelo e terras em volta do mesmo, antes indo mais além dele, ficando a poderosa Santarém sob o domínio militar-económico e até pastoral da religião da Ordem Religiosa e Militar de Santiago. Nesse acto de fina diplomacia geopolítica, Afonso I evitou conflitos entre espatários e templários e vedou as ambições diocesanas do Cabido de Lisboa, ao pôr essas terras ricas na posse da freiria militarizada que delas se ocupou demográfica, política e economicamente.

Assim se chega ao âmago da questão: quem era Artur, um rei mítico ou um personagem histórico? Quem era Merlin, conselheiro daquele, um mago, um druida ou simples figura de ficção? O que era a távola redonda em redor da qual se reuniam periodicamente doze cavaleiros para contar as suas aventuras paladinas, e se uma e outros existiram de facto? Finalmente, o que é o Graal?

Historicamente, mesmo não pondo em dúvida a sua existência, o facto é que a figura do rei Artur foi mitificada posteriormente. O primeiro registo do seu nome remonta a Nennius, monge galês, na sua Historia Brittonum (“História dos Bretões”), escrita por volta do ano 810, onde Artur aparece não como rei mas como dux bellorum, isto é, um general ou chefe militar[14], que após a retirada dos romanos de Inglaterra chefiou os bretões insulares contra os invasores saxões vindos da Germânia, actual Alemanha, e que usurparam o trono, tendo obtido grandes vitórias militares em doze batalhas sucessivas, segundo conta o bispo S. Gildas ou Gildásio (c. 516-570) em De Excidio et Conquestu Britanniae, escrito cerca do ano 547. Ambos os autores dão Artur como chefe cristão devoto da Virgem e da Santa Cruz, o que sugere a sua conversão à Igreja galesa, cercado já por certo número personagens como Ambrosius, Mordred e Merlin (Merlinus), o que é repetido por Bede ou Beda, o Venerável, monge da Nortúmbria dos Anglos na sua História Eclesiástica do Povo Inglês (Historia Ecclesiastica gentis Anglorum), escrita por volta do ano 731. A mitificação e maravilhamento de Artur só aparece no século XII na crónica de Godofredo de Monmouth, Historia Regum Britanniae (História dos Reis da Bretanha), redigida cerca de 1136. Ele é dado como filho de Uther Pendragon (Pendraco, em latim, “pequeno dragão”), rei dos bretões que teria vivido nos anos de 410 a 495, tendo o seu filho Arthur Pendragon sido chefe e caudilho no século VI. Vários poemas galeses medievais também citam Artur no mesmo sentido, como o Y Gododdin, apesar deste não poder ser datado com precisão por descrever eventos do século VI e conter linguagem dos séculos IX e X, sendo a cópia que sobreviveu do século XIII. Por fim, tem-se a crónica escrita em latim nos fins do século X, Annales Cambriae (Anais de Gales), nome pela qual a obra é conhecida referindo-se a Cambria, forma latinizada de Gales (em galês, Cymru). Nela aparece duas referências a batalhas onde o caudilho bretão lutou contra os invasores anglo-saxões: a Batalha do Monte Badon (Badonicus mons), datada de 516 ou 518, em que “Artur carregou uma cruz sobre os ombros” e os “bretões foram vencedores” (episódio que D. Afonso Henriques trasladaria para a batalha mirífica de Ourique onde, vencedor dos “sete reis mouros”, seria aclamado rex, rei de “Porto-Graal”, diga-se de passagem), e a Batalha de Camlann (mitificada Camelote), ocorrida em 537 ou 539, onde “Artur e Mordred tombaram mortalmente”, pai e filho que se mataram um ao outro no confronto, segundo as lendas.

Artur vem a representar a passagem e estruturação da sociedade rural celta à urbana cristianizada, geográfica, política e juridicamente livre, independente com o seu poder temporal ou real próprio, recém-saído do subjugo anglo-romano. Isto seria figurado pelo urso, animal totémico sinalético do mesmo poder temporal assegurado pelas armas, pela casta militar (kshatriya, em sânscrito).

Quanto à figura sobrenatural de Merlin, Merlim ou Merilim, que é topónimo de localidade em Braga, aparecendo na Galiza com a forma Merlin, a verdade é não surgiu no Ciclo Arturiano, pela primeira vez, pela mão de Godofredo de Monmouth, ainda que este o tenha maravilhado na sua Vita Merlini (“Vida de Merlin”), escrita em 1150, dando-o como Merlin Calidonius, tendo uma irmã e uma esposa mas sem menção a seus pais, que outros autores dizem ter sido gerado por anjos, e por isso foi um grande mago e profeta, além de sábio conselheiro do rei Artur[15]. Já antes, no final do século VI, no poema galês Afallenau ele é identificado ao bardo Myrddin, e assim ficou em vários outros poemas dessa época – ora como bardo, ora como druida – preservados no manuscrito conhecido como Livro Negro de Camarthen (em galês, Llyfr du Caerfyrddin), escrito por Teulyddog de Camarthen cerca de 1250. É chamado “negro” por causa da sua encadernação escura. Merlin também aparece referido em poemas do início do século X, como o Armes Prydein e o já citado Y Gododdin.

As crónicas dizem que quando nasceu, no lugar de Caer-Fyrddin (Carmarthen), foi-lhe dado o nome de Emrys, depois adaptado ao galês Myrddin que Godofredo latinizou Merlinus, donde derivou Merlin. A lenda conta que viveu perto da montanha de Dinas Emyris, em Gales, onde existia o castelo do rei saxão Vortigern, e que dentro da montanha viviam num lago subterrâneo dois dragões, um branco e outro vermelho. Combatiam-se um ao outro trazendo as populações aterrorizadas. Então, Merlin profetizou a morte de Vortigern e representou o dragão branco como sendo os saxões e o dragão vermelho como os bretões. De facto, o dragão vermelho empurrou o dragão branco para as nuvens onde desapareceu derrotado, tal qual Vortigern pereceu às mãos de Ambrósio Aureliano que ocupou o trono usurpado, sendo sucedido por seu filho Uther Pendragon e depois pelo filho deste, Arthur Pendragon. Este pendragon é o dragão vermelho que até hoje drapeja na bandeira do País de Gales.

Merlin é a representação da religião primitiva celta, portanto, um druida (do celta druwjd, “sábio”), que estabeleceu a ligação entre a religião e a cultura autóctones e a cristianização nascente deixada pelos romanos já convertidos. Essa função era assinalada pelo javali totémico, sinal de autoridade espiritual assegurada pela casta sacerdotal (brahmane, em sânscrito). Por isso, Merlin foi conselheiro de Artur e lhe reconheceu as funções legítimas no trono, assim se confirmando a eleição tradicional do poder temporal pela autoridade espiritual.

Vem depois a famosa távola ou mesa redonda que possuía propriedades mágicas, dizem as lendas que Artur a herdara de Ambrósio (Ambrosius Aurelianus, em latim, Emrys Wledig, em galês). Thomas Malory, protestante e romancista inglês do século XV, associou o ainda visível anfiteatro romano de Caerleon à távola redonda, na sua obra publicada em Londres em 1485, A Morte de Artur: Rei Artur e as Lendas da Távola Redonda. A sua identificação certamente teve por fonte o Itinerarium Cambriae de Gerard de Wales, de 1191, que diz sobre Caerleon: “Aqui os embaixadores romanos tiveram audiência na corte do grande rei Artur”.

Duvido da autenticidade da identificação, mesmo sabendo que sítios arqueológicos de interesse histórico foram depois adaptados pelos autores da Matéria da Bretanha e do Ciclo Arturiano ao imobiliário móvel e imóvel que os compõe, hoje aproveitados para turismo rendoso. Parece-me ser mais viável a informação transmitida por Paulo Pereira[16]:

“Para mais, o grupo nuclear da lenda arturiana parece ter uma inquestionável relação com a astronomia simbólica, com Artur fazendo as vezes de Sol e os restantes doze cavaleiros dispostos em seu redor substituindo-se ao zodíaco. Esta partição em “doze segmentos” da Távola Redonda parece ser, também, uma manifestação da antiga tradição da organização grega e etrusca do território em doze partes, distribuídas por doze tribos ou amphictionies. O simbolismo polar do mito é também considerável, se tivermos em linha de conta que o nome de Artur provém de arctus, que quer dizer urso, ligando-se desta feita à constelação da Ursa Maior, cuja cauda indica uma das estrelas mais brilhantes do céu, a estrela Arcturo, no Norte polar. O urso pode ser, efectivamente, o símbolo da casta guerreira (o javali seria o símbolo da casta sacerdotal). Os lugares portugueses com relações toponímicas com a Ursa ou Ossa parecem ser uma tradução local, em Portugal, mas também antiga, destes mitos que adquirem contornos arquetípicos e universais, o mesmo acontecendo com probabilidade nos lugares denominados Arco (corruptela de arctus).”

A Távola Redonda é assim transposta para o simbolismo do Zodíaco repartido em doze partes ou signos, um para cada cavaleiro sinalético de uma das doze batalhas arturianas e por conseguinte uma das doze tribos bretãs. A távola, tábua ou mesa redonda era assim para todos ficarem em pé de igualdade na hora de comunicarem os seus conhecimentos e experiências. Ficaria como símbolo místico de irmandade reunida em volta da Santa Copa postada no centro da távola, esta assim fazendo as vezes de altar – feita de carvalho, árvore indicativa de templo para os antigos druidas e igualmente para os primitivos padres galeses – e igualmente de mesa de ágape, a refeição mística em comunidade, inicialmente onde se celebrava a eucaristia do pão e do vinho, o que faz volver ao sentido de ara.

Com efeito, o tema da Távola Redonda instituiu-se como um dos mais significativos instrumentos ideológicos da Cavalaria, isto é, da igualdade de tratamento entre os cavaleiros, como “pares”, e a obliteração das regras de precedência. A forma redonda seria associada na Idade Média à Mesa da Última Ceia, apesar de alguma iconografia medieval a representar como rectangular. Para a tradição celta a forma redonda era privilegiada, como demarcação sacralizada, sabendo-se que os chefes celtas usavam mesas redondas nos banquetes, e as próprias casas das citânias apresentavam forma circular[17].

Ressalve-se que o tema literário arturiano bretão seria adaptado pelos cronistas de Cister em Portugal à idiossincrasia portuguesa[18], o que de bom grado a coroa e a corte acolheu desde a primeira hora, ficando registado no chamado Códice Português [19]. Inclusive é dito, em óbvia exaltação nacional desde a primeira hora, que o tema graalístico saiu do nosso país para a Bretanha, a partir da região de Sintra, posto esta ser lugar consignado na Tradição desde os evos arturianos, chegando mesmo a instalar aí o cavaleiro Ector ou Heitor de Maris, filho do rei Ban de Benoic e da rainha Helena, pai adoptivo de Artur.

Os doze paladinos do rei Artur, além do seu significado astronómico, poderiam muito bem ser os principais chefes-de-campo do dux bellorum nas campanhas contra os anglo-saxões. Depois, por via do romance assente no simbolismo hermético da Baixa Idade Média, seriam transformados em Massenia ou Cavalaria Espiritual irmanada em torno do Saint Vaisel, pomo da Demanda da Iluminação assinalada por doze provações equivalente a outros tantos graus iniciáticos, portanto, constituída como Ordem Iniciática, esotérica ou fechada, ainda assim vindo a influenciar decisivamente a Regra de Cavalaria, mormente em Portugal, como descreve Fernão Lopes na sua Crónica de D. João I, por que se impôs a disciplina castrense e transformou o guerrear numa ciência militar.

A Regra de Cavalaria dos Cavaleiros do Santo Graal, o seu código de conduta, segundo Thomas Malory[20] possuía os sete pontos seguintes:

Demandar a perfeição humana
Agir com rectidão nas acções
Respeitar os semelhantes
Amar os seus familiares
Ter piedade com os enfermos
Ter doçura com as crianças e mulheres
Ser justo e valente na guerra e leal na paz

Conforme as versões, a Távola Redonda teria inicialmente apenas 12 membros, depois passando a 24 e chegando até a 150. Nas versões portuguesas do tema os nomes dos cavaleiros são precedidos do título de nobreza Dom, mantendo o Sir nas versões britânicas. Mas, por que o Dom antes do nome próprio?

Dom (do latim dominus, em português “senhor, dono ou mestre”), ou no feminino Dona, é um pronome de tratamento concedido a monarcas, príncipes, infantes e nobres portugueses, espanhóis, ibero-americanos e italianos; a bispos católicos, abades e sacerdotes beneditinos, cartuxos e trapistas, sempre seguido do prenome. No caso da nobreza, é transmitido apenas pela descendência varonil directa, a não ser quando a mãe seja chefe da casa dinástica.

O título de Dom (ordinariamente escreve-se abreviado D.) sempre teve um enorme relevo em Portugal. Só por concessão régia, tradição que durou muitos séculos, um nobre podia usar esse título. Não obstante a origem restrita, Dona tornou-se um tratamento de reverência usado para anteceder o nome de uma senhora que se respeita. Neste caso, usa-se o axiónimo com inicial minúscula (dona). Seja qual for o uso, ordinário ou aristocrático, dom e dona devem anteceder o prenome, mas não o sobrenome para o qual é mais adequado o uso de senhor ou senhora.

Com base nas evidências escritas das colónias fenício-hebraicas em Espanha (Tarsis) desde a época do rei Salomão (ou mesmo antes), e com vários influxos de emigração durante a destruição do primeiro e do segundo Templo de Jerusalém, e com as deportações em massa na época do imperador Adriano, é considerado como mais provável que o espanhol Don derive do hebraico Adon (“senhor, mestre”), título usado pelos hebreus, Aba, da mesma forma que Sir é utilizado na língua inglesa.

Voltando aos doze cavaleiros originais da Távola Redonda, eles seriam:

0. Artur
1. Heitor
2. Caio
3. Parsifal
4. Lancelote
5. Ivano
6. Galvão
7. Galaaz
8. Tristão
9. Garete
10. Gerantio
11. Boro
12. Badevere

Isso em português, que no bretão os nomes naturalmente diferem e a sua lista aumenta acompanhando as minúcias e acréscimos de versão para versão, assim dispostos por ordem alfabética:

Arthur Pendagron (Pendragão), Rei; Accolon de Gália (Acolon, Acolão); Aglovale; Agravain (Agraveine); Bedivere (Bedwyr, Belovedye); Boors, o Exilado (Bors, Bohort, Bohor); Breunor; Cador; Calogrenant; Caradoc (Karadoc); Colgrevance; Constantine (Constantino); Cordo, o Bobo; Daniel; Dinadan; Gaheris (Guerrehet); Galahad (Galaaz); Galehaut; Gareth (Gaheriet, Garete); Gauvain (Gawain, Galvão); Geraint (Gerantio, Erec); Gingalain; Girflet (Jauffré); Hector de Maris (Heitor, Ector); Hoel; Hunbalt; Ivain (Ywain, Ivaine, Ivano); Ivain, o Bastardo; Kay (Cai, Caius, Caio); Lamorak; Lancelot du Lac (Lancelote, Lançarote, Launcelot do Lago); Leodegrance (Leodegrans, Léodagan); Lionel (Leonel); Lucan; Meleagant; Mordred (Mortret); Morholt; Palamedes; Pelleas (Peleia); Pellinore;  Perceval (Peredur, Percival, Parzifal, Parsifal); Safir (Safrão); Sagramor (Sagremor); Tor (Thor, Toro); Tristan (Tristão); Uriens (Urião).

Esses personagens da Demanda vieram a ser aureolados de encantamento e transcendência no romanceiro francês e britânico dos séculos XII-XIII, época em que entraram em literatura portuguesa pelo afã cisterciense que juntou a Vulgata e Post-Vulgata do Ciclo do Graal numa versão singular[21] ao instalar a Demanda (Quête) no território nacional e associar os paladinos arturianos a personagens reconhecidos da nossa História. Tudo, num jogo de palavras, anagramas e narrativas com duplo sentido, disposto no campo da pura heterodoxia dos saberes herméticos com que deram aso a mitos fundacionais centrados no tema do Santo Graal[22], promovendo a passagem da celtização à cristianização do mesmo por via dos lais, crónicas e cronicões, o que levou o romantista Albert Beguin a interpretá-lo como exclusivo objecto cristão[23]:

“Representa ao mesmo tempo e substancialmente Cristo que morreu pelos homens, o Vaso da Ceia Sagrada (graça divina concedida por Cristo aos discípulos) e finalmente o Cálice da Missa, contendo o verdadeiro Sangue do Senhor. A Mesa em que repousa o Vaso é, pois, a Pedra do Santo Sepulcro, a Mesa dos Doze Apóstolos, e por fim o Altar da Missa quotidiana. Estas três realidades, a Ceia, a Eucaristia e a Crucificação, são inseparáveis e o Graal é a sua Revelação, dando através da comunhão o conhecimento da pessoa de Cristo e a participação no seu sacrifício redentor.”

Indo também nessa direcção, o enciclopedista M. de Riguer adiantou[24]:

“Konrad Burdach relaciona o cortejo do “Graal” com a grande entrada da missa chamada de São João Crisóstomo na liturgia bizantina. Nesta há uma procissão solene aberta pelos que levam candelabros com velas acesas, seguidos pelo presbítero com o cálice (que corresponde ao “Graal”), o diácono com o hostiário (que corresponde ao prato de prata) e o celebrante com a lâmina chamada a Santa Lança, com a qual se fere antes, simbolicamente, a hóstia eucarística.”

Eis aí a razão de associar o nome Santo Graal, Saint Greal, San Grial ao Sangue Real, motivo maior do Rito Eucarístico em cuja celebração se transubstancia o vinho no sangue contendo o Ser de Cristo, o Avatara ou “Manifestação da Divindade” revelada na Pomba do Espírito Santo.

A palavra Graal é familiar das gregas kratale e kratêr, donde saíram as provençais graalz e grazale, esta última significativa de “prato”, do latim gradalis, “prato gradual”, isto é, servido gradualmente ou por diferentes vezes, até chegar às derivações “grato” (gratu) e “agradar” (placere). Vária iconografia arturiana medieval vai nesse sentido ao representar na távola o servir aos comensais “pratos graduais”.

Essa é a explicação laica e profana para a religiosa e espiritual do que significa realmente o “prato” (grazale): será a patena (termo latino), pequeno prato um pouco convexo que se coloca sobre a taça (graal) onde se deposita a hóstia ou pão, que após consagrado na missa ou no ritual solene irá, pelo Mistério da Transubstanciação proferido pelo Logos ou Palavra que sujeita Thanatos como Morte, tornar-se o Corpo de Cristo, Corpus Dei. É esta razão do Rito do Santo Graal ser Eucarístico (Eu-Crístico) mais que tudo.

Por outro lado, os cronistas do Ciclo do Graal (Chrétien de Troyes, Robert de Boron, Wolfram d´Eschenbach, etc.) dão-no ora como Taça, ora como Livro, ora como Pedra, associando-o ao útero iniciático da Mulher e da Terra, nesta associada ao sentido de Paraíso Terreal – o Mundo Jina das escrituras esotéricas, igualmente afim aos Lugares Santos[25], Loca Sancta, onde o Céu e a Terra vêm a se encontrar e unir – o que de certa maneira o vaso alquímico (tesaurus, na linguagem medieval) também representa.

Nesse sentido, os cronistas medievais permitiram entender o Graal como uma pedra atestada pelo termo celta gar ou kar, “pedra”, mais al ou el, deus”, portanto, Pedra de Deus, ademais correspondendo à interpretação que Wolfram d´Eschenbach (1170-1220) lhe dá no poema épico Parzival (escrito provavelmente entre 1200 e 1210) onde lhe chama lapsit exilis, isto é, lápis, “pedra”, excelis, “elixir”, no que corresponde então à Pedra Filosofal (sinónima de realização espiritual acompanhando a humana) nessa interpretação claramente esotérica do trobar clus de Eschenbach, decisivamente destacando o Hermetismo cristão.

O Graal como Pedra tomaria tanto a feição de ara ou altar, onde se realizam as mais místicas e alquímicas transformações interiores, como de Lugar Santo elevado ou destacado como Mons Salvat, “Monte Salvo”, “Monte da Salvação”, onde se construiria o Castelo do Santo Graal para guardar no seu interior a sua relíquia sagrada guardada por Titurel e uma companhia de castos, santos e sábios cavaleiros, e que se situaria numa montanha junto ao mar (maris) nos confins da Europa, segundo o mesmo Wolfram d´Eschenbach retomando as narrativas anteriores da Matéria da Bretanha, cujo Exílio do Graal ficou assinalado na Post-Vulgata pela Estoire del Saint Graal de Robert de Boron, vertida na tradução portuguesa sob o título Livro de José de Arimateia, manuscrito único[26].

Apesar de muitos autores situarem o Castelo do Santo Graal em Monserrate na Catalunha, na vizinha Espanha, o facto é que ele não é o ponto final da Europa e nem fica junto ao mar. Essa localização geográfica cabe exclusivamente a Sintra, em Portugal, a qual tem o lugar de nome Monserrate, além daquele outro Monte Salvo. Sobre isto, diz Mário Roso de Luna[27]: “A Mestra (Helena Petrovna Blavatsky) pressentia o futuro ocultista da nossa Raça e elogiava o Centro Iniciático ibérico “situado numa floresta oculta da Península”. Será esse Retiro, oculto e ignorado por todos, o famoso Castelo do Santo Graal ou Montsalvat, a quem Wagner, o colosso musical de Bayreuth, consagra inteiramente o seu sublime Parsifal, dispondo-o quer “abaixo dos Pirenéus”, quer nos confins – leia-se “confins ocultistas” – da Espanha cristã com a Espanha árabe?…”

Como Livro o Graal – assinalado no Gradual, livro contendo os itens musicais da missa, assim o diferenciando do Missal onde estão escritos os textos recitados – contém em seu significado a Tradição Primordial, a sabedoria oral e o conhecimento escrito. Robert de Boron, no Livro de José de Arimateia, diz que “Jesus Cristo ensinou a José de Arimateia as palavras secretas que ninguém pode contar nem escrever sem ter lido o Grande Livro no qual elas estão consignadas, as palavras que são pronunciadas no momento da consagração do Graal”[28]. De facto, em Le Grand Graal, de autor anónimo no Pseudo-Boron, o Graal é identificado ao Livro escrito por Cristo, cuja leitura só pode entender ou iluminar quem está nas graças de Deus, porque o Livro tem um terrível poder: “As verdades de fé que este Livro contém não podem ser pronunciadas por língua mortal, sem que os quatro elementos sejam agitados. Se isso acontecesse realmente, os céus diluviariam, o ar tremeria, a terra afundaria e a água mudaria de cor”.

Agir em contrário é transformar a demanda em devassa, como se nota nas especulações empíricas dos teóricos de livraria para quem o Graal é apenas expressão de “conseguir o impossível” sem que se lhe dê forma física, ou então algo a ver com a interiorização mística afim a vagos estados d´alma que se pretendem representar exteriormente no objecto-relíquia, sem que haja mais e cujo vácuo deixa as portas abertas à dúvida, à suspeição, ao desânimo e à desistência. Deveria saber-se que tudo quanto haja no plano espiritual existe no plano material, e vice-versa, por conseguinte, também o Graal existe, não é simples efabulação poética medieval chegada ao presente; descrer dessa “literatura inútil” é coisa de efabuladores impenitentes portando-se como “a raposa na latada não conseguindo alcançar o cobiçado cacho de uvas”, da lenda moral de La Fontaine.

Mas não só na literatura ficou registada a tradição do Santo Graal, porque ela também se apresenta na pintura e na escultura, como igualmente na ópera, no teatro e no cinema. O tema está universalizado.

Aqui chegados, posso afirmar que por detrás do véu das lendas efabuladas que são mais que mitos de fundação, está a milenar Ordem do Santo Graal cuja féerie o Ciclo Arturiano encomiou, usando a parábola e a alegoria com tamanha destreza e subtilidade que os textos acabam valorizados só pela sua composição literária imaginosa, muito raramente, seja por ateísmo e/ou complexos intelectuais, pelos simbolismos que contêm indicando conhecimentos heterodoxos do domínio do Hermetismo medieval que pautou a mentalidade “mágica” da época e abriu as portas da Renascença.

Simbolismos como esse da Távola e o Graal, distintos, o que dá dois corpos por igual distintos de cultores na mesma Irmandade do Santo Graal: a dos Templários, encarnada por Merlim e representada por Galaaz (prefiguração do Cristo), “o cavaleiro que encontrou o Graal”, e a dos Tributários, assinalada por Artur e prefigurada por Lancelote, “o melhor cavaleiro do mundo”.

MERLIM E GALAAZ:
TEMPLÁRIOS (CASTA SACERDOTAL) – RITO DO GRAAL

ARTUR E LANCELOTE:
TRIBUTÁRIOS (CASTA GUERREIRA) – TÁVOLA REDONDA

Como o Santo Graal seja de natureza tríplice, a ver com a mudança interior de um e todos os cavaleiros, na mais fina e ortodoxa disciplina que é a Regra da Ordem, valores contendo a esperança de futuro melhor cabendo a toda a civilização, tem-se:

Transformar a vida-energia em vida-consciência vem a ser a meta da verdadeira Iniciação, nisto se centrando no coração que no corpo humano é expressivo do Graal-Consciência, sendo que na odisseia arturiana vários dos seus principais personagens vêm a representar a demanda sem devassa desse supremo estado de Ser do humano em divino. Esta é a grande aventura.

Isso vai de encontro ao que o Professor Henrique José de Souza (1883-1963), fundador da Sociedade Teosófica Brasileira, proferiu no seu Livro do Graal (1950), obra reservada:

“A palavra Graal é uma forma pela qual se define iniciaticamente a manifestação do “Esplendor Celeste” na Terra. O mistério do Santo Graal, num aspecto mais particularizado, vemo-lo ligado à tradição oculta do Cristianismo. Neste ele foi mantido através de duas Ordens Secretas e sob os símbolos da Cruz, como instrumento de sacrifício, do sangue do mesmo sacrifício resultante, e das lágrimas de Maria, como expressão viva da dor. As duas Ordens referidas foram a do Santo Graal e a dos Monges-Construtores em conexão com aquela e auxiliada pela de S. Francisco, as quais mantiveram durante séculos o Rito do Santo Graal.”

Finalmente, reportando-me ao libreto da ópera Parsifal, de Richard Wagner, aquele pergunta: “O que é o Graal?” Tendo respondido o cavaleiro Gurnemanz:

– Não sei responder-te.
Porém, se fores guiado por ele
Não te será oculta a verdade…
Nenhum caminho conduz até ele,
E procurá-lo é inútil…
Salvo se ele mesmo for o guia.

NOTAS

[1] Vários autores, Splendeurs et Rayonnement du Moyen Age, obra apresentada por Marcel Brion, da Academia Francesa. Editions Pygmalion/Gérard Watelet, Paris, 1986.

[2] Chrétien de Troyes, Obras completas, edição e tradução sob a direção de Daniel Poiron. “Bibliothèque de la Pléiade”, Editions Gallimard, Paris, 1994. Chrétien de Troyes, Romances da Távola Redonda. Editora Martins Fontes, São Paulo, 1998.

[3] Almir de Campos Bruneti, A Lenda do Graal no contexto heterodoxo do Pensamento Português. Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa, 1974.

[4] Josué Pinharanda Gomes, S. Nuno de Santa Maria – Nuno Álvares Pereira. Editora Zéfiro, Sintra, 2009.

[5] Régine Pernoud, Hildgard de Bingen: a consciência inspirada do século XII. Tradução Eloá Jacobina. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1996.

[6] Anónimo, A Demanda do Santo Graal – O Manuscrito de Heidelberg. Organização e tradução de Marcus Baccega. Editora Hedra, São Paulo, 2015.

[7] Poesia e prosa medievais. Selecção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, Lisboa, 1988.

[8] Maria Gabriela Buescu, Perceval e Galaaz, cavaleiros do Graal. Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1991.

[9] Pierre Ponsoye, El Islam y el Grial. Ediciones de la Tradicion Unanime, Barcelona, 1984.

[10] Sampaio Bruno, Os Cavaleiros do Amor. Guimarães Editores, Lisboa, 1960.

[11] Vitor Manuel Adrião, Portugal, Mística e Mistério (Identidade e Património), cap. XI, “Corte de Amor na Cardiga”. Espiral Editora, Lisboa, 2022.

[12] O texto do Milagre de Ourique, que constitui o codicilo espiritual de Portugal, aparece publicado pela primeira vez nos Diálogos de Vária História de Pedro de Mariz, em 1597, que frei Bernardo de Brito viria a inserir na Crónica de Cister, livro III, capítulo II, Alcobaça, 1602, posteriormente reproduzido por frei António Brandão na Monarquia Lusitana, III Parte, livro X, capítulo V, Lisboa, 1632.

[13] Vitor Manuel Adrião, Portugal Templário (Vida e Obra da Ordem do Templo). Euedito, Lisboa, Janeiro de 2020.

[14] Amélia Pereira Hutchinson, European Relations of Portuguese Arthurian Literature. University of Manchester, England, 1984.

[15] Geoffrey of Monmouth, The Life of Merlin (Vita Merlini). University of Wales Press, England, 1973.

[16] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal – Paraísos Perdidos e Terras Prometidas. Círculo de Leitores, Rio de Mouro, Novembro/Dezembro de 2004.

[17] Maria Gabriela Buescu, ob. cit.

[18] Note-se, por exemplo, a produção, já em 1567, de um texto português intitulado Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda. Trata-se de uma novela de Cavalaria da autoria de Jorge Ferreira de Vasconcelos, que diz tê-la escrito “fundado na mais alta matéria que confiado no próprio engenho”. O seu personagem principal é o rei Sagramor (“Amor Sagrado”), nome frequentemente utilizado quer na obra de Chrétien de Troyes, quer na Demanda do Santo Graal, texto editado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2005.

[19] Heitor Megale, A Demanda do Santo Graal – das origens ao Códice Português. Ateliê, São Paulo, 2008.

[20] Thomas Malory (1405-1471), A Morte de Artur, três volumes. Assírio & Alvim, Lisboa, 1991, 1992, 1993.

[21] Albert Pauphilet, Étude sur la Queste del Saint Graal. Honoré Champion, Paris, 1968.

[22] Karen Pratt, The Cistercians and the Queste del Saint Graal. Reading Medieval Studies, t. XX, pp. 69-96, London, 1995.

[23] Albert Beguin, La Quête du Saint Graal. Yves Bonnefoy, Paris, 1958.

[24] M. de Riguer, artigo Grial (Leyenda del), em Enciclopedia de la Biblia, t. III, pp. 950-951. Ed. Garriga, Barcelona, 1969.

[25] Thiago José Borges, A tradição dos ‘Loca Sancta’: sacralização e representação dos espaços sagrados no Ocidente medieval cristão (séculos VIII-XV). Universidade de Brasília – Instituto de Ciências Humanas, Brasília, 2017.

[26] Trata-se do manuscrito 643 depositado na Torre do Tombo, parcialmente editado por Ivo de Castro, Livro de José de Arimateia, estudo e edição do código ANTT 643 (tese policopiada). Faculdade de Letras, Lisboa, 1984. Existe ainda a edição diplomática de Henry Hare Carter, The Portuguese Book of Joseph of Arimathea. Paleographical edition. The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 1967.

[27] Mário Roso de Luna, Uma Mártir do século XIX – Helena Petrovna Blavatsky. Editorial Pueyo, Madrid, 1924. Ainda a tradução que fiz desta obra, com introdução e notas pessoais, publicada pela Espiral Editora, Lisboa, 2018.

[28] Estará o autor a referir-se aos misteriosos Registos Akáshicos? Mas o que são estes? Para responder terei de recorrer aos conhecimentos iniciáticos da Sabedoria das Idades. Eles também são chamados de Memória da Natureza e Livro do Kamapa. Sendo Akasha o Éter, dos quatro tipos do mesmo – escuso dar os seus nomes sânscritos para não complicar o entendimento – o mais rarefeito é o 4.º Éter Reflector, assim chamado por reflectir, como se fosse uma espécie de negativo fotográfico, os pensamentos, emoções e actos do Plano Físico denso. Expressa o 4.º Plano Psicomental (Kama-Manásico) e por isso mesmo, por sua natureza bioplástica, reflecte os mesmos pensamentos e emoções gerados durante as multivariadas actividades humanas (literárias, artísticas, musicais, etc.) que ficam impressas no Éter ou Akasha como Registos Imperecíveis. São os 4.º e 3.º Éteres, Reflector e Luminoso, que contêm a memória mental, enquanto os 2.º e 1.º Éteres, Vital e Químico, detêm a memória cerebral. Quando a consciência humana age com noção extrafísica, é porque a memória cerebral acompanha a mental, ou seja, os quatro Éteres estão unidos e não há interrupção na consciência imediata, seja a dormir, seja a projectar-se fora do corpo, mas isto exige longa e rigorosa disciplina sob a direcção de um Adepto Vivo e dos seus Ensinamentos Iniciáticos.

OS ARTÍFICES DIONISIANOS (1820) – Por Hipólito José da Costa Sábado, Dez 17 2022 

NOTA INTRODUTÓRIA

Este ensaio, publicado em 1820, foi uma tentativa de provar que a Maçonaria Moderna derivou das antigas ideias filosóficas e religiosas da Grécia Antiga. Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (13.8.1774 – Londres, 11.9.1823), foi um cidadão do Reino de Portugal nascido no Brasil, mais propriamente na Colónia de Sacramento, actualmente território do Uruguai; jornalista, escritor, diplomata, maçom e viajante do mundo, foi preso por ser maçom pela Inquisição Portuguesa em 1802 e fugiu em 1805. Estabeleceu-se em Londres e escreveu, dentre vários, um livro em dois volumes sobre as suas experiências, Narrativa da Perseguição, em 1811. Ele deu início ao processo de formação da primeira Grande Obediência Maçónica Portuguesa e foi dos mais importantes maçons na história da Maçonaria Inglesa.

Octávio Pimenta Sousa

OS ARTÍFICES DIONISIANOS
(1820)

POR

HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA

Os antigos mistérios e as associações em que as suas doutrinas eram ensinadas dificilmente foram consideradas nos tempos modernos, sobretudo com o objetivo de condená-los e ridicularizá-los.

Os sistemas da mitologia antiga foram tratados como absurdos monstruosos, aviltando a razão humana, levando à idolatria e favorecendo a depravação de conduta.

Porém, eles merecem atenção, se forem contemplados os motivos dos seus criadores, ao invés da devassidão e ignorância dos seus corruptores. Quando os homens foram privados da luz da revelação, aqueles que formaram sistemas de moralidade para guiar os seus semelhantes, de acordo com os ditames da razão aperfeiçoada, mereciam os agradecimentos da humanidade, por mais deficientes que esses sistemas fossem, ou o tempo os tivesse alterado; respeito, não escárnio, deve acompanhar os esforços daqueles homens bons; embora os seus trabalhos se pudessem ter mostrado inúteis.

Sob esse ponto de vista, deve ser considerada uma associação, traçada até mais remota antiguidade, e preservada por incontáveis vicissitudes, mas mantendo as marcas originais do seu fundamento, escopo e princípios.

Parece que, em um período muito precoce, alguns homens contemplativos desejavam deduzir da observação da natureza regras morais para a conduta da humanidade. Astronomia foi a ciência selecionada para este propósito; a arquitetura foi posteriormente chamada para auxiliar este sistema; e os seus seguidores formaram uma sociedade ou seita, que será o objeto desta investigação.

A continuidade desse sistema será encontrada às vezes interrompida, um efeito natural de teorias conflituantes, da alteração dos costumes e da mudança das circunstâncias, mas ele fará as suas aparições em períodos diferentes, e a mesma verdade será vista constantemente.

A importância de calcular com precisão as estações do ano, para regular as atividades agrícolas, a navegação e outras ocupações necessárias na vida, deve ter tornado a ciência da astronomia um objeto de grande cuidado, no governo de todas as nações civilizadas; e a previsão de eclipses, e outros fenómenos, deve ter obtido para os eruditos nesta ciência, tal respeito e veneração da multidão ignorante, a ponto de torná-la extremamente útil para os legisladores, na formulação de leis para regular a conduta moral do seu povo.

As leis da natureza e as regras morais deduzidas delas foram explicadas em histórias alegóricas, que chamamos de fábulas, e essas histórias alegóricas foram gravadas na memória por cerimónias simbólicas denominadas mistérios, e que, embora posteriormente mal compreendidas e mal aplicadas, contêm sistemas com a mais profunda, a mais sublime e a mais útil teoria filosófica.

Entre esses mistérios encontram-se os notáveis e peculiares de Elêusis, Dionísio, Baco, Osíris, Adónis, Thamuz, Apolo, etc., que foram nomes adotados em várias línguas, e em vários países, para designar a Divindade, que era o objeto dessas cerimónias, e é geralmente admitido que o significado do Sol representava essas várias denominações (1).

Comecemos com um fato, não contestado, que nessas cerimónias uma morte e ressurreição era representada, e que o intervalo entre a morte e a ressurreição era por vezes de três dias, outras vezes de quinze dias.

Agora, pelo testemunho simultâneo de todos os autores antigos (2), as divindades chamadas Osíris, Adónis, Baco etc., eram nomes dados a ou a tipos que representam o Sol, considerados em diferentes situações e contemplados sob vários pontos de vista (3).

Portanto, essas representações simbólicas, que descreviam o Sol como morto, ou seja, escondido por três dias sob o horizonte, devem ter-se originado em um clima onde o Sol, quando no hemisfério inferior, está em uma certa estação do ano, escondido por três dias da vista dos habitantes.

Tal clima se encontra, de fato, ao norte até a latitude 66º, e é razoável concluir que, de um povo que vivia perto do círculo polar, deve se ter originado o culto do Sol, com tais cerimónias; e alguns supuseram que esse povo fosse o da Atlântida (4).

A adoração do Sol é geralmente atribuída aos ritos mitraicos e àqueles criados pelos magos da Pérsia. Mas se o Sol pudesse ser feito objeto de veneração, se a preservação do fogo pudesse ser considerada merecedora de cerimónias religiosas, é mais natural que o fosse com um povo que vivesse em um clima gelado, para quem o Sol era o maior conforto, cuja ausência sob o horizonte por três dias era um acontecimento deplorável, e cujo aparecimento acima do horizonte uma verdadeira fonte de alegria.

Não é assim na Pérsia, onde o Sol nunca fica escondido por três dias seguidos sob o horizonte, e onde os seus raios penetrantes estão tão longe de serem uma fonte de prazer, ao invés, estar protegido deles, desfrutar de sombras frescas, é um daqueles confortos que para obter, toda a engenhosidade era exercida. A adoração do Sol, e a manutenção do fogo sagrado, deve ter sido uma introdução estrangeira na Pérsia.

A conjectura é reforçada por alguns factos importantes, que, referindo-se a alusões astronómicas, colocam a cena fora da Pérsia, embora a teoria aí se encontre.

No Boun Dehesch (traduzido por Anquetil Du Perron, página 400), encontramos que “o dia mais longo do Verão é igual aos dois mais curtos do Inverno; e que a noite mais longa no Inverno é igual às duas noites mais curtas no Verão”.

Essa circunstância só pode ocorrer na latitude 49º 20´, onde o dia mais longo do ano é de dezasseis horas e dez minutos, e o mais curto de oito horas e cinco minutos.

Essa latitude está muito além dos limites da Pérsia, onde a História coloca Zoroastro, a quem as sagradas doutrinas do livro persa Boun Dehesch são atribuídas. Essa proporção, então, de dias e noites, como regra geral, só poderia ser verdadeira na Cítia, seja nas fontes dos rios Irtisch, Oby, do Jenisci ou do Slinger.

Sabemos muito pouco da história antiga desses cítios ou massagetes, mas sabemos que eles disputavam a sua antiguidade com os egípcios (5), e que o princípio acima, embora atribuído ao Zoroastro persa, só se aplica ao país desses cítios.

Mas deixemos a origem dos mistérios do Sol começar onde pode, eles eram celebrados na Grécia, em vários lugares, entre outros, em Appollonia, uma cidade dedicada a Apolo, e situada na latitude 41º 22´ (6). Nesta latitude o dia mais longo tem quinze horas, diferindo três horas da duração do dia em que o Sol está no equinócio: o inverso é o caso com as noites.

Esta circunstância será responsável pela preservação de três dias nestes mistérios, mesmo quando celebrados na Grécia, e também pelos quinze dias, ou representação do número de quinze em alguns dos ritos de Elêusis.

Os números misteriosos foram empregados para designar tais e semelhantes operações da Natureza, pois é dito que os símbolos e segredos pitagóricos foram emprestados dos ritos órficos ou de Elêusis; e que consistiam no estudo das ciências e artes úteis, unidas à teologia e à ética, e eram comunicadas em cifras e símbolos (7). Sugestões semelhantes, quanto à importância mística dos números, são encontradas em muitos outros autores (8).

As letras, representando números, formavam nomes cabalísticos, expressivos das qualidades essenciais daquilo que pretendiam representar; e mesmo os gregos, quando traduziram nomes estrangeiros, cujo significado cabalístico eles conheciam, eles os traduziram por letras gregas, de modo a preservar a mesma interpretação em números, que encontramos exemplificados no nome Nilo (9).

Mas no número três ao qual tantas alusões místicas e morais foram feitas, havia uma referência aos três círculos celestes, dois dos quais o Sol toca, passando sobre o terceiro no seu curso anual (10).

Os mistérios de Elêusis, os mesmos de Dionísio ou Baco, eram considerados por alguns como tendo sido introduzidos na Grécia por Orfeu (11): eles podem ter vindo do Egipto, mas o Egipto pode tê-los recebido em um período anterior ao dos persas, e estes novamente dos citas; mas, considerando-os apenas como os encontramos na Grécia, daremos aqui um esboço das suas cerimónias.

O aspirante a esses mistérios não era admitido como candidato até que tivesse atingido uma certa idade, e determinadas pessoas eram designadas para examiná-lo e prepará-lo para os ritos de iniciação (12). Aqueles cujas condutas foram consideradas irregulares, ou que haviam sido culpados de crimes atrozes, eram rejeitados; aqueles considerados dignos de admissão eram então instruídos por símbolos significativos nos princípios da sociedade (13).

Na cerimónia de admissão a esses mistérios, o candidato era primeiro conduzido a uma sala escura, chamada de capela mística (14). Lá, algumas perguntas eram feitas. Quando introduzido, o livro sagrado era apresentado, de entre dois pilares ou pedras (15): ele era recompensado pela visão (16): uma multidão de luzes extraordinárias eram-lhe apresentadas, algumas das quais dignas de observação particular.

Ele revestia-se com uma pele de ovelha; a pessoa oposta era chamada de revelador de coisas sagradas (17) e ela também estava vestida com uma pele de ovelha ou com um véu de cor púrpura, e no seu ombro direito uma pele de mula manchada ou matizada, representando os raios do sol e as estrelas (18). Numa certa distância ficava o portador da tocha (19), que representava o Sol; e ao lado do altar estava uma terceira pessoa, que representava a Lua (20).

Assim, percebemos que sobre essas assembleias presidiam três pessoas, em diferentes funções, e podemos observar, que no governo das caravanas nos países orientais, três pessoas também as dirigem, embora haja cinco oficiais principais, além dos três matemáticos; essas três pessoas são: o comandante-em-chefe, que governa tudo; o capitão da marcha, que detém o poder governante, enquanto a caravana se deslocar; e o capitão do resto, ou refresco, que assume o governo, assim que a caravana pára para se refrescar (21).

Alguns autores observaram a mesma divisão de poder na marcha dos israelitas pelo deserto, e consideram Moisés como o comandante-geral, Joshua o capitão da marcha, e talvez Aaron como o capitão do resto (22).

A sociedade de que falamos era governada por três pessoas, com atribuições diferentes a elas confiadas, por um costume da mais remota antiguidade.

Os mistérios, porém, não eram comunicados de uma só vez, mas por patamares (23), em três partes diferentes. A cerimónia da iniciação, propriamente falando, era dividida em cinco secções, como encontramos em uma passagem de Theo, que compara a filosofia àqueles ritos místicos (24).

Essas cerimónias, até aqui, parecem conter os mistérios menores, ou o primeiro e o segundo estágio do candidato no seu progresso ao longo das suas iniciações. Havia, no entanto, uma terceira fase, quando o próprio candidato era levado simbolicamente a se aproximar da morte e então retornar à vida (25).

Nesta terceira etapa da cerimónia, o candidato era estendido num divã (26), para representar a sua morte.

Quanto às festividades em que se celebravam esses mistérios, verificamos que no dia 17 do mês de Athyr (27) as imagens de Osíris estavam encerradas num caixão ou arca: no dia 18 era a busca (28); e no dia 19 era o achado (29).

No assassínio em fábulas ou histórias simbólicas, relacionadas a esses mistérios, encontramos Adónis morto e ressuscitado e as mulheres sírias chorando por Thamuz, etc.

Vamos agora examinar o que significa esta morte e ressurreição simbólicas, ou por certos personagens que dizem ter visitado o Hades e retornado novamente (30).

Parece que esse tipo, em todas as suas várias formas e denominações, indicava que o Sol passava para o hemisfério inferior e voltava para o superior (31).

Os egípcios, que observavam esta adoração ao Sol, sob o nome de Osíris, representavam o Sol na figura de um homem velho, pouco antes do solstício de Inverno, e o tipificavam por Serapis, tendo a constelação de Leão em frente a ele, a Serpente ou Hydra sob ele, o Lobo no leste de Leão e o Cão no oeste. Este é o estado do Hemisfério Sul à meia-noite nesse período do ano.

Os mesmos egípcios representaram o Sol pelo menino Harpócrates, no equinócio vernal; e então foi a festa da morte, sepultamento e ressurreição de Osíris; ou seja, o Sol no hemisfério inferior; apenas subindo e ascendendo no hemisfério superior.

Nesta situação superior, o sol era chamado de Horus, Mithras, etc., e saudado como Sol Invictus. Iremos agora apontar alguns outros símbolos para expressar os mesmos fenómenos, embora diferentes daqueles tipos de que estamos tratando no momento.

Nos monumentos astronómicos mitraicos, onde a figura de um homem é representada conquistando e matando um touro, há duas figuras ao lado com tochas: um apontando para baixo, o outro para cima.

Esses monumentos, onde foram retratados os mistérios em questão, o homem matando e conquistando o touro, representa o Sol, passando para o hemisfério superior, pelo signo de Touro, que naquele remoto período (quatro mil e seiscentos anos antes de nossa era) era o signo equinocial. Os dois portadores da tocha, um apontando para baixo e o outro para cima, representam o Sol descendo para o hemisfério inferior e subindo novamente (32).

No tempo remoto antes aludido, o Sol entrara no signo de Touro, no equinócio de Verão, e o ano seria iniciado neste período para os astrónomos egípcios (33). Posteriormente, em consequência da precessão dos equinócios, ocorria o equinócio de Verão no signo de Áries; portanto, parte dos egípcios transferiram a sua adoração do touro ou bezerro para o carneiro (34); enquanto outros continuaram a adorar o touro (35).

Podemos explicar isso na linguagem dos nossos astrónomos modernos, dizendo que alguns dos eruditos egípcios continuavam a calcular pelo Zodíaco móvel, enquanto outros calculavam o ano pelo Zodíaco fixo; e esta circunstância produziu uma divisão de seitas no povo, sendo uma divisão de opinião, entre os eruditos.

Da mesma forma, pela mesma precessão dos equinócios, o Sol passou de Áries para Peixes no equinócio primaveril, cerca de trezentos e trinta e oito anos antes de nossa era; no entanto, o início do ano continuou a ser contado a partir de Áries. Se a astronomia egípcia e a religião egípcia existissem então com o mesmo vigor, ambas teriam talvez sofrido uma alteração semelhante; mas os sistemas egípcios foram naquele período quase aniquilados.

Podemos observar, porém, que os cristãos, no início da nossa era, marcavam os seus túmulos com peixes, como um emblema do cristianismo, para distinguir os seus sepulcros daqueles dos pagãos, por um símbolo desconhecido por eles.

Retornando desta curta digressão ao nosso propósito imediato, temos que observar que, se aquelas cerimónias e símbolos pretendiam representar o Sol e as leis dos seus movimentos, esses mesmos fenómenos da Natureza foram estudados com uma visão moral, como sendo eles próprios tipos ou argumentos para uma filosofia mais sublime ou metafísica; e as regras morais daí deduzidas ficaram gravadas na memória por aquelas imagens e representações vivas.

O surgimento do Sol no hemisfério inferior e o seu retorno foram contemplados como uma prova ou como um símbolo da imortalidade da alma, um dos mais importantes, bem como dos mais sublimes princípios da Filosofia Platónica (36).

As doutrinas da espiritualidade e da imortalidade da alma, explicadas por esses símbolos, eram muito pouco compreendidas, mesmo pelos iniciados; assim, descobrimos que alguns deles (37) tomaram esses tipos para significar apenas o corpo presente, pelas suas descrições das moradas infernais; considerando que o verdadeiro significado desses mistérios inculcou a doutrina de um futuro estado da alma com futuras recompensas e punições e que tais eram as doutrinas desses filósofos, é mostrado por muitas e indiscutíveis autoridades (38).

A união da alma com o corpo era considerada como a morte da alma, e a separação como a ressurreição da alma (39); e tais tipos de cerimónias tinham a intenção de imprimir a doutrina da imersão da alma na matéria, como está bem atestado (40).

Pelo emblema do Sol descendo para o hemisfério inferior também estava representada a alma do homem, que por ignorância e inculto, estava num estado comparado ao do sono, ou quase morto; mistério esse que pretendia estimular o homem ao aprendizado das ciências (41).

Os egípcios também consideravam a matéria como uma espécie de lama ou lodo, na qual a alma estava imersa (42); e num autor antigo encontramos uma recapitulação dessas teorias no mesmo sentido (43).

Os persas, que seguiram os princípios de Zerdoust, chamados pelos gregos de Zoroastro, receberam as mesmas doutrinas místicas da contemplação do Sol, feita também a mesma aplicação metafísica à alma, da passagem do Sol pelos signos do Zodíaco (44).

Além disso, o Sol era considerado o símbolo do princípio ativo, enquanto a Lua e a Terra eram símbolos do passivo (45).

O próprio Sol, considerando a sua influência benéfica no mundo físico, foi escolhido como o símbolo da Divindade, embora posteriormente tomado pelo vulgo como uma Divindade (46).

Deve ser aqui particularmente observado que os diferentes nomes que os egípcios (dos quais os gregos os aprenderam) deram a Deus, em vez de significar vários deuses, eram apenas expressões dos diferentes efeitos produtivos de um único Deus (47). Não muito diferente do que os judeus derivam do Grande Nome Tetragramaton (48).

As fábulas, alegorias e tipos dos antigos, sendo de três classes (49), às vezes importam vários significados; portanto, algumas das cerimónias às quais está ligada a importância sublime também são aplicadas para tipificar operações menos dignas, no sistema natural. Assim, por exemplo, a fábula de Proserpina, que alude à imersão da alma no corpo, também foi empregada para simbolizar a operação da semente no solo (50).

Mas a doutrina geral de Platão da descida da alma às trevas, do corpo, dos perigos das paixões, dos tormentos dos vícios, parecem ser perfeitamente descritas por Virgílio (51), embora este poeta fosse da seita epicureu, a mais elegante do seu tempo.

Os mistérios menores representavam, como vimos, a descida da alma ao corpo e as dores que nele sofreu. Os mistérios maiores tinham a intenção de tipificar as visões esplêndidas, ou o estado feliz da alma, tanto aqui como no futuro, quando purificado das contaminações da natureza material. Essas doutrinas também são inculcadas pelas fábulas das Ilhas Afortunadas, dos Campos Elíseos, etc. As diferentes purificações nesses ritos eram símbolos da gradação das virtudes, necessária à reascensão da alma. A pureza interior, da qual as purificações externas eram símbolos, só pode ser obtida pelo exercício dessas virtudes (52).

À alusão a essas virtudes deve ser entendido o que diz Sócrates (53), que cabe aos filósofos estudar para morrer e ser eles próprios a morte; e como ao mesmo tempo ele reprova o suicídio, tal morte não pode significar outra senão a morte filosófica, ou o exercício do que ele chama de virtudes catárticas.

Se esse era o significado e a importância dos ritos, símbolos e cerimónias de Elêusis e Dionisianas, deve-se permitir que uma sociedade ou seita, que foi empregada na contemplação de tais verdades sublimes, não possa ser considerada insignificante ou devassa.

Os próprios padres cristãos, que tão fortemente atacaram a religião pagã, confessaram a utilidade desses símbolos (54); e que as circunstâncias anteriores à iniciação nesses mistérios tendiam a excluir noções ímpias e preparar a mente para ouvir a verdade (55).

Esses mistérios foram ocultados do vulgo; porque seria uma prostituição ridícula de tais teorias sublimes divulgá-las à multidão incapaz de compreendê-las, quando mesmo muitos dos iniciados, por falta de estudo e aplicação, não compreendiam todo o significado dos símbolos.

À multidão foi contada apenas de forma abstracta a doutrina de um estado futuro de recompensas e punições, e se familiarizou com o calendário, o resultado de observações astronómicas, cujo conhecimento estava relacionado com as suas festividades e actividades agrícolas. Eles também aprenderam outras partes práticas da ciência calculadas para um uso geral. O segredo desses mistérios foi a primeira causa de censura contra eles; em seguida veio, sem dúvida, a depravação dos seus seguidores e a perversão dessas assembleias em reuniões de convívio primeiro, e depois nas associações mais devassas.

O segredo também era imposto pelas leis, era morte revelar qualquer coisa pertencente aos mistérios de Elêusis; divulgar de forma imprudente qualquer coisa sobre eles, era considerado até indecoroso; disso, encontramos um muito conspícuo exemplo em Plutarco (56).

Por respeito a este costume, os estudiosos eram, em geral, apenas instruídos nas doutrinas exotéricas (57). As doutrinas acromáticas eram ensinadas apenas a uns poucos selecionados, por comunicação privada e viva voce.

Porém, quando a ignorância dos próprios mestres desses mistérios fazia com que as suas formas apenas fossem atendidas, a essência foi perdida, a sombra apenas permaneceu; e, então, mesmo essas formas e cerimónias eram frequentadas por pessoas que desconheciam o seu significado e eram perversas o suficiente para direcioná-las para os seus interesses particulares, como uma máquina empregada para enganar o povo e para ocasiões de devassidão e depravação. Vamos dar um exemplo disso.

Os mistérios de Elêusis, ou do Sol, foram unidos ou análogos aos de Dionísio ou Baco; porque, de acordo com a teologia órfica, o intelecto de cada planeta era denominado Baco: então, quando o Sol era considerado a inteligência espiritual, que movia ou fazia este planeta se mover, no seu círculo anual, ele era denominado Trietericus Baco (58).

Assim, as cerimónias de Baco, eram acompanhadas de júbilo, como o triunfo do espírito sobre a matéria; mas esta circunstância, tão intimamente conectada com as noções sublimes dos mistérios de Elêusis, foi completamente transformada em um mero banquete e procissões de pessoas bêbadas, que nas cerimónias nada sabiam mais do que carregar galhos de árvores nas suas mãos (59).

Mais ainda: um padre depravado introduziu aqueles mistérios bacanais em Roma, com os piores propósitos, e ao alarmar o Senado, a punição mais severa foi-lhe infligida e aos seus seguidores (60).

Foi em consequência desses abusos que Sócrates se recusou a ser iniciado (61), e o mesmo fez Diógenes, alegando que Patæcion, um ladrão notório, havia obtido a iniciação (62); Epaminondas também, e Agesilau nunca o aprovou (63).

Mas se aqueles que desejavam ser licenciosos ao se revestiram desses mistérios, isso não tem nada a ver com os princípios originais da instituição. Pois a pureza dos seus devotos era levada, de acordo com os mistérios primitivos, ao ponto mais delicado e escrupuloso (64).

Depois de autoridades tão respeitáveis, como já referimos, devemos rejeitar, como calúnias imprudentes, a afirmação de Tertuliano, que diz que as partes naturais de um homem foram encerradas na arca transportada nas procissões daqueles mistérios; Teodoreto e Arnóbio dizem que eram as partes de uma mulher; tais afirmadores não tinham meios de averiguar o que não era conhecido de ninguém, fora do recinto daqueles mistérios mais recônditos (65).

Deveríamos, antes, supor que na arca, carregada na procissão, e que se dizia encerrar o corpo de Osíris, esferas foram depositadas, representando o nosso Sistema Solar (66).

A respeito dessas acusações, encontradas em alguns dos escritores eclesiásticos, devemos também observar que muitos deles, guiados por um zelo equivocado pela religião cristã, desfiguraram em grau muito condenável os antigos monumentos históricos, tomando, por exemplo, a maneira pela qual a História do Egipto, escrita por Manethon, foi transmitida a nós por aqueles escritores eclesiásticos (67); outros de tais escritores, na verdade, nada sabiam dos mistérios egípcios (68).

A conclusão, portanto, é que os motivos dessas instituições eram bons e puros, como tendendo ao estudo da ciência e prática da moralidade, embora as mesmas instituições posteriormente degeneraram (69); e essa degeneração foi seguida pela ruína do Estado, conforme previsto pelo próprio Trimegistus, que nesta predição provou quão grande filósofo e político ele foi (70).

Tendo assim estabelecido qual era o significado e importância dos mistérios de Elêusis ou Dionisianos entre os antigos gregos, que nos transmitiram o conhecimento deles, e tendo mostrado que as cerimónias não se destinavam (só), na sua origem, ao culto do Sol, considerado uma divindade, passaremos a examinar como esses mistérios foram comunicados a outras nações pelos gregos.

Cerca de cinquenta anos antes da construção do Templo de Salomão em Jerusalém (71), uma colónia de gregos, principalmente jónios, reclamando dos limites territoriais do seu país com uma população crescente, emigrou; e tendo se estabelecido na Ásia Menor, deram a esse país o nome de Jónia (72).

Sem dúvida que as pessoas carregavam consigo as suas tradições, ciências e religião, e os mistérios de Elêusis (73) entre os demais. Consequentemente, descobrimos que uma das suas cidades, Biblos, era famosa pela adoração de Apolo, assim como Apolónia havia sido com os seus ancestrais (74).

Esses jónicos, participando do estado de civilização aprimorado em que a sua pátria mãe, a Grécia, então se encontrava, cultivavam as ciências e as artes úteis; e tornaram-se mais conspícuos na arquitectura e inventaram ou aprimoraram a ordem chamada pelo próprio nome de Jónica.

Eles formaram uma sociedade cujo propósito era se dedicar à construção de edifícios. A assembleia geral da sociedade foi realizada pela primeira vez em Theos; mas depois, em consequência de algumas comoções civis, passou para Lebedos (75).

Essa seita ou sociedade era agora chamada de Artífices Dionisianos, já que Baco era considerado o mentor da construção de teatros, e realizavam as festividades dionisianas (76). Posteriormente, eles se estenderam à Síria, Pérsia e Índia (77).

A partir desse período, a ciência da Astronomia, que deu origem aos símbolos dos ritos dionisianos, passou a se relacionar com tipos extraídos da arte de construir (78).

Essas sociedades jónicas dividiam-se em diferentes secções, ou assembleias menores (79). Algumas dessas associações pequenas ou dependentes, também tinham os seus nomes distintos (80).

E eles estenderam as suas visões morais, em conjunto com a arte de construir, para muitos propósitos úteis e para a prática de actos de benevolência (81).

Encontramos registado que essas sociedades, com a sua utilidade, foram muitos anos depois investigadas por Cambises, rei da Pérsia, que as aprovou e deu a elas grandes marcas de favores (82).

É essencial observar que essas sociedades tinham palavras significativas para distinguir os seus membros (83); e para o mesmo propósito usavam emblemas retirados da arte de construir (84).

Notemos agora a passagem dos Artífices Dionisíacos para a Judeia. Salomão obteve de Hirão, rei de Tiro, homens hábeis na arte de construir, quando o Templo foi erguido em Jerusalém (85). Entre os estrangeiros, que vieram nesta ocasião, encontramos homens de Gabel, chamados Giblim (86); quer dizer, os Jónios estabeleceram-se na Ásia Menor, pois Gabel, ou Biblos, era aquela cidade onde ficava o Templo de Apolo, onde eram celebrados os ritos de Elêusis ou mistérios dionisianos, como já referimos (87).

Poderíamos, além desse argumento, produzir alguma autoridade, pois Josefo diz que o estilo grego de arquitectura foi decididamente usado no Templo de Jerusalém (88).

Depois disso, não podemos nos surpreender ao descobrir que as cerimónias de Elêusis, ou Thamuz, deveriam ter sido introduzidas na Judeia, particularmente, porque o próprio Salomão, após ter entrado nas alusões científicas na construção do Templo, não estaria livre da acusação de grosseira superstição da idolatria (89).

Assim, encontramos alguns anos depois o profeta Ezequiel reclamando que as mulheres israelitas choravam por Thamuz em certo período do ano, nos próprios portões do Templo (90).

Mas é natural supor que os Artífices Dionisianos não teriam tentado introduzir esses ritos entre os judeus religiosos que, por mera questão de idolatria, era simbologia representativa do Sol. As ideias dos israelitas, no que concerne à unidade de Deus, ter-se-iam revoltado com isso, induzindo uma crença no politeísmo dos gentios.

O símbolo, portanto, nesses mistérios, deve ter sido explicado aos judeus, para significar apenas o Sol, no sentido verdadeiro e original desses mistérios; ou seja, como uma imagem da bondade de Deus para com o homem; e os movimentos aparentes daquela luminosidade, primeiro como o guia para fixar as estações; em seguida, como tipos ou lembranças da imortalidade da alma; pois este dogma não aparece nem está claro nos livros dos judeus antes desse período, nem universalmente admitido entre eles em data posterior (91).

Para evitar, portanto, qualquer alusão à idolatria nessas cerimónias e símbolos, outro personagem ou outro nome deve ter sido substituído por Adónis ou Osíris; e como uma morte e ressurreição simbólicas eram essenciais na alegoria do sistema, a história da morte de outro indivíduo deve ter sido substituída…

No entanto, no enquadramento desta nova história simbólica, tais circunstâncias deveriam ser relacionadas ou conectadas com a morte daquele personagem, de forma a tipificar e explicar a totalidade dos mistérios de Elêusis, ou a passagem do Sol do hemisfério superior para o inferior, e o seu retorno novamente (92).

Na formação desse novo sistema, ou melhor, nova alegoria ao mesmo sistema, embora o nome do herói tenha sido alterado, as circunstâncias devem ter sido preservadas, na medida que são consistentes com os novos nomes…

Toda a construção do Templo favoreceria uma alusão desse tipo. A pedra fundamental foi colocada no segundo dia do segundo mês (93), o que corresponde em média ao dia 20 de Abril, contando o ano sagrado no Zodíaco fixo.

Agora, se rectificarmos o globo para a latitude de Jerusalém (31º 30´) naquele período do ano, teremos o Sol em Áries, o Sol representado por um carneiro ou ovelha, ou um homem com pele de ovelha, como o hierofante foi representado nos mistérios de Elêusis (94).

Portanto, o próprio período do ano em que a pedra fundamental do Templo foi lançada, seria uma oportunidade de estabelecer sobre ela um novo sistema alegórico, para explicar o antigo mistério.

Se supormos que o globo representa o Mundo na posição acima descrita, o neófito estando a oeste de frente para o hierofante, que se encontra a leste, ao nascer do Sol, o candidato se encontrará entre os dois trópicos, representados pelas duas colunas (95) que eram colocadas na entrada oeste daquele Templo…

Para melhor compreender a facilidade com que o antigo sistema poderia ser adaptado às circunstâncias do Templo de Jerusalém, devemos considerar os seus simbolismos típicos, de acordo com as noções dos judeus e alguns dos padres cristãos.

Os templos construídos em homenagem aos vários deuses eram moldados de maneira a fazer alusão aos supostos atributos de tais deuses (96). Mas os platónicos supunham que o Universo era o verdadeiro Templo do verdadeiro e único Deus (97). O Templo, dedicado ao Deus verdadeiro, era para ser um reflexo do Universo.

Assim, descobrimos que o Templo de Jerusalém estava situado de leste a oeste, e com dimensões e tipos, todos adaptados para representar o sistema universal da Natureza (98).

Se o Templo de Salomão era um reflexo do Universo, para simbolizar que Jeová não era um Deus local, mas o Deus único, Senhor do Universo, a tradição também nos diz que o local de reunião dos Artífices Dionisianos era alegoricamente descrito, pelas suas dimensões, como um símbolo do Universo, em comprimento, largura, altura e profundidade.

Os antigos representavam o curso das estrelas pelo enrolamento de uma serpente; mas se esta fora colocada de forma a ter o rabo na sua boca, então representava a eternidade.

Agora, se considerarmos o início do ano civil entre os hebreus, o mês Tisri, que estava no equinócio de Inverno (99), o Sol, procedendo dali, se aproxima do sul e toca o trópico de Capricórnio; então retrocede em direção ao norte, cruzando o equinócio e tocando o trópico de Câncer; daí retrocedendo novamente para o sul, chega ao equinócio, terminando o ano.

Esses pontos, em um mapa estendido dos dois hemisférios, parecem separados; mas a imagem da serpente mordendo o rabo, representaria o final do ano, encontrando o início do seguinte (100).

O Sr. Hutchinson provou que os globos, no topo das duas colunas, no pórtico do Templo, eram orreries, ou representações mecânicas dos movimentos dos corpos celestes (101).

Penso que, depois dessas circunstâncias, que tantas facilidades proporcionaram à introdução do sistema dos Artífices Dionisianos na Judeia, a continuação do mesmo, em períodos posteriores, não pode ser de difícil explicação. Encontramos declarado, no Livro dos Macabeus (102), que existia naquela época na Judeia uma sociedade chamada de Assidianos ou Cassidianos, cuja função era cuidar das reparações do Templo.

Destes Cassidianos procedeu a seita ou sociedade dos Essénios, que, de acordo com Philo e Josefo, eram iguais aos Assidianos; e provavelmente, porque eles não admitiam mulheres nas suas assembleias, Plínio (103) diz que eles foram propagados sem esposas. Josefo (104) menciona o primeiro dos Essénios, na época de Aristóbulo e Antígono, filho de Hircanus, mas Suidas (105) e outros achavam que eram um ramo dos Recabitas, que subsistiram antes do cativeiro.

Josefo, provavelmente ignorante dos princípios secretos dos Essénios, também os acusa de adorar o Sol ou de fazer orações antes do nascer do Sol, como que para incitá-lo a se levantar. Mas essa mesma acusação, mais uma vez, os identifica com a seita dos Artífices Dionisianos, que, como parece pelas razões acima expostas, deveriam adorar o Sol. Josefo relata muitos outros detalhes, pelos quais, de maneira surpreendente, os traz ao que relatamos das outras sociedades que os precederam (106). Também aponta a conformidade das suas ideias com as dos platónicos e dionisianos, sobre a natureza da alma (107). Em suma, eles usaram símbolos, alegorias e parábolas à maneira dos antigos (108).

As práticas desses Essénios são representadas por Philo (109) como as mais pacíficas e cheias de virtudes sociais; e aqueles entre eles que eram mais entusiastas dos seus princípios, tinham os seus bens em comum, como os cristãos tinham nos primeiros tempos do Cristianismo (110).

Os Essénios não tiveram as suas cerimónias e mistérios registados na História, mas até agora sabemos que eles transmitiram à posteridade as doutrinas que recebiam dos seus ancestrais (111); tinham também placas distintivas (112), e os banquetes de festa (113), embora não pareça que seguissem exclusivamente a profissão de construtor ou arquitecto.

Fora da Judeia, encontramos também sociedades que se distinguem pelos mesmos personagens dos Essénios e com os mesmos princípios de Platão; pois os Pitagóricos também empregavam os símbolos da arte de construir (114). Os Artífices Dionisianos também existiam na Síria, na Pérsia e na Índia (115); e os mistérios de Elêusis foram preservados na Europa, mesmo em Roma, até ao século VIII da era cristã (116).

Depois dessa época, a Europa foi vitimada pelas nações mais bárbaras que, perseguindo todas as tradições científicas, espalharam uma era de escuridão geral, na qual todos os trabalhos dos antigos, em favor da Humanidade, estavam quase perdidos na ignorância geral dos seus tempos.

Essas mesmas sociedades e seitas também haviam sido muito abusadas em períodos anteriores, e as cerimónias convertidas, como vimos, para os piores propósitos: esta foi outra causa poderosa para o seu declínio e ruína. O Cristianismo era então na Europa o único vínculo de moralidade, pelo qual o poder poderia, em alguma medida, ser controlado ou restringido. Quando as ciências começaram a se reviver, prevaleceu um fanatismo geral e apareceu um espírito de perseguição, que fez com que as antigas doutrinas dos filósofos e os velhos sistemas de moralidade fossem considerados apenas descendentes do ateísmo e práticas de idolatria.

Nestas circunstâncias, os Eleusianos, os Artífices Dionisianos, os Assidianos ou os Essénios caíram em tal esquecimento que nenhuma menção relevante a eles é feita na História contemporânea.

No século XI, durante as guerras das cruzadas, algumas sociedades foram instituídas na Palestina e na Europa, que adoptaram alguns regulamentos semelhantes aos das antigas fraternidades. Mas foi na Inglaterra, e principalmente na Escócia, onde os restos do antigo sistema, identificado com o dos Artífices Dionisianos, foram revividos nos tempos modernos.

Cætera desunt.

NOTAS

(1) O número de autoridades para provar isso são coletados em Kirker, vol. I p. 288.

Ogygia me Bacchum canit,
Osiris Egyptus putat,
Arabiæ gens Adoneum.

Ausonius em Myobarbum Epig. 29.

(2) Meursius reuniu todas as autoridades e fragmentos encontrados em autores antigos sobre as cerimónias de Elêusis.

(3) Plutarchus, De Iside et Osiride.

(4) Pesquisas sobre os Atlantes.

(5) Herodotus.

(6) Martiniere, Dicc. Geogr. art. Appollonia.

(7) Jamblicus, part. I, cap. 32.

(8) Plutarchus (in Vitæ Numæ) diz que “oferecer um número ímpar aos deuses celestiais e um número par aos terrestres é apropriado. O sentido desse preceito está oculto ao vulgar”.

O mesmo Plutarco (in Vitæ Lycurgi) explicando o número dos senadores espartanos, que tinham 28 anos, diz: “algo talvez haja em ser um número perfeito formado por sete, multiplicado por quatro, e com isso o primeiro número depois de seis que é igual para todas as suas partes”.

Outra prova da importância mística dos números é encontrada em Plutarco (in Vitæ Fabii): “A perfeição do número três consiste em ser o primeiro dos números ímpares, o primeiro dos plurais e conter em si as primeiras diferenças, e os primeiros elementos de todos os números”.

(9) A fertilidade causada pelas inundações do Nilo sobre o país adjacente fez com que este rio fosse considerado uma representação mística do Sol, pai de toda a fecundidade da terra; e, portanto, um nome foi dado a ele contendo o número 365, ou dias no ano solar. Os gregos preservaram assim o nome:

Ν {Greek N} 50
Ε {Greek E} 5
Ι {Greek I} 10
Λ {Greek L} 30
Ο {Greek O} 70
Σ {Greek S} 200 = 365.

(10) Potter’s, Grec. Antiq.

(11) Dionysius Siculus, Lib. VI, diz que os atenienses criaram os mistérios de Elêusis, mas no primeiro livro da sua biblioteca ele diz que foram trazidos do Egipto por Erecteus. Theodoret, Lib. Grec. Affect, diz que foi Orfeu quem criou esses mistérios, imitando, porém, as festividades egípcias de Ísis. Arnobius e Lactantius descrevem esses mistérios, assim como Clemens.

(12) Hesichius in γδραυ (greek gdrau). “Eles foram exortados a dirigir suas paixões”. Porphir. ap. Sob. Ecclog. Phis., p. 142. “Para merecer promoção, melhorando suas mentes”. Arrian in Epictet. Lib. 3, cap. 21.

(13) Clemens, Strom. Lib. I., p. 325. Lib. VIII., p. 854.

(14) μυσχοσ ςηχοσ (greek, musxos shxos).

(15) πετρωμα (greek, petrwma).

(16) αντοψια (greek, antopsia).

(17) ιεροφαντεσ (greek, ierofantes).

(18) Mairobius, Saturnalia, lib. I, p. 8. Vou reproduzir aqui uma tradução em português desta passagem (p.11), que li em algum lugar.

“Aquele que deseja a pompa da vestimenta sagrada, para expressar o corpo resplandecente do Sol, deve primeiro assumir um véu de brilho púrpura. Como feixes de luz branca combinados com luz ígnea, no seu ombro direito, a seguir, a pele larga de uma mula, amplamente diversificada manchada com orgulho, deve pendurar uma imagem do polo divino, e estrelas do sidéreo cujas orbes brilham eternamente, uma esplêndida zona dourada, então, no seu colete. Em seguida, ele deve tomá-lo e amarrá-lo em torno do seu peito, Em sinal poderoso como com luz dourada, o Sol poente dos últimos limites da Terra, com a noite repentina emergindo com uma força incomparável, envia dardos através das ondas do velho oceano em seu curso; um esplendor sem limites, portanto, consagrado no orvalho, joga em seus redemoinhos, glorioso à vista, enquanto suas águas circunfluentes se espalham, cheio na presença do Deus radiante; mas o círculo do oceano, como uma zona de luz, os seios largos do Sol envolvem e encantam a visão do anel da varinha.”

(19) δαδουχος (greek, dadouxos).

(20) Atheneus, Lib. V. cap. 7. Apuleius, Lib. II, Metamorph.

(21) Fragmentos, adicionados a Calmet’s Dict. Dissertação sobre as Caravanas, extraída de Col. Campbell’s Travels in India.

(22) Ib.

(23) “A parte perfectiva precede a iniciação, e a iniciação precede a inspeção”. Proculs. in Theol. Plat., lib. IV., p. 220.

(24) Mais uma vez, a filosofia pode ser chamada de iniciação nas cerimónias sagradas e na tradição dos mistérios genuínos, pois existem cinco partes da iniciação. A primeira é a purgação anterior, pois os mistérios não são comunicados a todos os que desejam recebê-los, mas há certos personagens que são impedidos pela voz do pregoeiro, como aqueles que possuem mãos impuras e uma voz inarticulada, visto que é necessário que aqueles que não são expulsos dos mistérios sejam primeiro refinados por certas purgações; mas após a purgação, a tradição dos direitos sagrados é bem-sucedida. A terceira parte é denominada inspeção. E a quarta, que é o fim, a fixação das coroas: para que o iniciado possa, por esses meios, ser habilitado a comunicar a outros os ritos sagrados nos quais foi instruído; se depois disso ele se tornar o portador da tocha, ou um intérprete dos mistérios, ou sustentou alguma outra parte do sacerdócio, recebe a quinta, que é produzida a partir de tudo isso: é a amizade com a Divindade e o gozo dessa felicidade, que surge da conversa íntima com os deuses. Theo of Smyrna, in Mathemat., p. 18.

(25) “Aproximei-me dos confins da morte, e pisando na soleira de Proserpina, e sendo carregado por todos os elementos, voltei à minha situação primitiva. Nas profundezas da meia-noite vi o sol brilhar com uma luz esplêndida, junto com os deuses infernais e sobrenaturais, e me aproximando mais dessas divindades, eu prestei o tributo de adoração devota”. Apuleius, Metamorph., lib. III.

(26) πασοσ (greek, pasos).

(27) Neste mês, Athyr, de acordo com o ano juliano, corresponde a Dezembro, ou solstício de Inverno; mas com os judeus, o mês de Thamuz, quando as solenidades de Adónis eram celebradas na Judeia, era em Junho, ou solstício de Verão. A razão parece ser que os judeus, tirando este mês do ano vago dos egípcios (e não do ano fixo), estabeleceram Thamuz no solstício de Verão. Selden, De diis Syriis. Kirker, vol. I., p. 291.

(28) ζητηςισ (greek, zhthsi), Plutarchus.

(29) ευρεςισ (greek, euresis), Plutarchus.

(30) Devemos aqui observar que as fábulas pretendiam transmitir mais de um significado; em prova disso copiamos a seguinte passagem: “Das fábulas, algumas são teológicas, outras animistas (ou relacionadas à alma), outras materiais, e, por último, outras misturadas de todas essas. As fábulas são teológicas quando não empregam nada de corpóreo, mas especulam sobre a própria essência dos deuses, como a fábula que afirma que Saturno devorou seus filhos: nada mais insinua do que a natureza de um deus intelectual, uma vez que todo intelecto retorna a si mesmo. Mas especulamos fisicamente as fábulas quando falamos sobre as energias dos deuses sobre o mundo; como, quando considerando Saturno igual ao Tempo, e chamando as partes do Tempo de filhos do Universo, afirmamos que os filhos são devorados por seu pai. Mas usamos as fábulas de modo animista quando contemplamos as energias da alma; porque a intelecção de nossas almas, embora por uma energia discursiva, ela corre para outras coisas, mas permanecendo seu pai. Por último, as fábulas são materiais, como os egípcios empregam ignorantemente, ao considerar e chamar de corpóreas divindades da Natureza, como Ísis, Terra, Osíris, Humidade, Tifão, Calor; ou ainda denominando água de Saturno, frutas de Adónis e vinho de Baco. E, na verdade, afirmar que eles são dedicados aos deuses, da mesma maneira que ervas, pedras e animais, é parte dos homens sábios; mas chamá-los de deuses é apenas território de tolos e loucos; a menos que falemos da mesma maneira como, quando de acordo com o costume estabelecido, chamamos a órbita do Sol e seus raios. Mas podemos perceber o tipo misto de fábulas, bem como em muitos outros detalhes, quando se referem àquela discórdia no banquete dos deuses através de uma maçã de ouro, que gerou uma disputa entre as deusas, tendo eles sido enviados por Júpiter para tomar o julgamento de Paris, e que encantado com a beleza de Vénus, deu-lhe a maçã em preferência às demais. Pois nesta fábula o banquete denota os poderes supramundanos dos deuses, e por conta disso uma conjunção subsistente entre eles; mas a maçã de ouro denota o mundo que, por causa da sua composição de naturezas contrárias, não é indevidamente dito para ser lançado pela discórdia ou contenda. Mas, novamente, uma vez que diferentes dons são dados ao mundo por diferentes deuses, eles parecem competir entre si pela maçã. E uma alma que vive de acordo com os sentidos (pois esta é Paris) e não percebe outros poderes no Universo, afirma que a maçã é a única a beleza de Vénus. Destas espécies de fábulas, as teológicas pertencem aos filósofos, as físicas e animistas aos poetas. Mas eles foram misturados com ritos iniciais, e a intenção de todas as cerimónias místicas é nos unir com o mundo e os deuses”. Salust, o Filósofo Platónico.

(31) Orpheus, Hymn. Sol and Adon.

(32) Kirker, vol. I. p. 217. Vide Hide, Hist. Vet. Persar., p. 113.

(33) “Os egípcios começaram a contar os seus meses a partir do momento em que o Sol entra, agora, no início do signo de Áries”. Rabb. A. Seba.

(34) Strabo (L. 17) informa-nos que no seu tempo os egípcios não sacrificavam ovelhas, somente na Idade Tardia.

(35) “Por que ele (Arato) considera o início do ano em Câncer, quando os egípcios datam o início do ano em Áries?” Theon., p. 69. Herodotus (L. 2, cap. 24) diz que a estátua de Júpiter Amon tinha a cabeça de um carneiro, e Eusébio (Præparat. Evang., L. 3, cap. 12) conta-nos que o ídolo Amon tinha cabeça de carneiro com chifres de cabra.

(36) Também Píndaro, falando dos mistérios de Elêusis, deduz esta inferência:” Bem-aventurado aquele que, tendo visto as coisas comuns debaixo da terra, também sabe o que é o fim da vida, pois conhece o império de Júpiter”. Clemens, Strom., Lib. III. p. 518. “Desde que em Phædo ele venera com um silêncio condizente, a afirmação proferida nos Discursos Arcanos: que os homens são colocados no corpo, como em uma certa prisão, protegidos por um guarda, e testemunha, de acordo com as cerimónias místicas, as diferentes atribuições das almas puras e impuras no Hades; seus hábitos e o caminho triplo (p. 18) surgindo de suas essências, e assim, de acordo com as instituições paternas e sagradas, todas cheias de teoria simbólica, e das descrições poéticas sobre a ascensão e descida das almas, dos signos dionisianos, o castigo dos Titãs, as trivialidades e peregrinações no Hades, e tudo do mesmo tipo”. Proclus, in Comm. of Plauto’s Politics, p. 723.

(37) Macrobius.

(38) “Vivemos a morte deles e morremos a vida deles”, disse o próprio Macrobius.

(39) “Os antigos teólogos também testificam que a alma está no corpo, como se estivesse num sepulcro, para sofrer punição”. Clemens, Strom., Lib. III, p. 518.

(40) “Quando a alma desceu à geração, ela participa do mal e se precipita profundamente na região da dissimilitude, para se fundir inteiramente em nada mais do que na lama escura.” Novamente: “A alma, portanto, morre pelo vício, tanto quanto é possível para a alma morrer, e a morte da alma é, enquanto fundida ou batizada, por assim dizer, no corpo presente (pág. 19), para descer à matéria, e ser preenchida com sua impureza; e depois de partir deste corpo, ficar absorvida em sua imundície, até que ela retorne a uma condição superior, e eleve seus olhos do lodo opressor, e lá adormeça.” Plotino, em Enead. I, Lib. VIII, p. 80. “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” Rom. VII, v. 24.

(41) “Aquele que não consegue, pelo exercício da razão, definir a ideia do bem, separando-a de todos os outros objetos, e penetrando, como numa batalha, por meio de todo tipo de argumento; esforçando-se por refutar, não segundo a opinião, mas segundo a essência, e procedendo através de todas essas energias dialéticas, com uma razão inabalável: aquele que não pode fazer isso, você não diria que ele não conhece o próprio bem, nem qualquer coisa que é devidamente denominado bom? E você não afirmaria que tal pessoa, quando apreende qualquer certa imagem da realidade, a apreende mais por meio da opinião do que da ciência; que na vida presente ele está mergulhado no sono e familiarizado com as ilusões dos sonhos, e que antes de ser despertado para um estado de vigilância, ele descerá ao Hades e será dominado por um sono perfeitamente profundo?” Platão, De Rep., Lib. VII.

(42) Os egípcios chamavam de matéria (que eles simbolicamente denominavam água) a escória ou sedimento da primeira vida, sendo a matéria, por assim dizer, um certo lodo ou lama. Simplicius, in Arist. Phis., p. 50.

(43) Por fim, para que eu possa compreender a opinião dos antigos teólogos sobre o estado da alma após a morte, em poucas palavras, eles consideravam, como afirmamos em outro lugar, as coisas divinas como as únicas realidades, e que todas as outras eram apenas as imagens (p. 20) ou sombras da verdade. Consequentemente, eles afirmaram que os homens prudentes, que zelosamente se empenhavam nos assuntos divinos, estavam acima de todos os outros em estado de vigilância. Mas aqueles homens imprudentes, que perseguiam objetos de uma natureza diferente, sendo adormecidos, por assim dizer, estavam apenas envolvidos nas ilusões de um sonho; e que se por acaso morressem durante o sono, antes de serem despertados, seriam afligidos por visões semelhantes e ainda mais nítidas em um estado futuro. E aquele que nesta vida perseguiu realidades, após a morte, desfrutaria da verdade mais elevada; assim, aquele que estava familiarizado com falácias, seria doravante atormentado com falácias e delírios ao extremo: como um se deliciaria com verdadeiros objetos de prazer, assim o outro seria atormentado com ilusórias aparências da realidade. Ficinus, De Immortalitate Anim., Lib. XVIII, p. 411.

(44) Platão menciona que este Zoroastro doze dias após a sua morte, quando já colocado na pilha, voltou à vida, o que talvez representasse, senão algo mais profundo, a ressurreição daqueles que são recebidos no céu, passando pelos doze signos do Zodíaco; e ele diz, da mesma forma, que eles seguram a alma para descer pelos mesmos sinais quando a geração ocorrer. Isso não deve ser entendido de outra forma senão nos doze trabalhos de Hércules, pelo qual, quando terminado, a alma é libertada de todas as dores deste mundo. Clemens, Strom., Lib. V, p. 711.

(45) Apuleius.

(46) Mocopulus, in Hesoid, Ptol., See Cudworth, Book. I. chap. 4. “Este Deus, quer deva ser chamado aquilo que está acima da mente e entendimento, ou a ideia de todas as coisas, ou o único (visto que a unidade parece ser a mais antiga de todas as coisas), ou então, como Platão costumava chamá-lo, o Deus, digo esta causa uniforme de todas as coisas, que é a origem de toda beleza e perfeição, unidade e poder, produziu de si mesmo um certo Sol inteligível, em todos os sentidos semelhante a ele, do qual o sensível, o Sol, é apenas uma imagem.” Julian’s Orat. in praise of the Sun. “Vemos a unidade (de Deus) como o Sol (se dista)ncia obscuramente, e se você se aproxima, mais obscuro ainda fica, e, por último, impede ver qualquer outra coisa. Na verdade, é uma luz incompreensível, inacessível, e profundamente comparada com o Sol, para o qual quanto mais você olha, mais cego você se torna.” Damascius, Platonicus, De Unitate. Os restos mortais dos sectários de Zoroastro, chamados agora na Pérsia de Guebres, e que levam uma vida miserável, e mais perseguidos pelos maometanos do que os judeus na Europa pelos cristãos, ainda realizam as suas devoções e oram em direção ao Sol ou Fogo, mas afirmam que não os adoram, apenas os concebem como símbolos da Divindade. Vacuum Stanley, De Vet. Persar.

(47) “O primeiro Deus, antes do ser e único, é o pai do primeiro Deus, que ele gerou, preservando sua unidade solitária, e esta está acima do entendimento, e aquele protótipo que se diz seu próprio pai seu filho, um pai, e Deus verdadeiramente bom Este é o começo, Deus dos deuses, unidade de um, acima da essência, o princípio da essência, a essência vem dele, por isso se chama pai da essência: este é o ser, o princípio da inteligência; são princípios os mais antigos de todos… Essa inteligência atuante ou operante, que é a verdade do Senhor, e a ciência, na medida em que prossegue gerando, trazendo à luz o poder oculto das razões ocultas, é chamado na língua egípcia Ammon; mas na medida em que age sem falácia, e da mesma forma artificialmente com a verdade, é chamado Ptah; os gregos chamam de Vulcano, considerando a atuação ou operação; na medida em que ele é o operador de todo o bem, é chamado Osíris, que em consequência de sua superioridade tem muitas outras denominações, em consequência dos muitos poderes e diferentes ações que exerce.” Jamblicus, De Myster. Egipto.

(48) Os Hebreus chamam de שרופםח םש (hebreu ShM HMPWRSh), Shem Hamphoresh.

(49) Ver nota da pág. 14.

(50) Porphyr. Citado por Eusebius, De Præp., Lib. III, cap. 2.

(51) Eneid., Lib. VI.

(52) “Nos ritos sagrados, as purificações populares são produzidas em primeiro lugar, e depois aquelas que são mais Arcanas. Mas, em terceiro lugar, coleções de várias coisas em uma são recebidas, após o que segue a inspeção. As virtudes éticas e políticas, portanto, são análogas às purificações aparentes (ou populares). Mas as virtudes catárticas, como banir todas as impressões externas, correspondem às purificações mais ocultas. As energias teóricas sobre os inteligíveis são análogas às coleções; mas a contração dessas energias em uma natureza indivisível, corresponde à iniciação. E a simples autoinspeção de formas simples, é análoga à visão epótica.” Olimpiodorus, in Plato’s Phæd.

(53) Vide nota pág. 18.

(54) “A interpretação do tipo simbólico é útil em muitos aspectos, pois leva à teologia, à piedade e para mostrar a engenhosidade da mente, a concisão da expressão, e serve para demonstrar a ciência.” Clemens, Strom., Lib. V, p. 673.

(55) “Pois antes da entrega desses mistérios algumas expiações deveriam acontecer, para que aqueles que deveriam ser iniciados deixassem opiniões ímpias e se convertessem à verdadeira tradição.” Clemens, Strom., Lib. VII, p. 848.

(56) “Alexandre ganhou dele (Aristóteles) não apenas conhecimento moral e político, mas também foi instruído naqueles ramos mais secretos e profundos da ciência (p. 25), que eles chamam de epópticos e acromáticos; e que eles não comunicaram a todos os comuns eruditos. Pois quando Alexandre estava na Ásia e recebeu a informação de que Aristóteles havia publicado alguns livros, nos quais esses pontos eram discutidos, ele escreveu-lhe uma carta, em nome da Filosofia, na qual seria responsabilizado pelo curso que ele havia feito disto.” Alexandre a Aristóteles: “Prosperidade. – Você errou ao publicar as partes acromáticas da ciência. Em que diferiremos dos outros, se o conhecimento mais sublime que adquirimos de você se tornasse comum a todo o mundo? Em vez disso, sobressai a maior parte da humanidade nas partes superiores do conhecimento, do que na extensão do poder e domínio. Adeus.” Plutarch, in Vit. Alex.

(57) Aulus Gellius, Lib. XX, cap. 5.

(58) “Ele é chamado de Dionísio, porque é carregado com um movimento circular através dos céus imensamente estendidos.” Orphic vers. apud.

(59) “De facto, há, como diz o ditado, muitos que entram nos mistérios: uma multidão certamente de portadores de galhos (Thyrsirii), mas muito poucos Baquios.” Sócrates em Platão; apud. Clemens Strom., Lib. I, p. 372.

(60) Livii., Lib. XXXIX, cap. 8 e 18.

(61) Lucian, in Demonat., tom. 2, p. 308.

(62) Plutarch., De aud. Poet., tom. 2, p. 21.

(63) Diogen. Lært., Lib. VI § 39.

(64) “Uma mulher perguntou quantos dias deveriam se passar depois que ela ter relações íntimas com o seu marido, antes que ela pudesse assistir aos mistérios de Ceres. A resposta foi: com seu marido, imediatamente, com um homem estranho, nunca.” Clemens, Strom., Lib. IV, p. 619.

(65) Como prova das ideias sublimes de Deus, alimentadas pelos sábios egípcios, em contradição com essas acusações grosseiras, copiamos as seguintes passagens do próprio Hermes Trismegisto, conforme relatado por Pimandrus. “O Artífice fabricou todo o Universo com a sua palavra, no com as suas mãos. Ele, porém, o tem sempre presente na sua mente, agindo todos, um só Deus, constituindo tudo com a sua vontade; este é o seu corpo, não tangível, não visível, nem semelhante a qualquer outro: pois ele não é fogo, nem criado, nem ar, nem mesmo espírito; mas dele depende tudo o que é bom; porém, tal ele é, porque tudo lhe pertence”. Novamente: “Mas você não deve querer o nome principal de Deus, nem deve ignorar o que é claro e parece oculto de muitos; pois, se nunca aparece, não está em lugar nenhum. Tudo o que aparece apenas à sua vista é criado; o que está oculto é totalmente eterno; nem é uma razão para que apareça, já que nunca acaba; ele coloca tudo diante dos nossos olhos, mas permanece oculto; porque goza de uma vida totalmente eterna: claramente ele traz tudo à luz, mas ele se deleita no adytum; um, e não criado, incompreensível para nossa imaginação (phantasia); mas como tudo é iluminado por ele, ele brilha em todas e através de todas as coisas; e ainda aparece principalmente para aqueles a quem ele tem prazer comunicar seu nome”. Novamente: “Não há nada na natureza que não seja ele; ele é tudo o que existe; ele é até o que não é; e o que é, ele trouxe à luz. E como nada pode ser feito sem um criador, então você deve pensar que a menos que Deus esteja sempre agindo, é impossível para que qualquer coisa exista no céu, ar, terra, mar, em todo o mundo, em qualquer partícula do mundo, no que é e no que não é. Este é o melhor nome, Deus; esta, novamente, é a mais poderosa de todas as coisas; isso, conspícuo em mente; este, presente com os olhos; este, incorpóreo; isto, por assim dizer, multicorpóreo, pois nada está nos corpos que não esteja nele; porque ele só existe em todos; ele tem todos os nomes; porque ser é o único pai; então não tem nome porque ele é o pai de todos”. Apud Kirker, Vol. II, p. 504.

(66) Sinésio, falando do hierofante egípcio, observa assim; “eles têm χωμαςτη`ρια (greek, xwmasth`ria), que são arcos, ocultando, dizem, as esferas.” In Plutarch., De Iside and Osiride.

(67) Júlio Africano, sacerdote cristão, de nascimento judeu, fez um pequeno compêndio da história de Manethon, para dispensar o próprio autor: tratava-se do ano 230 da era cristã. Ao descobrir que a Cronologia Egípcia representava o mundo alguns milhares de anos mais velho do que a cronologia da Bíblia, ele desfigurou as datas de Manethon a ponto de fazê-lo concordar com a Bíblia. Além disso, esta obra de Africanus também se perdeu, e temos apenas extratos dela, preservados na obra de um monge, geralmente conhecido pelo nome de Sincelo, que confessa ter mutilado e alterado Africanus. Agora, esse indivíduo nem mesmo tinha a Bíblia original mas apenas a tradução grega, que reconhecidamente tem a cronologia viciada; e ainda assim os dados de Manethon deveriam ser desfigurados e interpolados, para torná-los compatíveis com a tradução incorreta da Bíblia para o grego.

(68) “Celsus, parece-me aqui, fazer apenas como um homem, viajando para o Egipto, onde os sábios dos egípcios, de acordo com o aprendizado do seu país, filosofam muito sobre as coisas que são consideradas divinas, enquanto os idiotas, entretanto, ouvindo apenas certas fábulas, das quais eles não sabem o significado, ficam muito satisfeitos com isso. Celsus, digo eu, faz como os peregrinos no Egipto (p. 29) que conversam apenas como aqueles idiotas, e não foram de forma alguma instruídos por qualquer um dos sacerdotes, em seus mistérios arcanos e recônditos, devendo-se gabar ele de que sabia tudo o que pertencia à teologia egípcia.” Origins contra Celsum, Lib. I, p. 11. “Quando entre os egípcios há um rei escolhido fora da ordem militar, ele é imediatamente levado aos sacerdotes, e por eles instruído naquela teologia misteriosa que esconde verdades misteriosas sob obscuras fábulas e alegorias.” Plutarch., De Iside, p. 354.

(69) Vamos nos contentar, aqui, com a autoridade de Kircher, um dos mais eruditos antiquários em assuntos egípcios. “Portanto, Hermes, aquele grande autor da doutrina hieroglífica, elucidando muitas coisas, principalmente sobre Deus, e suas perfeições, também da criação do mundo, e sua preservação, da administração do mesmo mundo e suas partes, tanto por ele mesmo, e por meio dos seus anjos, ao ouvir falar dos Patriarcas sobre o governo do mundo, se esforçou seriamente para penetrar nessas coisas: daí surgiu uma nova filosofia na qual tratava de coisas mais sublimes do que os ignorantes poderiam entender, ele velou sob uma nova arte, depois chamada hieroglífica, que estava oculta de rudes entendimentos, não em monumentos de madeira, mas em figuras místicas, gravadas em pedras duras, para um memorial eterno com a posteridade; como uma ciência sublime das coisas que merecem veneração eterna e digna de ser recomendada a todos; e em imitação do grande Artífice eterno, na administração do mundo, ele constituiu o seu sistema, que foi comunicado apenas aos hieromistas selecionados, sacerdotes, estolistas e hierogramatistas, homens de grande génio, sábios para o governo do Estado, de acordo com as regras de administração, prescritas nos obeliscos, e os homens que haviam demonstrado habilidade e aptidão e, além disso, foram restringidos, por juramento, a mantê-lo em segredo. Por estes meios os sacerdotes, sendo olhados por todos com admiração, em consequência da sua ciência nas coisas novas, expressas nos símbolos, eram honrados pela multidão quase como meio-deuses. Mas para aumentar essa veneração, eles contaram ao povo muitas coisas sobre as aparições dos deuses, suas respostas e como eles deveriam ser adorados para acalmá-los e torná-los propícios: a isso devemos adicionar o grande lucro que tiveram com suas máquinas e invenções mecânicas e sua habilidade em matemática; e fazendo estátuas que moviam os seus olhos e cabeça, para expressar aprovação ou desaprovação: e que a multidão miserável foi enganada, pagando sempre para obter um favor dos deuses, ou para advertir sua raiva. Daí veio que, com o passar do tempo, aquela religião concebida por Trimegistus em um sentido sincero, foi degenerada gradualmente em aberta e declarada idolatria.” Kircher, vol. IV, p. 82.

(70) “Ó Egipto, Egipto, da tua religião apenas as fábulas permanecem, e aquelas incríveis para a tua posteridade.” Trimegistus, in Asclepio.

(71) A emigração dos jónios para a Ásia Menor é mencionada por Heródoto e outros, mas a época é fixada por vários autores de forma diferente: por Playfair, no ano 1044 a.C.; por Gillies, em em 1055 a.C.; por Barthelemy, in Anacharsis, em 1076 a.C.

(72) “Diz-se que o chefe da colónia jónica era Androclus, um filho legítimo de Codrus, o rei de Atenas; portanto, é relatado que os jónios estabeleceram a sua realeza; e os descendentes dessa raça, mesmo agora, são chamados reis, e gozam das suas ereções, isto é, um lugar onde assistem aos espetáculos e aos jogos públicos, usando a púrpura real, e um bastão em vez do ceptro, e os ritos de Elêusis.” Strabo, Lib. XIV, p. 907. Esta emigração também é mencionada por Herodotus, Lib. I, cap. 142 e 148; Aelianus, Lib. VIII; Pausanias, in Achaicis; Plutarchus, in Homero; Veleius Paterculus, in Chronico; Clemens, Lib. I, Strom.

(73) Vide Strabo, acima.

(74) “Byblos era a capital de Cinera, e havia um templo de Apolo, situado em um local elevado, não muito longe do mar. Depois fica o rio chamado Adónis.” Strabo, Lib. XVI, p. 1074.

(75) “Lebedos, foi a sede e assembleia dos Artífices Dionisianos, que habitam desde a Jónia ao Helesponto; lá eles tiveram anualmente as suas reuniões solenes e festividades em homenagem a Baco. A sua primeira sede foi Theo.” Strabo, Lib. XIV, p. 921. O tradutor latino de Estrabão traduz os Artífices Dionisianos, Διονυςιοσ τεχνε (greek, Dionusios texne scenicos artificers), porque Baco ou Dioniso era suposto ser o inventor dos teatros e cenas, derivado do heb. זכש (hebreu, ShKZ}, “para habitar”.

(76) Polydor. Virg. de Rer. Invent, I, 3 e 13.

(77) Strabo, p. 471.

(78) Da aplicação de instrumentos de arquitetura à moralidade, os filósofos platónicos e pitagóricos pegaram não apenas símbolos, mas palavras para explicar as nossas ideias morais. Por exemplo, um homem certo (reto); obrigação do ligamento (ligare) à mesma lei (lex ad ligare); para enquadrar (quadrare) as nossas acções, justum aequum, etc. Mente rude, mente polida; de pedra bruta e pedra polida, etc.

(79) As reuniões ou assembleias dos Artífices Dionisíacos tinham vários nomes, ασ ςυνοιχια (greek, as sunoixia contubernium), o qual era o local do seu encontro. A sociedade era chamada às vezes de ςυναγωγη (greek, sunagwgh), “collegium“; ρεςισ (greek, háiresis); “secta“; ςυνοδοσ (greek, sunodos), “congregatio“; χοινοσ (greek, xoinos), “communitas“. Aulus Gellius, Lib., cap. II.

(80) See Chiseul, Antiquitates Asiaticæ, p. 95.

(81) “Este exemplo imitou aqueles jónicos que emigraram da Europa para os países marítimos de Caria (Ásia Menor) e também os dórios, seus vizinhos, construindo templos com uma despesa comum. Os jónios construíram o templo de Diana em Éfeso, os dórios o de Apolo em Triopii, onde em um certo período eles se repararam com suas esposas e filhos, e lá realizaram ritos sagrados, e tiveram um mercado, da mesma forma jogos, corridas, lutas, festas musicais de diferentes tipos, e fizeram oferendas comuns aos deuses. Eles realizaram os espetáculos e os negócios do mercado, ou feira, e cumpriram uns com os outros os deveres dos semelhantes; se houvesse algum litígio entre as cidades, eles se sentavam como juízes para resolver a disputa; além disso, nessas assembleias eles debateram quanto à guerra com os bárbaros, e os meios de manter um acordo mútuo entre as nações.” Dionis. Halicarn., Lib. III, p. 229, edit. 1691.

(82) “Depois disso, os habitantes da Jónia consideraram apropriado recorrer a Cambises, e tendo-lhe apresentado qual era o seu negócio, o rei os ordenou que estivessem em sua presença e perguntou quem eram e como passaram a viver em seus domínios; e tendo examinado e verificado de onde eles procediam, ele os admirou, e preferiu que fossem erigidos em uma sociedade por si mesma do que permitir que recebê-los como vindos de outro país, pois ele pensava que não era decoroso receber favores de outros que peregrinaram em seu país, como se fosse receber aqueles serviços como pagamento por suas habitações, e, portanto, para demonstrar isso despediu-os com presentes, como marcas da sua munificência”. Libanius in Orat. XI Antiochus., vol. II. p. 343.

(83) Robertson’s Greece, p. 127.

(84) Eusebius, Prep. Evang., LIII, cap. 12, p. 117.

(85) Reis, cap. V.

(86) A tradução inglesa da Bíblia em I Reis, v. 18, onde o hebraico original diz Gibblim, םילבג (hebreu, GBLYM), ou Gibblites, que significa “habitantes de Gebbel”, torna-o, pelo apelido, “quadrados de pedra”. A prova de que esta leitura não é correta, não é apenas por causa das opiniões diferentes de todas as outras traduções, que entendem por este Gibblim os “habitantes de Gebbel”; mas que o mesmo inglês (p. 34 da tradução), em outra parte da Bíblia, traduz a mesma palavra por “antigos de Gebbal” (Ezeq., cap. XXVII, v. 9). Agora que Gebbel era igual a Biblos, está claro; porque a versão da Septuaginta sempre traduz este Gebbel por Biblos, e embora houvesse várias cidades com esse nome, esta parece ser aquela que fica entre Trípoli e Beirute, ainda chamada Gebail. De facto, Luciano, em seu Tratado De Dea Síria, afirma expressamente que Gabala era Biblos, famosa pelo culto a Adónis.

(87) Pois encontramos em Ezequiel essas palavras: “E eu vi as mulheres sentadas chorando por Thamuz”, isto é, Adónis. Assim, porém, foi o que fizeram os habitantes daquelas cidades, em testemunho de que enviaram cartas a mulheres que estavam em Biblos, quando Adónis foi encontrado, e depois escaladas (juntas) e jogadas ao mar, dizem que foram carregadas (levadas) espontaneamente para Biblos; e, quando lá chegaram, as mulheres pararam de chorar por Adónis.” Procopius em Isaiah, cap. XXVIII.

(88) Josephus, Antiquit., Lib. VIII, cap. 5.

(89) I Reis, cap. XI, v. 5 e 6.

(90) Ezeq., cap. VIII, v. 14. Thamuz significa o nome de um mês, e também o nome de um ídolo ou divindade, que mesmo na opinião de São Jerónimo é o mesmo que Adónis. Plutarco diz que os egípcios chamavam Osíris de Ammuz, e daí foi derivado de forma corrupta o nome de Júpiter Amon. Robertson (Thesaurus Linguæ Sanctæ) diz que a palavra Ammuz (leia-se Ammoum) usada por Heródoto e Plutarco, eram corrupções do hebraico Thamuz, זוםת (hebreu, TMWZ). Eu preferiria dizer que a palavra era originalmente egípcia e tornada hebraica pela adição do formativo ת (hebreu, T); e ainda mais, porque Ammuz na língua egípcia significa (pela explicação de Manetho em Plutarco) “algo obscuro ou oculto”, que tem uma alusão evidente à ocultação ou morte simbólica de Osíris ou Adónis.

(91) Marc., cap. XII, v. 18.

(92) Assim, nos números 3, 5, 7, 12, 15 deve ter sido preservado como essencial. Nas cerimónias, o símbolo da morte e ressurreição; o cruzamento do equinócio duas vezes, etc. Na época, a estação do ano, quando o Sol chega aos dois trópicos, o nascente, o sul, o poente, etc.

(93) Cron., cap. III, V. 2.

(94) Ver nota pág. 10.

(95) πετρωμα (greek, petrwma).

(96) Vitruvius, Lib. IV, cap. 5.

(97) “Com razão, portanto, Platão, sabendo que o mundo é o templo de Deus, mostrou um lugar na cidade onde os símbolos deveriam responder.” Clemens, Strom., Lib. V, p. 691.

(98) Devemos aqui primeiro citar a autoridade dos judeus neste ponto. “Agora, consideremos o que pode ser subindicado pelos querubins e pela espada flamejante girando em todas as direções. E se isso devesse ser considerado a circunvolução de todos os céus?” “Mas, da espada flamejante girando para todos os lados, pode-se entender que significa o movimento perpétuo destes (querubins) e de todos os céus. Mas, e se fosse tomada de outra forma? De modo que os dois querubins significam os dois hemisférios.” Philo., Judeus, p. 111 & 112. “A túnica do sumo sacerdote, visto que era de linho, representa a terra; o azul, o polo do céu; os (relâ)mpagos eram indicados pelas romãs; os trovões pelo som dos sinos, & c “………………………… Mas os dois sardonyxs, com os quais a vestimenta pontifical é presa, denotam o Sol e a Lua, mas se alguém deseja referir as doze pedras aos doze meses, ou ao mesmo número de estrelas (constelações) no círculo, que os gregos chamavam de Zodíaco, ele não se desviará do verdadeiro significado.” Josephus, Antiq., Lib. III. Agora para os padres cristãos: “Seria muito longo seguir as (declarações) proféticas e legais que foram expressas por enigmas: quase toda a Escritura divina oferece esse tipo de oráculos Aquele que raciocinar corretamente encontrará o suficiente para o propósito, (de que) daremos alguns exemplos. Então, por exemplo, o que os antigos falavam do Templo, os sete recintos, que também se referem a outras coisas na história dos hebreus, e o que era por dentro pelo aparato de vários símbolos, referentes às aparências, significam em sua composição o que se refere ao céu e à terra. Eles significam, então, o que para a natureza dos elementos importa a revelação de Deus. O linho, σιυςος (grego, Busos), da terra, o azul (hyacinthus) da cor do céu, pois é escuro; o escarlate, o fogo. No meio do Templo, porém, estava o véu, além do qual apenas os sacerdotes podiam ir; havia o incensário, símbolo da terra, que é este mundo, e do qual acontecem as exaltações. Mas aquele lugar, que depois dentro do véu, onde só o sumo sacerdote tinha permissão de entrar, e em certos dias; o pátio externo que estava aberto a todos os hebreus, dizem eles, era o meio entre o céu e a terra. Outros dizem que era o símbolo do mundo, que é percebido por nossos sentidos intelectuais. Mas a abertura que separou a infidelidade do povo (p. 39) foi estendido diante de cinco colunas, e separou aqueles que estavam no tribunal.” Clemens, Strom., L. V, p. 665. Este padre cristão explica essas colunas, pela seguinte passagem de Platão: “Platão diz que devemos contemplar essas colunas, e ver com diligência que nenhum profano se atreva a ir lá. São profanos que acreditam que nada existe, mas o que podem tocar com as mãos, as ações e gerações, e todas essas coisas que não podemos ver nas coisas que existem, são incontáveis. Tais são aqueles que não atendem a nada além dos cinco sentidos.” Clemens, Strom., Lib. V. “Agora, para o castiçal, que foi colocado no sul do incensário. Por isso foi exemplificado o movimento dos sete planetas, que têm seus movimentos no sul. Pois em cada lado do castiçal havia ramos, e neles lâmpadas; porque o Sol, também como uma lâmpada, é colocado no meio das outras (estrelas) errantes, e aquelas que estão acima dele, e aquelas que estão abaixo dele, por uma certa harmonia divina recebem luz dele.” Clemens, Strom., Lib. V, p. 666. “Essas coisas, porém, ditas sobre a arca sagrada, significam o mundo percebido pelos sentidos intelectuais, que são ocultos e fechados ao vulgar. Além dessas imagens douradas, cada uma com seis asas, elas significam os dois ursos, como alguns julga, ou, o que parece mais conveniente, os dois hemisférios. Na verdade, o nome de querubins significa um amplo conhecimento. Mas ambos têm duas asas e, portanto, significam o mundo sensível e o tempo decorrido pelo círculo do Zodíaco.” Clemens, Strom., Lib. V, p. 667. “Mas os 360 sinos, pendentes do manto comprido (do sacerdote), são as épocas do ano; pois se diz que este é o ano do Senhor, pregando e ressoando a grande chegada do Salvador.” Clemens, Strom., Lib. V, p. 668. “As duas pedras esmeraldas brilhantes, que estão na ombreira, significam o Sol e a Lua, que são os ajudantes da Natureza. Pois era suposto que o ombro fosse o começo da mão. Mas aquelas outras doze pedras, que estão dispostos em quatro linhas, descrevem para nós o círculo do Zodíaco e concordam com as quatro estações do ano.” Clemens, Strom., Lib. V, p. 691.

(99) O primeiro mês civil dos judeus, chamado Tisri, ירשית (hebraico, TYShRY), proveio do egípcio Misri, mudando apenas o ט (hebraico T) formativo para ת (hebraico T). E a palavra foi derivada de רםי (hebraico, YMR), recto esse, como então o Sol estava no equinócio: e os rabinos, até hoje, chamam o equinócio de ירשים (hebraico, MYShRY). Os gregos, soletrando mal o nome, chamam este mês egípcio de ημυσορυ (grego, hmusoru).

(100) O número 12, que é o dos meses do ano, e aludido em tantos tipos de Templo, deve ter proporcionado também facilidades para estabelecer o sistema dos Artífices Dionisianos; e, portanto, daremos alguma ideia da filosofia pagã anexada a este número, nos seguintes extratos de Suidas: “O grande Demiurgo, ou Arquiteto do Universo, empregou doze mil anos na obra que ele produziu, e dividiu em doze vezes as doze casas do sol.” Suidas, Art. Tyrrhenia.

“No primeiro mil, ele fez o céu e a terra. No segundo mil, o firmamento (expansão) que ele chamou de coelum. No terceiro mil, ele fez o mar, e a água que corre sobre a terra. No quarto, ele fez duas (p. 41) grandes tochas da Natureza. No quinto, ele fez os quadrúpedes, animais que vivem na terra e nas águas. No sexto, ele fez o homem.”

“Tendo os primeiros seis mil anos precedido a formação da raça humana, parece que não existirá senão durante os seis mil anos, que serão os demais para completar o período de doze mil, ao fim do qual terminará o mundo.” Suidas, Ib.

Agora, se você considerar cada signo do Zodíaco por 24.000 anos, você explicará o mistério acima. Quando o Sol sai de Áries, ou o signo da Primavera, diz-se que o mundo nasce; aqui começa o período da vida. Quando o Sol está em Câncer, ou no Verão, é o prazer e as delícias da vida. Quando em Libra, a vida declinou: depois disso, tudo é Inverno de morte; e daí surgem as fábulas sobre as quatro idades do mundo.

Os livros da mitologia persa nos explicam o mesmo significado.

“O tempo é de 12.000 anos, está dito na lei, que o povo celestial existia há três mil anos, e então o inimigo (Satanás ou Arhiman) não estava no mundo, o que faz seis mil anos.”

“Os mil bons apareceram no Cordeiro, no Touro, nos Gémeos, no Câncer, no Leão e na Ovelha, que fazem seis mil anos. Depois do mil de Deus, vem a Escala (Libra), Arhiman veio ao mundo (ou seja, o Inverno).” Boun Dehesh, tradução de Perron, p. 420.

“Ormuzd, falando na lei, diz, ‘Fiz as produções do mundo em 365 dias’. É por isso que os seis gahs gahambars (meses) estão incluídos no ano.” Ib., p. 400.

Astronomicamente falando, não existe um período ou ciclo de 12.000 anos. Mas (Jacques) Dupuis resolveu o mistério, dizendo que os períodos dos antigos indianos e caldeus respondiam à série 1, 2, 3, 4, ou 4, 3, 2, 1. Assim, a duração das quatro idades do mundo, de acordo com o Ezour Vedan, foram:

1ª era 4.000 anos
2ª 3.000
3ª 2.000
4ª 1.000

Memoirs de l’Academie des Inscript., tom. 31, p. 254. The Baga Vedan counts thus, p. 41:

1ª era 4.800 anos
2ª 3.600
3ª 2.400
4ª 1.200
Total: 12.000

Os indianos conceberam esse sistema por meio de uma vaca com quatro patas; ou o número doze tomado sucessivamente quatro vezes.

Outro período indiano estabelece a duração do mundo, assim:

1ª era 1.728.000 anos
2ª 1.296.000
3ª 864.000
4ª 432.000
Total: 4.320.000

Agora, o menor desses números (432.000) elevado a 2, 3 e 4 dará uma soma total de 4.320.000. Os indianos dizem que o ano dos deuses é composto pelos 360 anos dos homens; se você dividir 4.320.000 por 360, terá 12.

No período caldeu, dado por Berosus, encontramos os mesmos números de 432.000, e para compô-lo ele segue a ordem aritmética, assim:

1º grau 12.000
2º 24.000
3º 36.000
4º 48.000
5º 60.000
6º 72.000
7º 84.000
8º 96.000
Total: 432.000

(101) As colunas ou pilares foram denominados זיכי (hebraico, YKYZ) e זעב (hebraico, BOZ). O primeiro significa “estabelecer”, de זיכ (hebraico, KYZ), estabelecer ou firmar; o segundo significa “força”, da proposição ב {hebraico, B), “em”, e da raiz זוע (hebraico, IWZ), “força”.

(102) “Ora, os Assidianos foram os primeiros entre os filhos de Israel a buscar a paz para eles.” Macab., VII, v. 13. Eu deveria traduzir esta passagem de forma diferente, assim: “E aqueles que entre os filhos de Israel eram chamados de Assidianos, foram os primeiros desta assembleia e desejavam pedir-lhes paz.” De acordo com essa interpretação, por muito mais expressiva do texto, vê-se que os Assidianos eram um corpo respeitável, pois foram os primeiros daquela assembleia. Em I Macab., II,. v. 42, está dito: “Então veio a ele uma companhia de Assidianos, que eram homens poderosos de Israel, sim, todos os que foram voluntariamente devotados à lei.” A própria palavra Assidiano ou Cassidiano é supostamente derivada do hebraico Cassidim, que no Salmo 78, v. 2, é tomado no sentido de homens piedosos, santos, cheios de piedade e misericórdia.

(103) “Portanto, por milhares de séculos, incrível de se dizer, este povo é eterno, sem que nenhum corpo tenha nascido entre eles.” Plínio, Lib. V, cap. 17.

(104) Josephus, Lib. 13, cap. 19.

(105) In προγονοι (greek, progonoi).

(106) “Antes de admitirem na sua seita quem o desejasse, põem-no em liberdade condicional de um ano e habituam-no à prática dos seus exercícios mais incómodos. Depois deste prazo, admitem-no no refeitório comum e no lugar onde banhar-se; mas não no interior da casa, até depois de outro julgamento de dois anos; então, eles são autorizados a fazer uma espécie de profissão, em que se comprometem, por horríveis juramentos, a observar as leis de piedade, justiça e modéstia; fidelidade a Deus e seu Príncipe; nunca para descobrir os segredos da sua seita para estranhos, e para preservar os livros dos seus mestres e os nomes dos anjos com grande cuidado.” Josephus, loco citato.

(107) “Eles consideram a alma imortal e acreditam que as almas descem do ar mais elevado para os corpos por eles animados, para onde são atraídas por alguma atração natural, à qual não podem resistir; e após a morte, retornam rapidamente ao lugar de onde eles vieram, como se estivessem livres de um cativeiro longo e melancólico. No que diz respeito ao estado da alma após a morte, eles têm quase os mesmos sentimentos que os pagãos, que colocam as almas dos homens bons nos Campos Elísios, e aqueles dos ímpios no Tártaro.” Josephus, loco citato.

(108) Philo, Lib. V, cap. 17.

(109) “Alguns empregam-se na agricultura, outros no comércio e manufatura de coisas apenas úteis em tempos de paz, seus projetos sendo benéficos apenas para eles próprios e outros homens.” “Você não encontra um artífice entre eles que faça uma flecha, um dardo, ou espada, ou elmo, ou couraça, ou escudo, ou qualquer tipo de armas, máquinas ou instrumentos de guerra.” Philo, loco citato.

(110) “Suas instruções são principalmente sobre santidade, equidade, justiça, economia, política, a distinção entre o bem real e o mal real; do que é indiferente, o que devemos perseguir ou evitar. As três máximas fundamentais de sua moralidade são: o amor de Deus, da virtude e do nosso próximo.” Philo, loco citato.

(111) “Os Essénios transmitiram as doutrinas que receberam dos seus ancestrais.” Philo, De vita contemplativa apud opera, p. 691.

(112) “Eles tinham sinais distintivos.” Ib.

(113) “Devo dizer algo sobre suas congregações e quantas vezes eles celebraram seus banquetes, etc.” Ib., p. 692.

(114) Vide Iamblicus, De Vita Pythagoræ, cap. 17, e Basnage, História dos Judeus, T. II, cap. 13.

(115) Strabo, p. 471.

(116) Psellus, citado por Clinch, Antologia Hibernica, de Janeiro, 1794.

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Tradutor do texto original em língua inglesa:

Octávio Pimenta Sousa.

(G∴ O∴ e P∴ M∴ da R∴ L∴ Hesperydes nº119, Grande Loja Legal de Portugal / G∴ L∴ R∴ P∴)

A Torre do Inferno do “rei do lixo” (Coina) – Por Vitor Manuel Adrião Quinta-feira, Ago 25 2022 

2.04.2012

O meu reconhecido agradecimento ao senhor doutor Rui Pires, dedicado investigador da história da Quinta da Torre de Coina e devotado amigo da terra, por todas as informações que me disponibilizou e confiou.O autor.

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Inicio o presente estudo evocando a Quinta da Regaleira de Sintra que é uma elegia familiar à Portugalidade e à Religião, soerguendo aos céus da serra sagrada a Torre de Deus expressiva do ideal sebástico da pressuposta “Quinta Monarquia”, tudo motivos suficientes para nesse período conturbado dos finais do século XIX e inícios do seguinte serem desencadeadas as fúrias republicanas a ponto de, inclusivamente, terem pretendido contrapor à invejada Regaleira do realengo “Monteiro dos Milhões” outros e novos espaços de cultura aposta e oposta como era então a dominante botânica maçonista, e que algum deles também tivesse torre cuja figura bastasse para infernizar as consciências realengas que, para gáudio da República triunfante, deviam cozer na caldeira do inferno de Pêro Botelho por toda a eternidade.

Pois sim, essa torre existe e está na margem sul do Tejo. Com efeito, dominando a paisagem circundante, altiva e estranha, a Torre do Diabo encontra-se junto à Estrada Nacional n.º 10 em Coina, freguesia do concelho do Barreiro, na antiga propriedade do famoso e controverso Manuel Martins Gomes Rodrigues Júnior, o “rei do lixo”, que deu brado em Lisboa e na margem sul nos primeiros decénios do século XX.

Essa propriedade, abrigando a também chamada Torre de Coina, chamava-se no século XVIII Quinta de São Joaquim e era um pouso, lugar de recreio e passagem entre as duas bandas do Tejo e deste para o Além-Tejo (Alentejo), que “mandou fazer a sua fazenda (expensa)” Joaquim de Pina Manique, desembargador da Casa da Suplicação, “cavaleiro fidalgo da Casa de Sua Majestade e professo da Ordem de Cristo no Mestrado da mesma Ordem”, irmão mais novo do célebre Intendente-Geral da Segurança Pública no reinado de D. Maria I, Diogo Inácio de Pina Manique, o ultraconservador que fundou a Casa Pia de Lisboa. Ainda hoje a marca de D. Joaquim está patente aqui, numa inscrição lapidar encimada pela Cruz de Cristo encrostada no muro da propriedade. Mas com as mudanças políticas ocorridas no século XIX e a dispersão da família Pina Manique, a quinta entrou numa fase de abandono e decadência até que, nos finais desse século, foi comprada pelo famoso “rei do lixo”, que vinha construindo um império a partir do nada.

A vida de Manuel Gomes Júnior replete-se de contradições em lances “claros-escuros”, onde a obscuridade dos factos é maior que a clareza dos actos, motivo que tem levado os seus raríssimos biógrafos a confessar ser a mesma mais conhecida pelas confissões dos inúmeros inimigos que granjeou ao longo da vida do que pelos factos provados, os quais mantendo-se desconhecidos tornam impossível fazer-se a sua biografia verídica e completa.

Manuel Martins Gomes Rodrigues Júnior nasceu em 11 de Novembro de 1860 no seio de uma família humilde em Santo António da Charneca, no Barreiro, filho de Manuel Martins e de Maria Gertrudes Martins. Desde cedo prometera a si mesmo mudar da vida miserável e tornar-se rico, e foi o que fez! Após ter trabalhado durante algum tempo como marçano em Lisboa e juntado algumas economias, regressou ao Barreiro onde comprou uma padaria de venda de cereais; para ter autonomia no negócio, adquiriu o moinho de água de moagem de cereais em frente à Quinta de São Vicente, que também viria a ser sua e onde fundaria a Sociedade Agrícola da Quinta de São Vicente. Posteriormente, com a compra de propriedades rurais a norte e a sul do Tejo, sobretudo no Alentejo, fundou a Companhia Agrícola de Portugal, contribuindo consideravelmente para o desenvolvimento socioeconómico da lavoura e agropecuária no país, mormente na região sul. Diz-se – sem prova nenhuma mas originada no “diz que disse” do regateio inflamado das inimizades republicanas/monárquicas do seu tempo – que após assinar um contrato com uma seguradora, ele próprio terá ateado fogo ao moinho, e como nunca se provou que não tivesse sido acidente foi indemnizado com uma elevada quantia.

Com parte desse dinheiro comprou uma pequena propriedade e entregou-se à especulação agrícola, emprestando dinheiro, sob pesados juros, aos proprietários vizinhos de Coina, necessitados de verbas destinadas ao cultivo dos seus terrenos. Em época em que as colheitas foram más e os agricultores não tinham como saldar as dívidas contraídas, Manuel Gomes não lhes perdoou: anexou as parcelas dos devedores à sua, formando assim uma quinta com mais de 300 hectares.

Em 1908 já era dono da Quinta da Trindade na Azinheira, Seixal, tendo chamado a si a reconstrução do edifício apalaçado e ainda construído o «castelinho», nessa que fora propriedade de D. Brites Pereira, sobrinha do condestável D. Nuno Álvares Pereira, que aí fundara a ermida da Senhora da Boa Viagem para os religiosos trinos da Ordem da Santíssima Trindade, extinta em 1834. Foi assim, também, que anos antes, a partir de 20.5.1897 (segundo a Carta de Arrematação do Ministério das Finanças), a Quinta do Manique ou de São Joaquim ficou na sua posse, tudo graças aos seus dotes de especulador sem escrúpulos, remata sentenciosa a vox populi.

Tornou-se um grande proprietário, e havia que rentabilizar o terreno. Dedicou-se à suinicultura após firmar um contrato com um grande negociante e exportador de carnes de Lisboa. Alugou-lhe o espaço da quinta para criação de porcos e fez sociedade com ele. Mas como pouco tempo depois o seu sócio morreu, Manuel Gomes assumiu o controlo total do negócio e passou a ser um rico negociante de carnes. Devido à sua inclinação natural para os negócios e ao seu carácter empreendedor, atingiu o auge ao assegurar o controlo da recolha dos lixos em Lisboa (nessa época os lixos eram apenas matéria orgânica), após arrematação feita com a Câmara lisbonense em 27 de Março de 1907, transportando-os para Coina nas suas cinco fragatas destinados a servir de alimento aos porcos, com isso não gastando um só tostão!

Morreu na sua Quinta da Alfarrobeira, na Estrada do Calhariz de Benfica, e foi enterrado, no dia seguinte à sua morte, no cemitério do Alto de São João, Lisboa, em 9 de Novembro de 1943, numa simples cova aberta à última hora, nas traseiras de majestosos jazigos, tendo por mortalha quatro tábuas de pinho forradas de pano preto e por acompanhamento nas exéquias fúnebres, além de poucas pessoas de família, meia dúzia de amigos que conseguiram romper a discrição em que foi envolvido o acto. Vítima de doença prolongada, ainda assim a lenda popular insiste que ele morreu em circunstâncias estranhas cujas causas nunca foram apuradas.

Após o seu falecimento, a Quinta da Torre de Coina passou para o seu genro, António Zanolete Ramada Curto, e tornou-se o principal centro agrícola da região. Em 1957 vendeu-a a José Mota, irmão dos grandes proprietários e industriais de curtumes Joaquim Baptista Mota e António Baptista Mota, que transformou a propriedade numa importante exploração pornícola. Igualmente melhorou-se o seu jardim que vinha do antigo palácio, o labirinto de arbustos, a escadaria de pedra, o pomar e as palmeiras em volta da capela.

Em 1972 a herdade foi novamente vendida, desta vez a António Xavier de Lima, conhecido urbanizador da margem sul. Este afirmou publicamente possuir um projecto para reconverter a quinta e transformar o palácio numa pousada com cerca de 85 quartos. Mas, desgraçadamente, na noite de 5 de Junho de 1988 o palácio foi totalmente devorado pelas chamas de um incêndio, que não poucos dizem ter sido ateado de propósito. Xavier de Lima disse depois ao jornal A Capital que o restauro do imóvel implicava um investimento não suportável. Desde então, o palácio com a torre e a quinta em volta encontram-se num total abandono, já tendo abatido toda a parte intermédia e o terceiro terraço do edifício, a cada dia transformando-se mais e mais numa enorme ruína, ele que é o ex-libris da histórica vila de Coina cuja autarquia, sem dúvida, deveria cuidar melhor do seu património, muito mais sendo este um exemplar de arquitectura única no país construído com os mais ricos materiais da época.

Manuel Martins Gomes Júnior e a sua família nunca habitaram a Quinta da Torre (por as suas obras terem sido interrompidas cerca de 1913-1914, deixando o imóvel incompleto), mas o facto de a ter adquirido e lhe imposto o aspecto realengo imponente, algo assim como memória póstuma do primitivo pouso de Pina Manique ligado à Casa Real, e sendo também ele “rei” (do lixo) por certo quis ter um palácio condigno com tal título, ou melhor, alcunha, que os mais desaforados de Coina igualmente apodavam de “porco sujo”. Com isso, descurava-se o óbvio da sua intenção escondida, além da empresarial: contribuir para a higiene pública da capital fragilíssima em cultura profiláctica, ao mesmo tempo que a sua perspicácia empresarial via nisso uma forma gratuita de aumentar a sua riqueza.

Diz a vox populi que foi a sua vingança republicana sobre o regime monárquico, pousando lixo e porcos neste lugar dos antigos cortesãos. À propriedade rebatizou-a com o novo e inquietante nome de Quinta do Inferno, com a sua Torre do Diabo que mandou fazer em 1910 (significativamente o mesmo ano em que terminaram as obras na Quinta da Torre da Regaleira), dizendo-se ter transformado a capela da quinta em armazém e estábulo (sendo certo que abriu nela, em 1906, uma escola bem dotada que ofereceu para a educação gratuita dos seus empregados e seus filhos), e às suas fragatas transformadas em arrastos do lixo deu-lhes os nomes de Mafarrico, Mefistófeles, Demo, Diabo, Satanás, Belzebu, Horrífico, Caronte, Plutão, Averno e outros mais mimosamente escolhidos para decerto chocar a conservadora e católica flora. Por certo tratou-se de uma provocação desaforada ao regime eclesiástico secular que a recente Revolução de 5 de Outubro depusera, mas com isso ficou até hoje com a fama de ateu antiteísta impenitente dotado de um feitio irregular pouco ou nada afectivo.

Casado com Maria de Oliveira Bello (1871 – 23.7.1967), às suas duas filhas legítimas pôs os nomes de Ceres e Cibele, e às ilegítimas, anteriores ao casamento, os de Proserpina e Flora; a um sobrinho deu o nome de Libertino, e a um outro afilhado quis pôr-lhe o nome de Livre Pensador, e tal como tal não fosse possível, após reflectir um instante, mandou que lhe chamassem Rodas Nepervil, que é o mesmo nome lido ao contrário. Estes nomes são já um sinal claro de erudição requintada de Manuel Martins e também, aparte a óbvia provocação desaforada ao regime eclesiástico, indício da sua possível afiliação e perfilha secreta do pensamento hermético greco-latino adoptado, sobretudo, pela Maçonaria do tempo.

Figura política de peso na época, republicano e humanista, foi regedor de Santo António da Charneca, construiu a primeira escola de ensino primário na freguesia, financiou colectividades, fundou a supradita Companhia Agrícola de Portugal, concedeu regalias aos seus funcionários e protegeu os pobres. Foi um apóstolo do ideal de “sociedade republicana” justa e igualitária que se sonhou nos primeiros tempos do regime, conformada ao ideal político perfilhado pela Maçonaria Portuguesa na qual Manuel Martins possivelmente seria afiliado, o que não está provado mas também não está descartada a hipótese severa de o ter sido, como aliás quase todos os republicanos desse período, de uma maneira ou de outra, andaram de ligações com essa Ordem. Se acaso não foi maçom, como era o seu irmão, então certamente andou de familiaridades com a Maçonaria.

Mas os conflitos permanentes, os vícios públicos e privados dos políticos aburguesados, o esquecimento rápido do ideal de “sociedade justa e perfeita” e a cada vez maior ditadura republicana onde o radicalismo carbonário embatia violentamente contra os princípios elementares do regime recente, afligindo o povo esmagado pela estultícia dos golpes e contragolpes militares onde de manhã havia um parlamento e à tarde outro diferente, tudo isso terá levado Manuel Martins Gomes Júnior à desilusão profunda do regime que acreditara e ao seu afastamento, em 1913, do círculo político do Partido Democrático de Afonso Costa, apesar de em 1922 ainda ter apoiado a direcção do Partido Radical (formação republicana populista que não passou de partido minoritário) que financiou, talvez pretendendo contribuir através dele para a restauração do ideal republicano que sonhara e via seriamente moribundo, muito mais desde que Portugal sofreu o sério revés no conflito da I Grande Guerra Mundial (1916), e depois com o assassinato de Sidónio Pais (1918). Se ele foi maçom como o seu amigo pessoal e Prémio Nobel da Medicina, professor Egas Moniz, seu executor testamentário, então o seu desquite do Grande Oriente Lusitano terá acontecido por volta de 1913, o mesmo ano em que Egas Moniz se afastou da Maçonaria por sérias discordâncias com ela, ao ponto de bater-se em duelo (1914) com o general Norton de Matos, futuro Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano.

O ateísmo do opulento Manuel Martins terá sido mais blague provocadora de fachada que convicção íntima, provocação como essa de repreender a esposa sempre que a via pôr azeite nas lamparinas do oratório da capela na sua quinta de Benfica: “Maria, não é melhor guardares o azeite para regar o bacalhau e as batatas?”

Em contraste flagrante com o aparente zelo jacobino misturado a um apreciado gosto anarquista de bon-vivant provocateur, deixou no seu testamento (onde consta a fortuna fabulosa orçada em 34.552.370$80 contos: 24 milhões e 152 mil escudos em bens imobiliários, e 9 milhões e 50 mil escudos em bens mobiliários, segundo a Relação de Bens a 24 de Outubro de 1943, sendo notário José Valente de Araújo, de Lisboa, e a fonte do Ministério das Finanças o processo n.º 7385 de 9 de Novembro de 1943) a doação de larga quantia em dinheiro às Misericórdias franciscanas da sua escolha prévia: duzentos e cinquenta contos em dinheiro à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa; duzentos e cinquenta contos à Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal; duzentos e cinquenta contos à Santa Casa da Misericórdia de Setúbal; duzentos e cinquenta contos à Santa Casa da Misericórdia do Barreiro, com a condição desta última legatária manter permanentemente uma escola primária mista em Coina, satisfazendo todas as despesas da mesma. Isto além de ter contribuído amplamente para substituir a desmoronada capela de Nossa Senhora dos Remédios de Coina por uma outra igreja mais condigna, e de ter decidido e promovido a construção da sede da Sociedade Filarmónica União Agrícola 1.º de Dezembro, em Santo António da Charneca. Assim se revelou tão humanista quanto religioso que no íntimo era mas escondia…

Além disso, descobre-se sem esforço no Palácio e Torre da Quinta do Inferno a presença de simbologia deísta, cujo conhecimento Manuel Martins Júnior terá recolhido no meio esotérico em voga na época, fosse através da Sociedade Teosófica, fosse por algum Movimento Rosacruciano, ambas as correntes com doutrinas bem estruturadas, fosse ainda na própria Maçonaria Iniciática, no que ela tem mais de simbologia e falerística espiritual, que não sendo doutrina já de si encerra doutrina, nada de nadíssima a ver com quaisquer hodiernas correntezas «luciferinas» que se mostram familiares do satanismo, como agora aventam alguns menos menos informados e muito desprevenidos em matéria iniciática, mostrando que se deixam levar pelas manifestações aparentes e gratuitas das “blagues” provocadoras anti-eclesiásticas de Martins Júnior. Por isso, ainda hoje a vox populi diz sem saber que o edifício destinava-se a ser a nova sede da Maçonaria Portuguesa por a anterior ter ardido há pouco tempo, o que não é verdade, pelo menos no tocante à sede central onde está o Palácio Maçónico na Rua do Grémio Lusitano, no Bairro Alto de Lisboa. Também desconheço o ter havido incêndio em alguma Loja da margem sul. Concluo que o sentido de “nova sede maçónica” será diverso daquele da voz popular: ele está na própria arquitectura do edifício que causa estranheza geral, menos àqueles que detêm o conhecimento exacto do seu significado iniciático: os possíveis arquitectos maçons que edificaram o imóvel e deixaram os sinais secretos da sua afiliação esotérica, por certo de acordo com a vontade expressa do proprietário, mesmo acaso ou decerto despossuído de maiores aprofundamentos no pensamento hermético.

A botânica maçónica marcou presença determinante junto do operariado, do empresariado, dos intelectuais e até dos religiosos da margem sul do Tejo. Nisso é incontornável a pessoa do farmacêutico António Augusto Louro (Sabugal, 22.10.1870 – Alcanena, 1.8.1949), cuja farmácia no Seixal foi local de encontro e debates dos ideais maçónicos e republicanos. Carbonário e maçom conciliador, foi nomeado Garante da Amizade entre os irmãos das Vendas e das Lojas situadas no Vale do Seixal. Autorizado por decreto do Grão-Mestre interino Francisco Gomes da Silva, em 16 de Julho de 1906 fundou no Barreiro a Loja “Esperança de Porvir”, e já antes, em 13 do mesmo mês, fundara em Sesimbra o Triângulo n.º 82, instalado a 22 de Novembro de 1906 e que em 1912 ainda estava activo. Em 4 de Dezembro de 1906, foi autorizado a fundar um novo Triângulo na Moita, que se transformou na Loja “Boa Viagem”. Esta Loja, instalada em 10 de Maio de 1908, recebeu o n.º 275 e seguia o Rito Francês. Pertenceu a ela João Martins Gomes, irmão do supracitado Manuel Martins Gomes, que exerceria o cargo de Venerável na Loja “Renascença” do Grande Oriente Lusitano, em Lisboa, depois da cissão ocorrida no Grande Oriente Lusitano Unido em 1914, quando a Loja “Boa Viagem” adoptou o nome de Loja “Firmeza”, vindo a abater colunas, a encerrar em 1919. Existem também registos do Triângulo “Feio Terenas”, no Seixal.

Todos esses núcleos maçónicos, onde maçons e carbonários estavam inextricavelmente misturados, seguiam o Rito Francês, cujos ideais de há muito vinham inspirando os republicanos portugueses até que culminaram no regicídio (1908) e na consequente revolução (1910), com a Carbonária à dianteira e a Maçonaria por detrás. E como esta ficasse bem para trás em relação àquela que lhe impunha a linha política do Partido Democrático segundo o seu entendimento particular, o Grão-Mestre Magalhães Lima, do Grande Oriente Lusitano Unido, contestou, em 1914, a autoridade do Supremo Conselho do Grau 33.º (entidade reguladora dos Altos Graus do Rito Escocês Antigo e Aceite, tradicionalmente tuteladora dos Graus Simbólicos do mesmo Rito), forçando a uma direcção única sob a sua égide (uma direcção «democrática» fortemente politizada, que a um tempo administraria a Obediência e regularia o Rito). Magalhães Lima, sabendo que o Supremo Conselho coexistia com o largo espectro político, não quis ver-se refém da governação da República. Dessa querela brotou a dissidência esperada e provocada: a generalidade dos membros do Supremo Conselho abandonou o Grande Oriente Lusitano, acompanhada de várias Lojas, indo formar o Grémio Luso-Escocês, só voltando a reintegrar-se naquele em 1926. Os dois irmãos Martins Gomes acaso terão seguido, como fez Egas Moniz, o Grémio Luso-Escocês.

A ser verdade que fosse maçom, o que está por provar, então o “rei do lixo” com certeza terá frequentado a Loja “Boa Viagem”, na Moita, e a Loja “Esperança de Porvir” (… a sociedade republicana), no Barreiro. Esta funcionava no primeiro andar do edifício hoje ocupado por um restaurante no Largo Alexandre Herculano. Tinha como extensão gremial a Sociedade Democrática União Barreirense – Os Franceses. Nesta, os anarquistas, socialistas e republicanos tinham um espaço de favorecimento cultural, não só através do convívio mas também pelo acesso franco a bibliotecas. Este centro republicano tal como outros idênticos foram um dos veículos de infiltração da Carbonária, organização revolucionária armada paralela da maçónica de que existiram vários núcleos ou “vendas” na margem sul do Tejo, nomeadamente no Barreiro, em Palmela, na Moita, em Almada, em Cacilhas, na Aldeia Galega e em Alcochete. Na antecipação da proclamação da República, pelas 12:30 horas do dia 4 de Outubro de 1910, nos Paços do Concelho do Barreiro, situados na antiga Rua Albers, eram carbonárias as vozes proclamadoras de Ricardo y Alberty e João dos Santos Pimenta, membros da Junta Revolucionária.

O símbolo mais evidente da porventura afiliação de Manuel Martins Gomes Júnior ao pensamento esotérico está no seu ex-libris (gravado nos objectos pessoais, nas fragatas, nas alfaias agrícolas e até nos badalos ou chocalhos do gado): uma meia-lua erecta com as pontas voltadas para a direita, e uma estrela de cinco pontas dentro dela. É signo islâmico, aliás, retrata o próprio Islão (com isso Manuel Martins igualmente pretendendo, a modo de provocação, declarar o seu estatuto de «herege» desafiador do pietismo conservador da Igreja), o qual é muito comum no Alentejo (onde este proprietário possuiu várias herdades próximas de Alcácer do Sal) onde frequentemente se encontra na etnografia popular, sempre dotado de propriedades mágicas profilácticas. À meia-lua o povo confere o poder de preservar as crianças dos ataques ou doenças da Lua, e Gomes Júnior tê-la-ia aplicado nas suas propriedades e bens em modo de protecção dos males psíquicos ou lunares que pudessem afligir tanto a ele como aos seus familiares, empregados, gados e terrenos. O signo de Salomão, o pentagrama, reforça o sentido de protecção, exorcismo e esconjuração dos males. Isto é atestado pelo professor Joaquim Roque no seu trabalho sobre Etnografia Alentejana – Rezas e benzeduras populares (Beja, 1946). A Teosofia aprofunda o significado desse emblema recorrendo à ciência dos Tatvas ou “vibrações subtis da matéria”, assinalando a meia-lua vertical virada para a direita como expressão do estado Subatómico (Anupadaka, em sânscrito) sob a influência planetária de Mercúrio (Budha, em sânscrito), enquanto o pentagrama constitui-se na reunião dos cinco elementos naturais manifestados de que o quinto é a expressão geradora de todos eles: o Éter (Akasha, em sânscrito) sob a influência planetária de Vénus (Shukra, em sânscrito). Ora, estando juntos Mercúrio e Vénus, ou Hermes e Afrodite, donde Hermafrodita, segundo a Teosofia expressam o estado primordial a que volverá um dia o Homem como Ser Perfeito, reintegrado na condição Divina. Ignoro se era esta reintegração final a mensagem que Manuel Martins Gomes Júnior pretendia afirmar veladamente no seu ex-libris, dispondo-se sob a protecção mágica dos deuses Marus, Marutas, Morias, Marizes, vulgo Mouros, os mesmos dos tesouros encantados vivendo como “Ali-Babás” (Allah-Baal) em cavernas mágicas, a despeito das minhas dúvidas severas sobre os seus conhecimentos iniciáticos.

Voltando ao Palácio do Inferno, o sinal mais evidente da sua intenção esotérica está no labirinto, tanto o floral do jardim como o pétreo do palácio, onde circular neste mostrava-se bastante complicado para o visitante, não só como uma demonstração cabal de grandeza e poder pela imponência do edifício em si, mas também por ele ser verdadeiramente um labirinto, cujo significado liga-se inteiramente ao mundo da Tradição Primordial.

A origem mitológica do labirinto é o palácio cretense de Minos, onde estava encerrado o minotauro e donde Teseu só conseguiu sair com a ajuda do fio de Ariadne. O minotauro representa a natureza animal, o labirinto o caminho tortuoso da Iniciação a ser percorrido por Teseu, o Iniciado, e sair triunfalmente do mesmo graças ao fio de Ariadne, ou seja, à ligação permanente à sua alma ocultada sob a veste carnal. Vencer a besta animal em si equivalia a alcançar o Centro Primordial e triunfar na Iniciação. A ver com isso e ao mesmo tempo, os labirintos esculpidos no chão de algumas igrejas medievais eram a assinatura das confrarias iniciáticas de construtores livres, e os que não tinham posses para viajar substituíam pelo labirinto a peregrinação efectiva à Terra Santa. Por isto, às vezes encontra-se no centro do labirinto a figura do próprio arquitecto, ou a do Cristo ou ainda a do Templo de Jerusalém, para todo o efeito, representando o eleito que chega ao Centro do Mundo, assinalado pelo Templo. Assim, o crente que não podia realizar a peregrinação real percorria em imaginação o labirinto até chegar ao ponto central, ao lugar santo: era peregrino sem sair do lugar, fazendo devotamente o trajecto de joelhos.

Na tradição cabalística judaico-cristã, retomada pelos alquimistas medievais e renascentistas, o labirinto preenchia uma função mágica que seria dos segredos atribuídos ao rei Salomão. Por esta razão, é que o labirinto das catedrais (sendo uma série de círculos concêntricos interrompidos em certos pontos de modo a formar um trajecto bizarro e inextrincável) se chamava labirinto de Salomão. Aos olhos dos alquimistas, tratava-se de uma imagem do trabalho inteiro da Grande Obra com as suas principais dificuldades: o caminho estreito mas seguro que o alquimista deve percorrer para alcançar o Centro, representado pela Pedra Filosofal, sinónima de Iluminação ou Realização Espiritual, com a sua natureza superior (representada nos metais nobres, como o ouro e a prata) dando combate à sua natureza inferior (assinalada nos metais impuros, como o chumbo e o ferro); esses conhecimentos valiam-lhe para vencer e sair incólume do intrincado labirinto da Iniciação. Essa interpretação ia de encontro à professada na doutrina anacorética de alguns místicos cristãos e árabes: concentrar-se em si mesmo, em meio dos mil rumos incertos das sensações, das emoções e das ideias, eliminando todo o obstáculo à intuição pura, e volver-se à Luz Espiritual sem se deixar cair nos desvios das veredas sensoriais e mentais. A ida e volta no labirinto eram representativas da morte e da ressurreição espiritual.

De maneira que o labirinto expressa o caminhar do homem para o interior de si mesmo, para uma espécie de santuário ou cripta misteriosa (representada na cave do Palácio do Inferno) expressando o que há de mais misterioso e sagrado nele. É aí, nessa cripta, verdadeiro templo do Espírito Santo na alma em estado de graça, que se reencontra a unidade perdida do Ser que se dispersara na multidão dos desejos. A chegada ao centro do labirinto, como no fim de uma Iniciação, introduz o iniciado numa cela invisível, que os artistas dos labirintos sempre deixaram envolta em mistério, ou melhor, que cada um podia imaginar segundo a sua própria intuição ou afinidade pessoal.

O sentido teológico de Inferno também merece abordagem. Sobre este tema do Inferno ou Hades, as crenças antigas – egípcias, gregas e romanas – variaram muito e por isso na Antiguidade eram diversificadas e numerosas. Entre os gregos, Hades era o deus dos mortos que reinava no mundo subterrâneo ocultado aos que vivem sobre a Terra, e por isso chamavam esse deus de o Invisível. Como ninguém ousasse pronunciar-lhe o nome, temendo excitar a sua cólera, ele recebeu o apodo de Plutão, o Rico, nome que implica um terrível sarcasmo, mais que um eufemismo, para designar as riquezas subterrâneas da Terra que fazem parte do império dos mortos e são guardadas por eles, o que está em conformidade com o sentido de “as riquezas infernais inalcançáveis pela cobiça do homem vulgar”. Esse sarcasmo de o Rico torna-se ainda mais macabro quando é colocada a cornucópia da riqueza nas mãos de Plutão, ainda que no simbolismo tradicional o mundo subterrâneo, indicativo das jazidas ricas, represente o lugar supremo das metamorfoses dos seres, das passagens da morte à vida, da germinação mística das criaturas humanas e da germinação natural de toda a Vida.

As características do Hades ou Inferno, também chamado Tártaro, são as mesmas por toda a parte: lugar invisível, eternamente sem saída (salvo pela porta da (re)encarnação da alma num novo corpo humano, como prova da piedade divina assinalada na Virgem, aqui Nossa Senhora dos Remédios na capela de Coina, que pertenceu à Quinta do Manique), perdido nas trevas geladas e no lume da consciência atormentada, assombrado por monstros e demónios que vêm castigar incessantemente as almas impenitentes dos defuntos que nas suas vidas terrenas se caracterizaram pela maldade dos seus actos. No Egipto, conforme está ilustrado no túmulo de Ramsés VI em Tebas, o Inferno era simbolizado por cavernas tenebrosas (as mesmas Talas do Hinduísmo ou o Baixo Astral da Teosofia) repletas de almas danadas, chamadas pretas ou porcus, em sânscrito e latim, como os mesmos kamarupas que talvez tenham provocado a «morte misteriosa» de Manuel Martins Gomes Júnior, vítima do choque de retorno das suas próprias expressões, atendendo ao princípio de que a energia segue o pensamento. Isto para aumentar o encanto tenebroso da lenda negra da «malvadez» de Manuel Martins, na qual não creio. Mas nem todos os mortos eram vítimas de Hades: os eleitos, os iniciados, os sábios e heróis conheciam outras moradas mais além das regiões tenebrosas, pois dirigiam-se para as Ilhas Venturosas, os Campos Elísios (as mesmas Lokas do Hinduísmo ou o Mundo Mental da Teosofia), onde a luz e a felicidade lhes eram prodigadas. E também nisto se integra Gomes Júnior quando “faz as pazes”, quando se “reconcilia” com Igreja depois de 1914. Isto se alguma vez andou desavindo com ela…

Alguns textos bretões da Idade Média mencionam o Inferno qualificando-o de an ifern yen, “o inferno gelado”. Esta expressão é de tal modo contrária às normas usuais que deve ser considerada como uma reminiscência das antigas concepções célticas relativas ao não-Ser, ou a não manifestação da Vida na Forma.

Segundo a crença dos povos turcos altaicos, chega-se perto dos espíritos do Inferno quando se caminha do Oeste para o Este, ou seja, no sentido inverso ao do percurso solar que é o do movimento vital progressivo. Essa caminhada no sentido oposto ao da luz, em vez de ir ao seu encontro, representa a regressão para as trevas, expressada pela inversão dos valores naturais e dos símbolos tradicionais.

Na tradição cristã, a conjunção luz-treva expressa os dois princípios opostos: o Céu e o Inferno. Plutarco já descrevia o Tártaro como privado de Sol. Se a luz se identifica com a Vida e com Deus, o Inferno significa a privação de Deus e da Vida. A essência íntima do Inferno é o próprio pecado mortal em que os danados morreram. É a perda da presença de Deus, e como já nada mais pode iludir a alma do defunto, separada do corpo e das realidades sensíveis, o Inferno é a sua desventura absoluta, a privação radical, tormento misterioso e insondável. É a derrota total, definitiva e irremediável de uma existência humana. A conversão do danado já não é mais possível, empedernido em seu pecado está para sempre cravado na sua dor.

Contudo, para os cristãos resta um ponto de apoio seguro para não tombar na danação eterna, esse ponto é a milagrosa Maria Santíssima encarnando o mistério da Misericórdia Divina e a sua prática entre os homens (e a ela, Misericórdia, se encomendou o acaso ateu Manuel Martins). Concebida como envolta na Benevolência eterna e infinita do Pai pelo Filho e o Espírito Santo (preservada do pecado original da carne atiçada pelo demónio), o seu agir está assinalado pelo amor efectivo à Humanidade, especialmente aos pecadores e sofredores (o que vai bem com o humanitarismo do mesmo Manuel Martins). Oficialmente, a Igreja Católica aprovou em 15 de Agosto de 1968 o formulário da Missa Votiva “Santa Maria, Rainha e Mãe de Misericórdia”, mas a invocação “Salve, Rainha de Misericórdia” encontra-se pela primeira vez no bispo Adhemar de le Puy (+ 1098), que destaca a qualidade do olhar materno de Maria, “esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”, e conclui com o sentido desta sua Misericórdia: “Ó clemente, ó piedosa, ó doce, Virgem Maria”. Já o título “Mãe de Misericórdia” crê-se que foi dado pela primeira vez a Maria por Santo Odão (+ 942), abade de Cluny: Ego sum Mater misericordiae (“Eu sou a Mãe de Misericórdia”), disse-lhe Maria num sonho. Na Igreja Oriental encontram-se testemunhos ainda mais antigos, tendo o religioso Tiago de Sarug (+ 521) aplicado a Maria explicitamente o título de “Mãe de Misericórdia” (Sermo de transitu), o que é considerado por muitos como a primeira e absoluta atribuição.

O Palácio da Quinta do Inferno dispõe-se em três corpos distintos: a torre sobre o edifício (com três níveis, rés-de-chão, primeiro e segundo andares e a cave, o que constitui uma prefiguração simbólica das Três Pessoas da Trindade dispostas em Planos igualmente distintos, como seja: a torre para o mais alto, o Céu ou o Mundo do Pai; o edifício para a Terra santificada pela presença do Filho; a cave para o Inferno ou Infera, “lugar inferior ou interior” de onde e de si mesmo o Espírito Santo dá à luz a Criação Universal.

Finalmente, tem-se a Torre do Diabo como uma espécie de espada cravada nesta cunha ou coina ribeirinha do Concelho do Barreiro. A espada cravada na rocha ou no chão é simbolismo que pessoalmente já vivifiquei ou realizei algumas vezes, tendo levado alguns a vociferarem sobre o que desconhecem absolutamente, tanto no real como no simbólico, ficando-se pela impertinência beata e simplista como característica primária da ignorância cabal das profundezas do mundo iniciático.

Esse é o símbolo tradicional do centro axial de um enclave iniciático (ou sistema geográfico) marcado pela espada cravada na rocha, prefiguração do símbolo astrológico da Terra (um círculo ou um monte coroado por uma cruz) e igualmente a chave da Sabedoria Iniciática, de quem foram custódios zelosos aqui em Coina e nas redondezas os primitivos cavaleiros templários, regulados pela Regra de Cavalaria prescrita por São Bernardo de Claraval (in Regula). O cavaleiro cristão demandava por essa forma dinâmica a iniciação espiritual, tomado de ânimo e coragem no manuseio destemido das armas sagradas, evocando sempre a protecção de Santa Maria e a força de São Miguel, como protótipos celestes do seu ideal terreno que era fazer a guerra santa, a cruzada (ou a crescentada), cujo sentido maior era dar combater a si mesmo, aperfeiçoar-se humana e espiritualmente debastando as suas imperfeições ou vicissitudes mortais, derrotando os seus demónios interiores, e com isso, não raro, além de guerreiro também era monge, unindo a espada à fé, a acção da virtude humana de bom cavaleiro ao dote da santidade demandada.

Cravada na rocha levantada ou no alto do monte, tem-se a espada como símbolo axial e polar identificado ao fiel da balança. Entre os citas, o eixo do mundo e a actividade celeste eram representados por uma espada fincada no cume de uma montanha. A ideia da espada cravada na terra poder produzir uma fonte, não deixa de estar relacionada com a actividade produtora do Céu, pela relação existente com o relâmpago anunciando a queda da chuva. Como a espada simboliza o fogo em forma de relâmpago, este é atraído pela água da terra, e por isto a têmpera da espada expressa sempre a união dos dois elementos fogo e água, ou por outras palavras, o perfeito equilíbrio do Espírito e da Alma na própria Matéria.

A espada de fogo designa, segundo Fílon (in De Cherubim), o Logos e o Sol. Quando Deus através de São Miguel expulsou Adão e Eva do Paraíso Terreal, postou à entrada do Jardim do Éden os Querubins armados com o fogo da espada flamejante para proteger o caminho da Árvore da Vida (Génesis, 3:24). Ainda segundo Fílon, os dois Querubins representam o movimento do Universo, o deslocamento eterno do conjunto do céu, ou ainda os seus dois hemisférios. Numa outra interpretação do mesmo autor, os Querubins significam os dois atributos supremos de Deus: a Bondade e o Poder (representados posteriormente em Santa Maria e São Miguel). A espada refere-se ao Sol, cujo percurso faz a volta do Universo inteiro, marcado pelos 12 signos, no prazo de um ano terrestre. A espada relaciona-se também com a razão que reúne, a um só tempo, os dois atributos de Bondade e de Poder: pela razão Deus é generoso e soberano ao mesmo tempo (De Cherubim, 21-27).

Na tradição cristã, a espada é a arma nobre que pertence exclusivamente ao cavaleiro. Ela é mencionada muitas vezes nas canções de gesta. Rolando, Olivier, Turpin, Carlos Magno, Artur Pendragon, Ganelão e o emir Baligant, todos eles possuíam espadas individualizadas que tinham nomes, em guisa de “génios mágicos” encadeados às mesmas, como, por exemplo, Joyeuse (“Alegre”), Durandal, Excalibur ou Caliburna, Corte, Bantraine, Musaguine, etc. Esses nomes provam a individualização da espada, sempre associada à ideia de luminosidade, de claridade por a sua lâmina ser qualificada de cintilante.

Por essa relação com a luz e o relâmpago a lâmina da espada brilha: ela é, diziam os antigos cruzados, uma prefiguração da Cruz de Luz. Na Índia, a espada do sacrificador védico é o raio do deus Indra, relacionado ao Fogo Celeste a quem chamam Fohat. Em termos de Alquimia, a espada dos filósofos é o fogo do cadinho. Ainda na Índia védica, a espada apareceu associada aos deuses Assuras ou da “Mente elevada”, mas empunhada pelo Bodhisattva ou “Budha de Compaixão”, como símbolo do combate pela conquista da Sabedoria e da libertação dos desejos inferiores, pois a espada luminosa corta as trevas da ignorância e do pecado. Do mesmo modo, a espada do Deus Vishnu (equivalente ao Filho na Trindade cristã) é de fogo e expressa a Sabedoria pura e a Virtude absoluta. Quando está dentro da bainha esta representa a nescidade e a obscuridade, razão porque um não cavaleiro ou um profano jamais poderia retirar a espada da bainha, sob pena dos maiores castigos corporais e espirituais.

Finalmente, a espada é o símbolo da condição militar (kshatriya, em sânscrito) e da sua virtude, a bravura, bem como da sua função, o poderio. O poderio tem um duplo aspecto: o destruidor (embora essa destruição possa aplicar-se contra a injustiça, a maledicência e a ignorância, com isso tornando-se positiva) e o construtor, por estabelecer e manter a paz e a justiça. Todos esses adjectivos convêm literalmente à espada, quando é o emblema do rei e da nobreza. Quando é associada à balança, relaciona-se mais especialmente com a justiça representada pela dupla lâmina: a que premeia o justo e a que castiga o prevaricador.

Símbolo guerreiro, a espada é também o símbolo da guerra santa (e não das conquistas arianas, tal como pretendem alguns a respeito da iconografia hindu, a menos que se trate de conquistas espirituais). Antes de tudo, a guerra santa (jihad), a “guerra justa” de São Bernardo de Claraval, é uma guerra interior, e esta será igualmente a significação da espada trazida pelo Cristo (Mateus, 10:34). Sob o seu duplo aspecto destruidor e construtor, ela é o símbolo do Verbo, da Palavra. O khitab ou orador islâmico costuma segurar uma espada de madeira durante a sua predicação; o Apocalipse de São João (1:16) descreve uma espada de dois gumes saindo da boca do Verbo Vivo. Relacionada com a ideia de Verbo, de Sabedoria e Revelação, a espada chega a designar a palavra e a eloquência, pois assim como ela também a língua tem dois gumes.

Sendo a espada símbolo do Verbo, já a torre expressa aqui a de Babel, que foi onde a Humanidade começou a falar as diversas línguas numa babilónia onde ninguém se entendia, depois de Deus ter sido desafiado e castigado dessa forma as suas criaturas (Génesis, 11:1-9). Babel ou confusão é também a que provoca a visão imediata da Torre do Diabo no comum das gentes, sejam esclarecidas ou simples, para todo o efeito, desprevenidas e logo surpreendidas.

O conjunto arquitectónico do imóvel transporta-me para leituras teosóficas ou iniciáticas inteiramente diversas das comuns. Após hesitar muito em escrever este e os quatro parágrafos seguintes, acabei por fazê-lo. Pois bem, o palácio suportando a torre do “rei do lixo”, quer um quer outra repartem-se em três andares, ficando a torre para o Mundo Celeste (Mental, Astral e Etérico) e o palácio para o Mundo Terrestre (Agharta, Duat, Badagas), representando a cave do edifício o ponto de intercessão entre os dois Mundos, ou seja, o Plano Físico, pelo qual se sobe ou se desce. Por outra parte, o imóvel completo compõe-se de sete andares (incluindo a cave) ou divisões que juntas ao apodo inferno remetem para a tradição oculta da Torre de Babel, cuja história é muito diferente da descrição in littera bíblica e recua aos meados da 4.ª Raça-Mãe, a Atlante, anterior à actual 5.ª Raça-Mãe Ariana. O País de Mu, como era então conhecida a Atlântida, repartia-se em sete reinos, regiões ou cantões, cada qual com o seu governador próprio, tendo como dirigente máximo um Governo Central geral composto por uma tríade imperial ou khou habitando numa oitava cidade (Muakram ou Aptalântida), separada das demais por altíssimas muralhas. Nessa oitava cidade encontrava-se a representação humana da própria Divindade na Terra, nas pessoas de Mu-Ka, Mu-Ísis e Ra-Mu expressando, respectivamente, os 1.º, 2.º e 3.º Logos ou Aspectos (Hipóstases ou Prosapas) de Deus Único. A Bíblia relata que a Torre de Babel foi construída como uma tentativa de “escalar o céu” (as altíssimas muralhas), e que essa tentativa foi interrompida devido à confusão advinda (castigo kármico ou pena do pecado de ter ousado desafiar Deus Altíssimo) dos próprios construtores, que passaram a falar diferentes línguas (também sendo alusão velada à fundação de sete Colégios Iniciáticos, cada qual com tónica diferente dos outros, e assim mesmo aos sete Ramos raciais destinados à sementeira humana da Raça futura, cada qual dirigido por um desses Colégios, cujo quinto levava de nome Kurat-Avarat).

Na verdade, a passagem bíblica (Génesis, 11:1-9) refere-se ao ocorrido com a tentativa de destruição das altíssimas muralhas da oitava cidade atlante. De facto, no sentido sentido caótico Babel significa “confusão” (do hebraico Bavel), por os Nirmanakayas Negros influindo nos Rakshasas da mesma espécie, ou sejam, os magos negros agindo pelos feiticeiros seus discípulos, por sua vez inspirando o povo à cólera e à revolta, terem tentado derrubar as muralhas da referida cidade para a destruir e assassinar os membros do Governo Central. Como não o conseguissem, mataram os dois tulkus (espécies de sósias) dos Gémeos Espirituais Mu-Ka e Mu-Ísis, estes a quem o seu filho, o sacerdote Ra-Mu, deu cobertura defensiva na sua retirada.

A partir desse evento o País de Mu entrou em decadência, muito mais quando a Fraternidade Negra tentou e conseguiu exercer a sua terrível influência sobre o governante da 4.ª cidade atlante, fazendo deste um avatara ou messias tenebroso liderando o movimento destruidor que varreu do mapa da face da Terra tão portentosa civilização dos finais do Período Terciário e de quase todo o Quaternário. Nisto, vale bem o apodo sinistro Torre do Inferno, e também a transposição desse episódio funesto dos tempos atlantes para os tempos agitados ante e pós República em Portugal.

Mas no sentido iniciático, evolucional, a Torre de Babel como zigurate (torre-templo destinada ao culto astrolátrico, sobretudo o do Sol) expressava a própria Muakram representativa do Céu na Terra, e por isso Bab-El mais que tudo quer dizer Porta do Céu, tal qual o acadiano Bab-Ilu (donde o termo Babilónia), Portal de Deus. Esse termo acadiano passando ao sumério, ao caldaico, ao fenício e finalmente ao hebraico, aparece como Bab-El junto a Baal, este como Senhor, Deus, e aquele com a sua Morada. Baal ou Adon (Adonai) era um Deus Fálico, isto é, Gerador da Vida na Forma, e por isso representava-se por uma torre elevada ou por um alto monte onde se plantava um santuário, ou então, posteriormente, tão-só uma cruz ou uma espada cravada no cimo do monte. “Quem subirá ao monte (o lugar elevado) do Senhor? Quem estará no lugar de seu Kadushu (Sol)?” (Salmos, 24:3). Baal vem a ser assim o Sol, e quando num certo sentido é devorado pelo ardente Moloch, o seu irmão sinistro que vive na cripta do Mundo, ou seja, o próprio Deus Saturno, Baal assume então o nominativo Baal-Tzephon, o Deus da Cripta, representando o Sol da Meia-Noite, o saturnino ou subterrâneo expressivo da própria Shamballah, Walhalah ou Salém como Sol Central da Terra. Trata-se do mesmo Baal-Adonis dos Sôds ou Mistérios Judaicos pré-babilónicos, que se converteu, graças ao Massorah, no Adonai, o Jehovah posterior com vogais.

Baal-Adonis é também herança filológica atlante por referir-se a Push-Adonis ou Poseidonis, a Morada de Adonis, o 7.º Princípio Espiritual, e que designa a parte do continente atlante que submergiu 9.564 anos a. C. O nome dessa “ilha” sobrada do primeiro cataclismo que vitimou a Atlântida há cerca de 850.000 anos, foi transmitido por Platão nas suas obras Timeu (ou a Natureza) e Crítias (ou a Atlântida).

Sinceramente não acredito que Manuel Martins Gomes Júnior detivesse todos esses conhecimentos iniciáticos, (assim como a maioria dos esoteristas contemporâneos), mas talvez os possuíssem fragmentados alguns dos construtores deste seu imóvel, já que a simbologia da sua arquitectura conforma-se com o que a Tradição Primordial diz sobre o assunto, inclusive com o Rio Tejo fazendo a vez de “Mar da Atlântida” em cuja margem se levantou a célebre Torre de Babel, nesta de Coina servindo para o “rei do lixo” subir ao topo e ver as suas propriedades no Seixal que iam até Alcácer do Sal, diz a vox populi sempre com explicação simples e prática, mas não me parecendo verossímil por a torre nunca ter sido concluída.

Mas sem dúvida que esta obra foi uma demonstração da grandeza e poder do proprietário, a quem não me atreverei a chamar, ao contrário de alguns, de “nababo ricaço”, nisso também podendo ter querido celebrar a memória do há muito desaparecido castelo de Coina, destruído durante a reconquista cristã da margem sul do Tejo aos árabes, acontecimento no qual a Ordem dos Templários e a Ordem de Santiago tiveram primazia ainda durante o reinado de D. Sancho I.

Como lugar extremo do concelho do Barreiro, a etimologia de Coina liga-se à sua posição estratégica. Com efeito, em documentos indo do século XII ao XIV existem registos da grafia cuinha, coinha e coina, provindas de cunha, “rochedo isolado cuja forma lembra uma cunha”. Coina é também a vassoura feita de hastes secas para limpar o trigo do casulo e do palhiço, sendo que o transitivo coinar significa “limpar o trigo com a coina”. Possivelmente será referência ao palhiço que cresce nos sapais junto às margens pouco profundas e lodosas desta parte do Tejo que comunica com a sua bacia, o Mar da Palha.

Vários filologistas dão origem latina ao nome desta localidade, afirmando derivar de “água boa” (igualmente não deixando de ser, queira-se ou não, memória ultramarina da Atlântida): Equabona, Quabona, Quouna, Couna e Coina, sendo que o documento mais antigo que se refere a ela é o Roteiro Militar de Antonino Pio, do princípio do século II d. C., informando que próximo daqui viveu o general e estadista romano Quintus Sertorius (126 a. C. – 73 a. C.). Mário de Sá, no tomo VI das Grandes Vias da Lusitânia (O itinerário de Antonino Pio), Lisboa, Sociedade Astória Lda., 1967, descreve:

“(…) Exacta é a posição de Equabona em Coina-a-Velha (no vale de Coina e junto do “Castelo dos Mouros”) onde houve uma remota localidade romana. Coina (a Nova), no esteiro do Tejo, era o porto marítimo de Equabona que, desenvolvendo-se adentro da era portuguesa, veio a ganhar foros de vila. E foi das mais notáveis da Riba Tejo, debaixo da simples designação de Coina.

“Na época romana a via de Lisboa a Equabona era, tanto quanto possível, terrestre, e é na deste teor que se marcam as XVI milhas de extensão do cais de Cacilhas a Coina-a-Velha por Cova da Piedade, Torre da Marinha (extremidade do esteiro da Amora), Rio do Judeu, Foros do Perú, Quinta da Conceição. É curso para 13,26 quilómetros, na equivalência das XVI milhas do texto.”

Ainda sobre Equabona ou Aquabona, o poeta e professor do Liceu de Évora, António Maria de Oliveira Parreira, num trabalho avulso feito em 13 de Novembro de 1882, escreveu o seguinte:

“(…) A situação de Equabona é completamente incerta, não obstante designar-se unanimemente como correspondente a Coina, valendo para isso uma remota semelhança das palavras e a circunstância de haver perto um lugar chamado Coina-a-Velha. Alguns escritores chamam-lhe Abona e num códice na Biblioteca de Paris, pertencente ao século X, encontra-se a denominação Aqua Bona. Pode ser que essa povoação romana estivesse situada nesta região da margem sul do Tejo, apesar de não se lhe poder determinar a situação precisa. O nome Aqua Bona só por ironia poderia convir à Coina moderna, local apaulado e sezonático, mas poderia pertencer a qualquer povoação que demorasse da falda dos montes de Azeitão e que desse o nome a todo esse trato de terreno até ao Tejo. Em Coina-a-Velha, lugar de que fala Hubner, numa propriedade denominada Casal do Bispo, no cimo de um monte existem as ruínas de um castelo que conserva ainda as quatro paredes da torre meridional, em perfeita conservação até à altura de mais de três metros, outra torre mais arruinada do lado norte, pedaços de muralha abatidos e uma cisterna, tudo envolto em altas moitas de carrasco. As paredes da cisterna são de uma argamassa composta de cal, areia e tijolo britado, o que lhes dá o aspecto de um só tijolo inteiriço: só desabou a parte da abóbada. Os lanços abatidos das muralhas parece terem sido demolidos expressamente à cunha, e não ser a sua ruína obra do tempo.”

Joaquim Pedro da Assunção Rasteiro é de opinião que o castelo de Coina-a-Velha é o mesmo de que fala D. Afonso Henriques num documento de 1184 (in castelo caune), fazendo doação dele a Bernardo Mendes, cónego da igreja de Santa Maria de Lisboa, aparecendo também no testamento do seu filho D. Sancho I (constructione murorum de couna). Alexandre Herculano, na sua História de Portugal, fala na forte linha defensiva dos castelos de Almada, Coina, Palmela e Alcácer do Sal, dizendo que em 1191 o conquistador árabe Iacub-al-Mansur tomou o castelo de Coina arrasando-o, mas em 1195 a região seria novamente reconquistada por D. Sancho I o qual, possivelmente, mandaria reconstruir a fortaleza, para todo o efeito, desaparecida há muitos séculos.

Em resumo, pode dizer-se que há 800 anos existia no Casal do Bispo uma povoação que se chamava Equabona e tinha um castelo. O povo foi mudando o seu nome até ficar o de Coina. O terreno que fica entre a Vala Real e a Ribeira dos Canais, também veio a chamar-se Coina, e o de Azeitão ficaria como Coina-a-Velha e a outra como Coina-a-Nova, ou só Coina. A povoação de Casal do Bispo foi abandonada até que desapareceu, mas nasceu outra mais adiante com o mesmo nome. No século XVIII a povoação de Coina-a-Velha foi batizada com o nome de Aldeia de Nossa Senhora da Piedade, ou só Aldeia da Piedade. Isto porque Diogo da Silva de Carvalho, dono da Quinta das Donas, construiu na sua propriedade uma capela privada pondo-a sob o Orago de Nossa Senhora da Piedade, e depressa o nome da capela passou para o da aldeia.

Memória sumptuosa dos tempos idos resta a Quinta da Torre de Coina, em avançado estado de degradação. Se não forem tomadas medidas urgentes, este património singular do concelho do Barreiro e único no país tem morte anunciada, mandando para o lixo mais uma página da História de Portugal como coisa de somenos importância. Deixo o apelo às boas vontades das consciências da autoridade política e da proprietária do imóvel, para que se entendam e acudam rápido a salvar e recuperar a quinta em nome do interesse cultural comum, nacional. Por enquanto se mantiver de pé o Palácio de Coina, por certo a memória do “rei do lixo” permanecerá viva!

HISTÓRIA SECRETA DO BRASIL (FLOS SANCTORUM BRASILIAE) – Por Vitor Manuel Adrião Segunda-feira, Ago 15 2022 

Livro editado em 2022 pela Espiral Editora, Lisboa, com distribuição exclusiva no Brasil.

Para reserva de exemplar: espiral.editora.adm@gmail.com

“História Secreta do Brasil” compõe-se de um ramalhete perfumado de 22 capítulos que, afinal, perfazem o valor do Arcano brasílico, enaltecendo a História e a Memória, a Demanda e o Espírito, como verdadeira “Flos Sanctorum Brasiliae”.

Prefaciada pelo Dr. David Caparelli, da Academia Brasileira, ao longo das suas 656 páginas a obra, revista e aumentada consideravelmente em relação às edições anteriores (esgotadíssimas em Portugal e no Brasil), discorre sobre a Pré-História e a Atlântida, com registos fotográficos e documentais que não são poucos; a Proto-História e a Fenícia, com a foto ilustrando o documento, com o testemunho imobiliário até hoje assombrando e pasmando o mais conspícuo pesquisador, seja em gabinete, seja em campo; a História e as Navegações pré-cabralinas e cabralinas, a miscigenação lusa com as 12 tabas brasílicas, ponto de partida da ordem e progresso deste país maior que um continente, pomo derradeiro das esperanças da Humanidade num futuro venturoso.

Dentre os milhares de temas que compõem este livro, tem-se Pedro Álvares Cabral e Saixê; o patriotismo dos Bandeirantes civilizadores e o Jesuítismo de alguns opressores a que a História negou a fama; as Profecias milenares, no papel e na pedra, encomiando o Brasil como Terra de Promissão; os Profetas e Augures que descobriram nesta Terra de Vera Cruz a verdade das tribos perdidas de Israel, dispondo-a como a Nova Jerusalém; o grande mistério esotérico do Cruzeiro do Sul, signo sideral do Brasil, que Dante já apontava e também Fernando Pessoa; os contos, cantos e encantos de cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, São Lourenço, etc., com tanto para contar sobre as maravilhas dos deuses que se fizeram homens e até hoje conclamam que o Paraíso Terreal não desapareceu, tão-só se escondeu; Juscelino Kubitschek e os Arcanos esotéricos de Brasília, o “Pequeno Brasil”, que um frade misterioso um dia lhe jurou ser aí que o mundo iria ter a sua capital; D. Pedro I e a Maçonaria fundando o país independente, tolerante e amigo; os usos e costumes, as tradições e mistérios, enfim, são alguns dos inúmeros tópicos desenvolvidos neste livro dedicado ao Brasil e aos povos de língua portuguesa, onde Portugalidade e Brasilidade se fundem em uma só Lusofonia que, no dizer do vate, Fernando Pessoa, é a sua verdadeira pátria, pátria metafísica expressão da divina com que divinamente se fez a História de lusos e brasileiros aqui relatada com minúcia de detalhes avivando a Memória.

Sendo “o brasileiro um português à solta no mundo”, como dizia Agostinho da Silva, semeando civilização de amor e concórdia, é, pois, sobretudo a ele dedicada esta volumosa e primorosa “História Secreta do Brasil (Flos Sanctorum Brasiliae)”.

Boa leitura.

ÍNDICE

PREFÁCIO

INTRODUÇÃO

1.

BRASIL, O GIGANTE ADORMECIDO

2.

BRASIL PRÉ-HISTÓRICO

3.

BRASIL PROTO-HISTÓRICO

4.

BRASIL FENÍCIO

5.

HY-BRAZIL: DELENDA PHOENICIA

6.

A “CÁRIA” BRASILEIRA

7.

BRASIL AMERÍNDIO

8.

NAVEGAÇÕES PRÉ-CABRALINAS

9.

BRASIL IBERO-AMERÍNDIO

10.

ILHAS PERDIDAS E CARTAS ACHADAS

11.

BRASIL NA ROTA DO CRUZEIRO

12.

BRASIL BANDEIRANTE                        

13.

SÃO BENTO DE PIRATININGA (SP)

14.

RIO DE JANEIRO, MOSAICOS DE HISTÓRIA INSÓLITA

*

SIGNIFICADO OCULTO DO MORRO DOS DOIS IRMÃOS

A ESCRITA MISTERIOSA DA PEDRA DA GÁVEA

PÃO DE AÇÚCAR. ONDE O DIABO FOI APRISIONADO

O PARQUE LAGE E A “TERRA OCA”

OS SEGREDOS DE N.ª SR.ª DA GLÓRIA DO OUTEIRO

SEGREDOS DO JAZIGO DO MARQUÊS DO PARANÁ

SÍMBOLOS DA TRANSLATIO IMPERII NO PALÁCIO DO CATETE

PALÁCIO PEDRO ERNESTO: ONDE OS DEUSES INSPIRAM OS POLÍTICOS

MENSAGEM OCULTA DO MONUMENTO A D. PEDRO I

ORIGEM E SIGNIFICADO DA BANDEIRA DO BRASIL

SÍMBOLOS MAÇÓNICO-REPUBLICANOS NO PALÁCIO TIRADENTES

AS VIRTUDES MAÇÓNICAS NA PRAÇA TIRADENTES

O “MONGE FANTASMA” DO PALÁCIO LARANJEIRAS

AS CASAS MAL-ASSOMBRADAS DO RIO DE JANEIRO

LAZARETO E AS TRAGÉDIAS ESQUECIDAS

O MARACAJÁ ENCANTADO DA PEDRA DA ONÇA

15.

1500: SÃO THOMÉ DAS LETRAS

16.

MISTÉRIOS DA BANDEIRA DE SÃO LOURENÇO (MG)

17.

SÃO LOURENÇO DE MINAS GERAIS (CAPITAL ESPIRITUAL DO BRASIL)

18.

ITAPARICA, BERÇO DO BRASIL

19.

ODE AO RONCADOR (FUTURO DO GÉNIO BRASILEIRO)

20.

BRASÍLIA E O BRASIL FUTURO (ALVORADA DA NOVA ERA)

21.

A MAÇONARIA E O BRASIL INDEPENDENTE

22.

O BRASIL À LUZ DAS SUAS ARMAS

Mosteiro da Batalha, o ‘Templo da Pátria’ – Por Vitor Manuel Adrião Terça-feira, Fev 1 2022 

Calvaria de Cima, Calvário decisivo para a independência de Portugal do jugo de Castela, em pleno campo de São Jorge nas imediações de Aljubarrota. Dois exércitos em confronto campal, o de D. João I de Portugal, com o seu condestável D. Nuno Álvares Pereira, e o de D. João I de Castela, apoiado por Pedro Álvares Pereira, irmão desavisado do condestável que viria a ser santo para as almas portuguesas. Corria a tarde solarenga, abrasava o calor, de 14 de Agosto de 1385. O embate foi rápido, durou cerca de uma hora, mas com ferocidade extrema. A desproporção numérica das forças em confronto era significativa em relação aos portugueses: cerca de 6.500 homens contra 31.000 inimigos. Só o Céu poderia dar a vitória ao adivinhar-se a derrota certa. Mas o génio militar de Nuno Álvares Pereira, com o Céu apoiando-o nesse dia decisivo para a sobrevivência da independência futura de Portugal, veio a transformar o desastre militar em vitória retumbante das armas lusitanas no doravante chão sagrado da pátria jogada na batalha real (dois reis em confronto) de Aljubarrota.

Do lado português contavam-se 4.000 peões, 1.700 lanceiros, 800 besteiros e 200 arqueiros ingleses. Do lado castelhano contavam-se 15.000 peões, 6.000 lanceiros, 8.000 besteiros, mais de 2.000 cavaleiros franceses e 15 morteiros. No final, no rescaldo da batalha, verificou-se com admiração que as baixas portuguesas eram ínfimas em comparação às castelhanas: 500 a 600 homens para 4.000 a 5.000 do lado de Castela, com muita da nobreza espanhola e francesa ficando morta ou prisioneira dos portugueses, fugindo às pressas D. João I de Castela, levado numa liteira tomado de febre, talvez da lepra que caíra sobre a hoste castelhana, deixando rico espólio para trás[1].

No fragor da batalha, no perigo da morte eminente, D. João I de Portugal viu aparecer-lhe Nossa Senhora da Oliveira acompanhada de São Bernardo, como narra Oliveira Martins[2] no seguimento do que antes contara Frei António Caetano de Sousa[3]: “E quando a vanguarda portuguesa cedia, Nun´Álvares, fitando a sua bandeira, desfraldada ao vento, viu-a cercada dum bando de pombas brancas que o encheram de valor e esperança. O rei tinha corrido da retaguarda em seu auxílio, guiado pela Senhora da Oliveira, de braços abertos. S. Bernardo aparecia também, empunhando o báculo, um braço de monge, donde caía um paludamento retinto de sangue.

“O céu abria-se para guiar, alucinado, no fragor da luta, e o braço hirto, nos crispamentos do instinto orgânico.

“Vinha o rei correndo e combatendo, no meio da horrenda batalha, quando o Sandaval, aparando-lhe um golpe de facha, o desarmou, fazendo-o cair de joelhos. Estava por terra: ia morrer? Não. Ergueu-se, num salto, a investir; mas já o Macedo varara o castelhano, deixando-o estendido. Era terça-feira de Nossa Senhora, a quem se devia a vitória.”

Frei António Caetano de Sousa descreve:

“No momento em que Álvaro Gonçalves do Sandaval pegou com grande ousadia e destreza na facha de armas de el-rei, lh´a arrebatou da mão com tal violência que o fez ajoelhar em terra. Neste tão evidente perigo, a não ser tão grande o coração de el-rei, ficaria oprimido da ousadia deste valente mancebo; mas, com ânimo frio, e com valor sem igual, levantando o pensamento ao céu, invocou os merecimentos de S. Bernardo (D. João era Grão-Mestre da Ordem de Avis, pertencendo ao convento dos cistercienses) de quem se jactava filho e venerava como patrono. Quando (caso maravilhoso) viu sobre a tenda de el-rei de Castela, a pouca distância, S. Bernardo com um “Bago Marcial”, arvorado e pendente do Bago, um paludamento militar ou cota de armas, como tingido de sangue. Animoso e esforçado se levantou logo do chão, ajudado por Martins Gonçalves de Macedo, sempre afortunado, nas ocasiões de o servir, quando quis castigar o atrevimento, tendo já cobrado a facha, e descarregando o golpe sobre o Sandaval, foi a tempo que já pelos seus era morto. Continuou nos inimigos tal estrago que já não lhe faziam oposição, e, prosseguindo a luta que o céu declarava em seu favor, começaram a fraquejar os inimigos; os nossos carregaram com tal esforço que, largando o campo, já destroçados, se puseram em precipitada fuga, sendo Deus servido que ficassem vencidos nas armas os que se julgavam vencedores, pelo poder e confiança. Conseguida esta tão insigne vitória, depois de cumpridas as cerimónias militares, então usadas, de permanecer no campo três dias, passou ao real convento de Alcobaça, onde com pio e católico ânimo fez cantar um ofício pelos fidalgos e soldados portugueses, dando-se honra à sepultura, no claustro do mosteiro, aos de maior categoria, merecendo eles que em urnas de alabastro se conservassem as suas cinzas, já que em gloriosos feitos se eternizaram os seus nomes.

“El-rei assistiu à festa de S. Bernardo; depois de comungar, no fim da missa, assentado no seu trono, na presença dos grandes da corte e de inumerável gente referiu com juramento este milagroso sucesso; deixou no mosteiro vários despojos da batalha, que são irrefragáveis testemunhos de devoção, com que venerava aquela casa.”

D. João I invocando Nossa Senhora da Oliveira na batalha de Aljubarrota. – Pintura, datada de 1665, de Frei Manuel dos Reis, monge arrábido do Convento de São Pedro de Alcântara, Lisboa, actualmente exposta no Museu Alberto Sampaio, instalado na antiga Colegiada de Guimarães.

Depois, indo saldar conta com o Céu que tanto o protegera, acompanhado de um cento de besteiros, D. João I foi em romaria a Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães, saindo de Santarém em direcção ao Porto e daí a essa cidade berço da Nacionalidade, Ela que lhe aparecera no mais aceso da refrega, quando a sua vida perigava, e fez o voto solene de levantar um templo consagrado à Virgem da Assunção, por a batalha ferir-se na véspera do dia da sua celebração e festa (15 de Agosto). Mais, ordenou D. João I que a Assunção da Virgem ficasse o Orago de todas as sés ou sedes devocionais do país, como é ainda hoje.

O evoco da Virgem e de São Bernardo posta as hostes portuguesas no estatuto da cavalaria sagrada – sacra bellium – recambiando ao ambiente da demanda do Santo Graal onde D. João I, o Mestre Perfeito, faz o papel do rei Artur e D. Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável, o de Galaaz do Carmelo Lusitano, como o consignou Pinharanda Gomes[4] no seguimento da Crónica do Condestável [5].

Nesse sentido, tem-se o «Graal» no enorme caldeirão de bronze capturado aos castelhanos pelo capitão Gonçalo Rodrigues, o Roas, que D. João I ofereceu à freiria de Alcobaça e está hoje na Sala dos Reis, para “lembrança eterna da vitória de Aljubarrota”. Foram três os caldeirões capturados ao inimigo, mas esse era o maior que depressa se tornou o mais polémico. Com efeito, de lá para cá essa presa de guerra, onde se cozinhava o rancho da tropa castelhana, tem sido pomo de invenções fantásticas e de controvérsias infundadas, só sendo verdade ser símbolo da derrota espanhola, tanto que quando Filipe II de Espanha, I em Portugal, visitou o mosteiro, os nobres castelhanos que o acompanhavam aconselharam-no a destruir o caldeirão, para “olvidar aquella verguenza”. Um dos cortesãos sugeriu que o bronze da peça fosse derretido e com ele se fizesse um sino. Então, o rei Filipe respondeu com ironia: “Se ele já assim faz tanto ruído, o que não fará se o vertermos em sino?” E assim se salvou ficando até hoje no egrégio silêncio da memória nacional.

O facto é que, além das razões geopolíticas luso-castelhanas que acabavam comprometendo a autoridade do papado, com João Henriques I de Castela arvorando soberania sobre Portugal porque a sua familiar, a rainha portuguesa Leonor Teles, apodada de Aleivosa pelos portugueses, amancebada com o conde castelhano João Fernandes Andeiro, era mãe de D. Beatriz sua esposa e, portanto, ter direitos soberanos sobre Portugal, no que foi contrariado pelo Mestre de Avis e pelo Condestável do Reino, temendo a perda eminente da independência nacional, terminando, em 6 de Dezembro de 1383, com a morte do conde Andeiro às mãos de D. Álvaro Pais, chanceler-mor do finado D. Fernando I de Portugal, no paço de Lisboa, e o povo sublevado aclamando antecipadamente o Mestre como rei de Portugal. Favorável à causa portuguesa, condenando o cisma castelhano, o Papa Bonifácio IX (eleito em 2 de Novembro e entronizado a 9 do mesmo mês de 1389, durando o pontificado até à sua morte em 1 de Outubro de 1404), na bula Quia rationi congruit, de 28.1.1391, declarou miraculosa a Batalha de Aljubarrota. Esta ficou doravante como batalha real santificada pelos Céus com o reconhecimento da Igreja Universal. Renovara-se a memória da Batalha de Ourique (25.7.1139) que tornara Portugal país independente, sagrara-se o chão português com a bênção renovada da Rainha dos Céus, Orago da Cavalaria Avisense primor das Armas Lusas.

Dando consecução ao voto contraído por D. João I, logo no ano seguinte ao da batalha real, no vale junto ao rio Lena (filólogo lembrando Lethes, o “rio do esquecimento” da mitologia greco-latina) que em Leiria cola com o Lis, começou a edificar-se em 1386 o mosteiro de Santa Maria da Vitória, cujas obras durariam até 1563 passando por várias fases, alindando cada vez mais este que é o mais valioso e imponente testemunho do gótico mendicante português colado ao gótico flamejante inglês. Para este estaria a mão do mestre arquitecto irlandês David Huguet (1416-1438), vindo da Catalunha para aqui, e para aquele a do mestre arquitecto português Afonso Domingues (freguesia da Madalena, Lisboa, 1330 – 1402), que já realizara obras na Sé Maior de Lisboa. Pela grande extensão da obra e pelas diversas gerações de mestres e operários que por ali passaram, a Batalha constituiu-se em verdadeiro laboratório de formas e opções estéticas, bem como numa escola prática efectiva que marcou decisivamente o território português durante o século XV, uma vez que muitos dos oficiais, serventes e aprendizes, mestres pedreiros, carpinteiros ou lavrantes ali adoptados e formados, com as suas campanhas próprias, foram sendo responsáveis por outros estaleiros de diferentes dimensões no reino[6].

O primeiro de todos os mestres foi Afonso Domingues, que cegaria pouco antes da sua morte, talvez em 1400-1401, razão de ter sido substituído por David Huguet, apesar de se dever a ele todo o esquisso original do complexo, já de si portador de intenções herméticas tão do agrado da mística danteana do mestre português, adoptadas por quantos depois o seguiram, afiliados ao mesmo hermetismo prático de “fazer cantar a pedra”, no dizer de São Bernardo de Claraval. Pode afirmar-se que a guirlanda operática portuguesa encabeçou a obra de construção de Santa Maria da Vitória, e segundo Saúl Gomes[7], no seguimento da notícia dada por Frei Francisco de São Luís[8], foram os seguintes os seus mestres arquitectos principais:

Afonso Domingues – 1386 a 1402; David Huguet – 1402 a 1438; Martim Vasques – 1438 a 1448; Fernão de Évora – 1448 a 1477; Mestre Guilherme e João Rodrigues – mestres vidreiros, aquele de 1477 a 1480, e este de 1480 a 1485; João de Arruda – em 1490; Mateus Fernandes, o Velho – 1480 a 1515; Mateus Fernandes, o Novo, filho do anterior – 1516 a 1528; João de Castilho – 1528 a 1532; Miguel de Arruda – 1533 a 1563; António Gomes – citado em 1548 e 1551 como “mestre das obras”; Dionísio de Arruda – 1563 a 1576; António Mendes – 1576 a 1580. Esteve com D. Sebastião em Alcácer-Quibir, onde ficou prisioneiro.

Ao mesmo tempo que se edificava o mosteiro tinha-se construído, no mesmo ano de 1386, nas traseiras dele um templo de modestas proporções destinado à satisfação espiritual dos operários do enorme estaleiro. Segundo o cardeal Saraiva, essa igreja na primeira metade do século XV já era designada por Santa Maria-a-Velha, ou igreja velha (oposta àquela mosteiral, como Santa Maria-a-Nova, ou igreja nova), como consta dos documentos do cartório do mosteiro, entre 1429 e 1494, havendo um outro documento de 1721 referindo a igreja como sendo da antiguidade do mosteiro e que ela pertencia a ele[9]. Pertencente à Ordem de São Domingos, esta igreja velha assegurou as funções litúrgicas até 1532-34. Foi o primeiro espaço de carácter colectivo, uma espécie de local provisório que permaneceu até à primeira metade do século XX, quando foi demolido[10].

Desaparecida igreja de Santa Maria-a-Velha, Batalha

Com efeito, D. João I doou à Ordem Dominicana o asseguro espiritual do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, no que não foram alheios os bons ofícios do Doutor João das Regras, chanceler do reino, e de Frei Lourenço Lampreia, confessor do monarca. O imóvel esteve na posse daquela até à extinção das Ordens Religiosas em 1834, sendo depois incorporado na Fazenda Pública, estando hoje na dependência da Direcção Geral do Património Cultural (DGPC)[11] e integra a lista do Património da Humanidade definida pela UNESCO desde 1983.

Fundados em França por São Domingos de Gusmão, em 1216, como Ordem de Pregação, os dominicanos constituíam-se em mendicantes zelosos no culto divino e aplicados nos estudos superiores, nisto sabendo-se que a maioria dos priores batalhinos detinham graus académicos, como foi o caso de Frei Lourenço Lampreia, primeiro prior do convento, doutorado em Teologia. Quase todos os frades, que não eram monges isolados no clausural, possuíam altos estudos, o que tornava muito importante a escolha de um prior à altura dessas exigências. Constituíam um grupo selecto detendo a autoridade e o poder sobre os restantes membros da Casa (frades professos, irmãos leigos e noviços), quer em virtude das suas noções de docência, quer pela sua actividade na pastoral monástica, quer ainda pela proximidade que alguns deles usufruíam junto da aristocracia cortesã, nomeadamente como confessores, o que veio a contribuir, mais tarde, para que no convento da Batalha se instituísse uma universidade de teologia, com docentes como Frei Bartolomeu dos Mártires[12].

A entrega de D. João I desta nova Casa aos frades pregadores e não aos cistercienses cujo Orago lhe apareceu no fragor da batalha real, era precisamente por em Alcobaça, a pouco mais de vinte quilómetros de distância, esses já aí estarem e aqui requeria-se uma nova Ordem onde o monge contemplativo se completasse com o frade pastor. Escolheu-se a dos dominicanos, isto é, os domini-canes, “cães do Senhor”, no sentido de guardiões fiéis da integridade canónica da Igreja, função exacerbada quando criou o Tribunal do Santo Ofício que, em 1536, entrou em Portugal reinando D. João III, passando a reprimir além de religiosos a sociedade civil de opinião discordante.

Mas o dédalo censor dos inquisidores não atingia as corporações operáticas de mestres arquitectos, afins aos monges construtores, gozando da protecção directa da Coroa e até das mais altas dignidades do Clero, para poderem exercer livremente, apesar de maneira velada, o pensamento hermético que os assistia, como se repara aqui na Batalha. Acerca disto, disse o Professor Henrique José de Souza[13]:

“[…] Essa misteriosa Ordem chamada Rosa+Cruz, da qual diremos algumas palavras. Tal Ordem provém de uma outra Instituição denominada Monges Construtores. Esses mesmos que esculpiram as cabeças de certos bispos e cardeais, disfarçados de demónios, nessas portentosas entradas de igrejas e catedrais do mesmo Cristianismo. Tais Monges foram, de facto, grandes Iniciados. E a prova é que mal desapareceram de Roma jamais foi possível construir obras iguais… É inútil dizer que semelhante associação de maçons religiosos nada tinha de comum com o Papado, do ponto de vista político. Possuía uma carta do Papa e nada mais… Um Rosacruz, um Adepto, um Iluminado não se revela a ninguém, não se diz portador de “poderes psíquicos”, a menos que a sua Inteligência alcançando os páramos do Infinito, o revelem na presença de outros Iluminados como ele.”

Pois bem, durante o período histórico os collegia fabrorum romanos foram a origem do saber prático das confrarias de monges construtores (séculos XI-XIII) que estiveram na base da formação da associação dos frates roseacrucis no século XIV, nos quais depois se inspiraria parcialmente, no século XVIII, a chamada Maçonaria Especulativa. Portanto, aqui na Batalha tem-se a fonte de inspiração desses antigos operativos no chamado “cristianismo esotérico” a que não foram alheias as obras de Dante e de Virgílio, além de Dionísio, o Aeropagita, com a sua cosmologia sagrada, além dos saberes práticos pitagóricos levados à aplicação filosófica no platonismo.

Segundo o teósofo António Castaño Ferreira, os mestres arquitectos medievais – coevos da construção da Batalha – eram afins aos Mistérios Gregos ocultados no termo Cabirim. Com efeito, em 1940, ele proferiu na sede da entidade teosófica na capital carioca: “Ainda precisamos dizer algo sobre a Estatuária, que tão ligada se encontra aos cultos religiosos de todos os povos. As esculturas, mormente as representativas de figuras humanas ou de deuses, eram a cristalização, nas artes plásticas, do ideal místico ligado à manifestação objectiva dos poderes do Logos. Plutarco, o excelso Iniciado grego, numa das suas obras famosas (De Ísis e Osíris), procura demonstrar que as estátuas dos deuses obedeciam, nas suas harmoniosas proporções, às medidas divinas. Daí, talvez, que os antigos gregos tenham tirado a palavra Cabirim, para expressar os quatro grandes Deuses Universais, tão secretos e misteriosos que as suas iniciações, na Samotrácia, se tornaram célebres pelas dificuldades quase insuperáveis que antepunham aos postulantes. Basta dizer que só se conhece, nas obras clássicas, uma breve referência aos nomes desses Deuses: Axieros, Axiokersa, Axiokersos e Cadmos.

“O termo Cabirim, segundo o Iniciado inglês Henry Moore, originou-se de dois vocábulos fenícios: cab e urim, isto é, a “medida (cab) dos céus (urim)”. Cabirim corresponde, ainda na Grécia, aos famosos Cosmocratores (Deuses Criadores), e na Índia aos Cumaras, símbolos vivos das medidas canónicas, que a Cabala vela e a Mercabah desvela aos que a ela têm a acesso.

“A Mercabah, com efeito, é o Carro de Fogo constituído por essas quatro Potestades. Dizem os livros herméticos que os símbolos dos elementos cósmicos foram escondidos no túmulo de Osíris. Trata-se de uma alusão às medidas canónicas que somente o escultor iniciado podia imprimir nas suas estátuas, a ponto de lhes dar vida e poder. Não há uma única imagem de Deus ou um único símbolo cósmico personificado que não tenha recebido esse hálito vitalizador.”

Eis aí o motivo de certas estátuas e pinturas impressionarem vivamente quem as observa, despertando-lhe místicas impressões. Que Afonso Domingues e Mateus Fernandes eram profundos conhecedores da ars hermética, parece não haver dúvidas, sobretudo o primeiro que cegando no final da sua vida ainda assim viveu para corrigir o irlandês Huguet, sobretudo na deposição exacta da pedra fundamental na abóbada da Sala do Capítulo, que aquele não soube realizar. Sobre isto, diz Paulo Pereira (ob. cit.):

“No entanto, a lenda iria associar mestre Afonso Domingues à feitura desta sala. Fazendo eco de lendas semelhantes existentes em outros monumentos com o mesmo grau de perícia, diz-se que Afonso Domingues passou três dias e três noites, sem comer nem beber, sentado debaixo da abóbada que todos pensavam que iria cair, para provar a solidez da sua realização. Obviamente que a história foi romanticamente celebrizada no século XIX por Alexandre Herculano mas, na realidade, parece encerrar outros sinais não menos interessantes. De facto, esta lenda – e todas as que com ela se identificam – parece encenar, metonimicamente, uma verdadeira iniciação ou uma consagração. Se Afonso Domingues era já cego, não é menos verdade que esta «cegueira» parece igualmente encerrar uma espécie de metáfora: é que a Batalha parece ter sido um dos primeiros estaleiros de obras em Portugal a utilizar de forma sistemática o desenho como matéria de projecto, ensaiando um novo modus faciendi que se substituía à administração «directa» e ao fabrico de peças à escala I:I exclusivamente a partir de moldes. A execução baseada na abstracção do desenho constitui uma espécie de «cegueira» por comparação com a arquitectura tradicional (mais manual), pois entrava em jogo uma nova fase de preparação e concepção.”

O mestre Mateus Fernandes, o Velho (Covilhã, c. 1465 – 10.4.1515), está sepultado em túmulo raso, com sua esposa Isabel Guilherme, à entrada do claustro desta igreja, o qual possui a legenda seguinte: “Vós homens que passais a Deus Senhor nos rogai. Não deixeis de bem fazer porque assim haveis de ser”. É expressão do pietismo da devotio moderna do século XVI.

As heterodoxias que preenchem este espaço monumental registam-se logo no pórtico gótico de entrada na igreja, composto de um total com mais de setenta figuras de vulto inteiro. Este compósito é chamado de Igreja Triunfante e Cidade Celeste, tendo-se na primeira das suas arquivoltas os Serafins transmissores da Sabedoria e do Amor; na segunda arquivolta os Anjos da Música com as “harpas de Deus”, expressando a Harmonia Universal, ambas as Hierarquias cumprindo a Missão Divina juntamente com os vinte e quatro Anciãos do Apocalipse, os “Seres Viventes”; segue-se a arquivolta dos reis, patriarcas e profetas do Antigo Testamento, e finalmente os santos e santas mártires do Cristianismo. Os quatro Apóstolos do Novo Testamento estão ao centro coroados por baldaquinos e identificados pelos animais da sua iconografia (águia, leão, touro, menino – João, Marcos, Lucas, Mateus), cercando o Pantocrator ou Todo-Poderoso. No arco conopial, em cima, encontra-se representada em relevo a Coroação da Virgem Maria. Ela assiste à Hierarquia Celeste da Civitas Dei e encarna a própria Assembleia, a Ecclesia firmada na comunhão dos santos. A execução deste portal esteve sob a direcção de David Huguet, que obedeceu à directiva de programação emanada pela própria Ordem Dominicana, possivelmente pelo frei prior Lourenço Lampreia.

Interiormente, a igreja possui as dimensões seguintes: 80 metros de comprimento por 22 metros de largura para um vão máximo na flecha de 32,5 metros. Apresenta-se em forma de cruz latina apegada ao gótico português, mendicante como a Ordem instalada aqui. Com três naves, o seu transepto é pronunciado e possui cinco capelas na cabeceira. Na capela-mor, poligonal, as joias são os vitrais, manuelinos como os da Sala do Capítulo e os únicos autênticos que restam. Engastam-se em duas ordens de frestas ogivais e representam: a Visitação (datada de 1517), a Adoração dos Magos e Fuga para o Egipto (com capitéis da Renascença), e a Ressurreição de Cristo. Num dos vitrais do lado do Evangelho apresentam-se as duas figuras ajoelhadas do casal de benfeitores régios, D. Manuel I de Portugal e sua segunda esposa D. Maria, infanta de Aragão e Castela, ladeando o Orago da Casa, São Domingos. Possui o carácter da pintura manuelina, e as tonalidades cinzentas realçadas pelos vermelhos das túnicas, criam irisações de rubi e pérola. O desenho dos vitrais data de 1510-1513 e é do mestre vidreiro Francisco Henriques, que já desenhara os de Santa Cruz de Coimbra e que depois devia fazer os de São Francisco de Évora[14].

Devo assinalar, aliás, que todo o edifício estava pintado em cores vivas dando-lhe a vivacidade da beleza transformando-o no mais belo monumento gótico português, registando-se ainda alguns pigmentos originais na Capela do Fundador que era uma paleta de cores intensas e brilhantes, indo no todo do edifício sobressair o amarelo dourado, o azul e o vermelho[15], essas que são as três cores primárias afins a Satva, Rajas e Tamas, ou por outra, a energia centrífuga para o Espírito (amarelo), a energia rítmica ou equilibrante para a Alma (azul) e a energia centrípeta para o Corpo (vermelho).

A Capela do Fundador foi construída por David Huguet entre 1426 e 1434 para servir de panteão da Ínclita Geração, com o grandioso túmulo, com vasta inscrição em letras douradas, de D. João I e sua esposa D. Filipa de Lencastre, sobre duplo baldaquino flamejante, cujos belos jacentes adormecidos dão as mãos no chamado “laço de amor”, estando rodeados pelos túmulos parietais sobressaídos dos seus filhos, excepto o de D. Duarte. De planta octogonal, a sala é encimada por uma cúpula com abóbada de nervuras formando uma estrela de oito pontas. Feita em gótico flamejante de grande beleza e impressionismo, o seu programa dominante é mariológico, nisto se tendo como a Estrela da Anunciação que sendo Vénus no espaço sideral aqui é do anúncio da Ressurreição da Almas, nisto representada à direita pela Virgem com a vasilha d´água no braço direito tendo o colo ornado por um colar de pendentes de forma de “mãos de Fátima” (símbolo esconjurador das más influência psicofísicas), e à esquerda um Anjo com o filactério ou tefilin enrolado em torno do corpo, sinal de fidelidade e cumprimento da Lei (Torah).

Mosteiro de Santa Maria da Vitória – Capela do Fundador

O rei D. Duarte pretendeu inaugurar um novo panteão, o panteão duartino onde jaze, e para isso ordenou a criação do mesmo que veio a ser o espaço das Capelas Inacabadas, incorrectamente chamadas “Capelas Imperfeitas”, por nunca tendo sido concluída a sua cobertura nem aberta a porta que a ligaria com a capela-mor da igreja. Iniciado cerca de 1434, este espaço é da autoria do mestre Mateus Fernandes, cuja obra foi interrompida por morte do monarca e desinteresse de D. João III em prossegui-la, ainda que antes D. Manuel I tivesse endividado esforços em concluí-la, mas sem sucesso, destarte ficando inacabada[16]; reparte-se em sete capelas inscritas numa rotunda octogonal, cujo oitavo lado é modelado por um belo portal manuelino defronte para uma janela renascentista, atribuída a João de Castilho, cuja coluna classicista configura uma chave, a mesma do esquisso original do edifício que, no geral, se atribui a mestre Afonso Domingues (igreja, sacristia, capela-mor, porta travessa, claustro e sala do capítulo)[17].

Repete-se aqui o emblema heráldico e a divisa de D. Duarte I, numa acumulação tão do agrado do gótico final: tã ya serey, grafia portuguesa, propositadamente ambígua, para o francês tant je serei, como segundo verso da divisa que o rei adoptou – Léauté feray tant je seray, “Enquanto viver, serei leal”.  Descrita de modo anagramático, permite duas leituras a partir de leaule l saray: 1.ª, loyal je le serai, “leal o serei”, e 2.ª, j ele ferai loyalement, “eu o farei lealmente”. Fica de fora o anagramismo tâya serey, “aí satã é rei”, desconferindo com tudo e não ser digno de sequer ser especulado, mesmo que se refira apenas ao Mundo Inferior ou Sepulcral assinalado pelo panteão, porque tâya serey significa “serei leal (justo) enquanto viver”[18]. A alma da divisa é a hera, composta por ramos circulares entrelaçados, planta heráldica simbólica da amizade e fidelidade[19].

O confrontar com o plano geral da edificação da Batalha, cuja planta reproduz uma chave, tem levado alguns a aventarem teorias mais ou menos maravilhadas levantando a suspeita do caminho marítimo para a Índia já ser conhecido antes de Vasco da Gama realizar a célebre viagem, isto porque tal como acontece com o visitante que da igreja pretende deslocar-se às Capelas Inacabadas, terá de sair da mesma, contorná-la e aceder pela única abertura a norte, como acontece ao rodear-se o continente africano a sul para penetrar no Oceano Índico a caminho da Índia. Esta singular teoria partiu de João Magalhães Colaço Moniz Velasques Sarmento, visconde de Condeixa (1839-1896)[20], e foi apropriada por G. d´Orcet que omitiu citar onde se inspirara[21].

Por sua vez, o visconde de Condeixa terá se inspirado na obra de James Murphy publicada em fascículos, em Londres, entre 1792 e 1795. Esse autor irlandês, pedreiro, arquitecto, desenhista e pintor, visitara propositadamente a Batalha em 1788, para fazer as suas medições com as quais chegou a conclusões singulares[22], inspirado em frei Luís de Sousa, parecendo-me mais coerentes que essa teoria do contornar o continente africano.

A Clavis Portucalis – Chave de Portugal – esquissada pelo Argot, o Mestre do Gótico, parece ajustar-se ao sentido das Três Pessoas da Trindade aplicadas aos Três Tempos tradicionais, o que levou o cardeal Vicente Justiniano, Geral da Ordem Dominicana, a consignar a Batalha de “um novo Templo de Salomão”[23].

Para a Idade do Pai dispor-se-á as Capelas Inacabadas; para a Idade do Filho impor-se-á o espaço da Capela Mor / Igreja; para a Idade do Espírito Santo ficará a Capela do Fundador, esta que até ao terramoto de 1755 era rematada por uma flecha octogonal terminando numa chama, indicativa do Paracleto, do Advir, da Ressurreição, segundo o visconde de Condeixa.

Afim à prerrogativa “novo Templo de Salomão”, ter-se-á:

Capelas Inacabadas – Doutores… in Lege et Homnibus.
Capela Mor e Igreja – Sacerdotes… in Deus et Fidelis.
Capela do Fundador – Reis… in Rex et Patris.

O simbolismo da chave está, evidentemente, relacionado com o seu duplo papel de abertura e fechamento. É, ao mesmo tempo, um papel de iniciação e discriminação. Pelo que o simbolismo da chave (clavis) que abre a via iniciática também está expresso no Alcorão, onde se diz que a Shahadah é a Chave do Paraíso. As interpretações esotéricas fazem de cada um dos quatro vocábulos dessa profissão de fé (Não há outro Deus a não ser Deus) um dos quatro dentes da chave, a qual, desde que inteira, abre todas as portas da Palavra de Deus, ou seja, do entendimento superior, logo, as do Paraíso.

Ainda no plano esotérico, possuir a chave significa ter sido iniciado. Indica não só a entrada num lugar, casa, etc., mas o acesso a um estado, morada espiritual ou grau iniciático. A chave é aqui o símbolo do mistério a penetrar, do enigma a resolver, da acção dificultosa a empreender, em suma, das etapas que conduzem à iluminação e à descoberta.

Aqui, a descoberta do enigma maior de Santa Maria da Vitória em que se encerra a promessa de Advento de uma Idade Nova risonha de melhores dias para o mundo indo dar consumação à Parúsia Universal.

NOTAS

[1] João Gouveia Monteiro, Aljubarrota, 1385: a batalha real. Tribuna da História, Lisboa, 2003.

[2] J. P. Oliveira Martins, Vida de Nun´Álvares. Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1923.

[3] Frei António Caetano de Souza, Agiológio Lusitano. Lisboa, 1735.

[4] J. Pinharanda Gomes, O Galaaz do Carmelo. Separata da revista “Carmelo Lusitano”, n.º 7, Lisboa, 1989.

[5] Chronica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez Pereira, Lisboa, 1526. Reedição, revisão, prefácio e notas por Mendes dos Remédios. F. França Amado – Editor, Coimbra, 1911.

[6] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal – Arquitectura Sagrada. Círculo de Leitores, Lisboa, Maio de 2004.

[7] Saúl António Gomes, O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XV. Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Coimbra, 1990.

[8] Frei Francisco de São Luís (Cardeal Saraiva), Memória Histórica sobre as obras do Real Mosteiro de Santa Maria da Victória, chamado vulgarmente da Batalha. Memórias da Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1827.

[9] Saúl António Gomes, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha (Séculos XIV a XV), volume I. Edição do IPPAR, Lisboa, 2002.

[10] Renata Vieira, O enigma da Igreja de Santa-Maria-a-Velha da Batalha. Promontoria, revista do Departamento de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve, n.os 7-8, 2009-2010.

[11] Na Sala do Capítulo deste mosteiro está o túmulo do “Soldado Desconhecido” desde 10 de Abril de 1921, na realidade sendo dois militares tombados no conflito militar da I Guerra Mundial, um caído na Flandres, em França, e outro em Moçambique, na campanha africana. Alumiado pela “Chama da Pátria” do lampadário monumental da autoria de Lourenço Chaves de Almeida, o túmulo tem guarda de honra militar – rendida de hora em hora – e a protecção do mutilado “Cristo das Trincheiras”, que no território de Neuve-Chapelle, na Flandres, foi companheiro constante das tropas portuguesas.

[12] Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, 2 volumes. Lello & Irmão – Editores, Porto, 1977. W. A. Hinnebusch, Breve História da Ordem dos Pregadores. Figueirinhas – Secretariado da Família Dominicana, Porto, 1984.

[13] Henrique José de Souza, Cagliostro e São Germano. Revista Dhâranâ, n.º 110, Ano XVI, Outubro a Dezembro de 1941, Rio de Janeiro.

[14] Luís da Silva Mousinho de Albuquerque, Memória inédita acerca do Edifício Monumental da Batalha. Lisboa, 1881. Ana Maria Alves, Iconologia do Poder Real no Período Manuelino. À Procura de uma Linguagem Perdida. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1985.

[15] Joana Ramôa Melo e Luís Urbano Afonso, O Fascínio do Gótico – Um tributo a José Custódio Vieira da Silva. ARTIS – Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2016.

[16] Vergílio Correia, Batalha. Litografia Nacional – Edições, Porto, 1931.

[17] Raúl Proença, Guia de Portugal – Estremadura, Alentejo, Algarve. Biblioteca Nacional de Lisboa, 1927.

[18] Ruy de Pina, Chronica d´El-Rei D. Duarte. Edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1914.

[19] D. Duarte, Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta, Leal conselheiro (c. 1438) e Livro da ensinança de bem cavalgar toda sella. Fielmente copiados do manuscrito da Bibliotheca Real de Paris. Typographia Rollandiana, Lisboa, 1843.

[20] Visconde de Condeixa, O Mosteiro da Batalha em Portugal. Monografia Ornada de Vinte e Seis Gravuras Heliographicas. Edição Manuel Gomes, Firmin-Didot & C.ª, Lisboa & Paris. 1892.

[21] G. d´Orcet, L´Ordre du Christ du Portugal et la Conquête de l´Asie. In Revue Britannique, t. IV, Agosto de 1894.

[22] James Murphy (1760-1814), Plans Elevations Sections and Views of the Church of Batalha, in the Province of Estremadura in Portugal by Fr. Luis de Sousa; with remarkes. To which is prefixed and Introductory Discourse on the Principles of Gothic Architecture. I. & J. Taylor, High Holborn, London, 1795.

[23] Frei Luís de Sousa, ob. cit., livro VI, capítulo XIX.

Paraíso Terreal Arábico: Bortuqal, برتقال  – Por Vitor Manuel Adrião Sexta-feira, Jan 7 2022 

A região saloia do Termo de Lisboa marcou-se, além da pastorícia, pela agricultura intensiva a que se juntou, até há poucos anos, na aldeia de Frielas, concelho de Loures, a piscatória. Ora, durante a Ocupação Árabe da Península Ibérica (do início do século IX ao início século XIV, aquando Granada foi definitivamente conquistada pelos Reis Católicos) e dada a influência geopolítica de Lisboa, a Al-Lixbuna arábica, está fora de dúvida que parte das populações mouriscas foram rapidamente convertidas e integradas na sociedade cristã pós-Reconquista, sem que os cristãos sobreviventes da Ocupação Árabe deixassem de manter os seus núcleos ou moçarabias que antes estavam sujeitas político-economicamente, apesar de manterem a liberdade de culto religioso, às alcaçarias ou alcáçovas dos governantes árabes. Assim, pós-Reconquista mantiveram-se as canecas ou caneças (al-kanissat), glose gótica, das comunidades cristãs moçárabes, isto é, com usos e costumes árabes que herdou dos ocupantes.

Não resta dúvida que apesar dos árabes não terem incrementado todavia desenvolveram bastante a tecnologia agro-piscatória saloia, aqui particularmente a frieleira. Na agricultura, têm-se exemplos disso desde o arado radial às noras, cegonhas, condutas d´água, etc. Na pesca, observa-se o formato arabizante das barcaças e batéis que antes povoavam o Rio Trancão, semelhantes às canoas do Tejo, em rasgo de meia-lua. E nem falo do linguarejar saloio, todo ele de raízes arábicas.

Mas a prova mais rasgada da presença árabe neste lugar é, incontornavelmente, a Pedra Arábica de Frielas.

Lápide possivelmente funerária de belo mármore branco (incompleta, que a restante ainda não foi descoberta e a que há tem as medidas 0,33X0,51X0,06 cm), possui caracteres cúficos arcaizantes, possivelmente do século V da Hégira (1009-1106), tendo sido achada bem dentro da veiga de Frielas, na Quinta de Santo António, na ocasião propriedade do sr. eng.º Castanheira das Neves, então governador do Banco de Portugal, que além dessa possuía outras propriedades na região.

A partir dos meados do século V da Hégira (= 25 de Agosto de 1009 – 2 de Setembro de 1106), a decoração da epigrafia tumular do Al-Andaluz (ou seja, a Andaluzia como área fundamental de denominação muçulmana da Península Ibérica) evoluiu no sentido de uma execução formal muito mais cuidada, por vezes apoiando-se em motivos florais, arquitectónicos e outros, onde a preocupação estética foi marcante, subordinando o estilo da própria escrita.

Saliente-se, nesse fragmento de inscrição da peça arábica de Frielas, a representação de um arco muito semelhante ao que se encontra na estela funerária de Muhammad Sir, de Córdova, além da moldura exterior dos chamados “quadriláteros verticais” que vem de um período anterior. Talvez este arco seja já a representação simbólica, um pouco fruste é certo, de um mihrab, representação característica das “estelas de Almeria”, ou “lápides de arco simbólico”, datáveis do século VI da Hégira.

A escrita cúfica arcaizante, que foi usada nesta inscrição, caracteriza-se por o traçado das letras ser nitidamente angular, procurando reduzir as curvas de cada uma ao mínimo indispensável e evitando que os caracteres ultrapassem a linha base; o cúfico no Al-Andaluz, apesar da diversidade dos seus tipos regionais peninsulares, manteve sempre um certo classicismo formal, ao contrário do que aconteceu no resto do mundo muçulmano onde evoluiu para formas mais amaneiradas.

A primeira notícia deste precioso achado mereceu o entusiasmo de primeira página do Diário de Notícias (3 de Setembro de 1893):

“Na quinta do sr. Castanheira das Neves, em Friellas, foi descoberta uma verdadeira preciosidade archeologica. Trata-se de uma volumosa pedra quadrada com uma curiosa inscripção árabe.

“As inscripções árabes, como se sabe, são pouco frequentes em Portugal.”

Ora o citado proprietário, sr. eng.º José Manuel Castanheira das Neves, fotografou a estela pela qual David Lopes foi o primeiro a traduzi-la (em Cousas Arábico-Portuguezas, “O Archeologo Portuguez”, II, pág. 207, Lisboa, 1896). Seguiu-se-lhe Levi-Provençal em 1931 (em Inscriptions Arabes d´Espagne, Leyde – Paris), e Alois Richard Nykl em 1942 (em As Inscrições Árabes no Museu Etnológico do Dr. José Leite de Vasconcelos, “Ethnos”, II, págs. 23-24, Lisboa). Finalmente, em 1965, João Saavedra Machado inseriu a fotografia desta Pedra Árabe no seu grosso volume editado em Lisboa, Subsídios para a História do Museu Etnológico, que é onde está a peça em causa, com o registo E. 6877, havendo duas cópias suas em gesso: uma na Junta de Freguesia de Frielas, outra no Museu Municipal de Loures.

Quanto à sua inscrição, Alois R. Nykl é favorável a uma datação dentro do século V; talvez situá-la entre o último quartel do século V e o terceiro quartel do século VI da Hégira fosse mais consentâneo com a hipotética figuração do mihrab.

Segundo a tradução de David Lopes, assim reza o texto lapidar apresentando uma bela oração arábica:

“Deus é Eterno. Sê compassivo com o teu (bem) supérfluo, ó tu que me estás vendo, e contempla um lugar que é um dom do próprio Deus.”

Corroborando a assertiva de Pinharanda Gomes que se refere à lápide e a sua leitura (em História da Filosofia Portuguesa, vol. 3, “A Filosofia Arábigo-Portuguesa”, Guimarães Editores, Lisboa, 1991), por mim já referida (em Ode a Loures (Monografia Histórica), Pelouro do Turismo da Câmara Municipal de Loures, 1993), o referido lugar era, com efeito, a veiga de Loures, com o seu braço do Tejo, os vinhais, os olivedos, as hortas, os pomares, as águas e as salinas ainda activas antes de 1755.

Toda essa diversificada riqueza natural lourenha comparativamente às areias escaldantes e nuas do Magreb era, indubitavelmente, para o árabe recém-chegado verdadeiramente “um dom do próprio Deus”.

Não só a veiga lourenha mas todo o Bortuqal, o Portugal arábico que levou califas, vizires, guerreiros, poetas e místicos do Islão a dá-lo como Paraíso Terreal, o Jardim da Graça (Janna al-na´îm) ao mesmo tempo que Jardim da Fé (Janna al-îmânî), o que levaria à aproximação entre D. Afonso Henriques e Ibn Qasî, juntos num mesmo ideal messiânico ou madhînico na partilha dos frutos deste Paraíso como Núcleo Ocultado do Saber Primordial, ou o Jardim do Refúgio (Janna al-ma´wâ) para o mesmo Qasî, como relata Adalberto Alves na sua obra As sandálias do Mestre – O Islão Iniciático na formação de Portugal, Editora Ésquilo, Lisboa, 2009. Daí que, realmente, mais importante que a guerra belicosa e sangrenta (Fitna) entre cristãos e árabes fosse a Cavalaria Espiritual (Futuwwa) que a ambos unia na partilha de um Saber comum afim à Terra Eleita também partilhada, amplexo heterodoxo não raramente quebrado, quando regateando os seus frutos se descambava em actos de combate e conquista, nisto sendo a História profícua em contar.

Se a cristandade anacorética acabou reunindo-se, isolando-se e cerrando-se em espaços mosteirais a que chamaram Paraísos e Desertos, donde o apodo “padres do Deserto”, a islamidade da solidão (Inzawâ) levaria à fundação de azóias, mesquitas e mesquitelas, não raro só agregados solitários de al-khâssa ou iniciados na gnose corânica, que por seu modus vivendi granjearam fama dos santos e santões entre os povos vizinhos. Dessa época restam aqui e além, no espaço português, sobretudo na parte sul, as cubas e morábitos testemunhas da vida espiritual dos solitários islâmicos, e também memórias do Islão do Ocidente (Garb) que se cerrou ou fez-se esotérico, em comunidades isoladas como essa de Aracelis, no Baixo Alentejo.

Em Portugal, as cubas têm uma estrutura idêntica aos morábitos, sendo difícil fazer a distinção. Ainda assim, tem-se:

CUBA – É o túmulo de uma personagem dotada de santidade que ali habitou ou cuja memória foi perpetuada naquele imóvel. Assemelha-se na forma e nas dimensões ao morábito, neste caso podendo fazer as vezes de oratório. Muitos deles, sendo de origem árabe, foram transformados em pequenas capelas ou ermidas de romaria, sinalizando a paisagem do sul do país. Na realidade, a cuba reproduz e transpõe, para uma escala mais modesta, a forma do edifício mais importante da religião islâmica, a Caaba de Meca.

MORÁBITO – Pequena construção de forma geralmente cúbica (embora por vezes possa assumir uma planta redonda, octogonal ou hexagonal, mas sempre centralizada), com cobertura em meia-esfera, muitas vezes designada por cuba (kuba). A palavra deriva do árabe morabit, eremitério. Os morábitos podem, de facto, confundir-se com as cubas, das quais pouco diferem, sendo certo que os morábitos se destinavam a morada de um eremitão, enquanto, por definição, as cubas constituíam lugares de veneração dos restos mortais de um santão (o marabu ou marabuto). Os marabus, a maior parte das vezes, foram eremitas e/ou mestres sufis, ou seja, ascetas e místicos que se dedicaram à meditação e à doutrina esotérica ou gnóstica do Islão.

A ermida da Virgem de Aracelis (Ara ou Altar do Céu, Ara Coelis), no Monte Aracelis ou Monte da Apariça (Aparição), em São Marcos de Ataboeira, assenta num primitivo morábito árabe cristianizado pelos visitadores da Ordem de Santiago, célebre desde o século XVI pela mais importante romaria mariana que aí se efectua em 31 de Agosto. A Ara ou Altar do Céu, Aracelis, é a primitiva Boiante ou Boeira (donde a corruptela toponímica da aldeia próxima Ataboeira, saída de Ala ou Alva Boeira), a “Estrela d´Alva”, Vénus, como a mesma Stella Maris do episódio bíblico de Elias rogando a água do céu, tal qual o povo daqui a implora para a secura da planície alentejana, assim mesmo preiteando devoção à Senhora do Céu (Allatah) assinalada na mesma Vénus, alter-ego da Terra.

Grande terá sido a importância do morábito de Aracelis, que era a sétima de “seis irmãs”: Alcaria, Ourique, Aljustrel, Serpa, Martim Longo, Loulé, servindo de torre de vigia (atalaia) entre esses importantes centros de islamismo intercomunicando-se, assim compondo uma espécie de sistema geográfico em que os sete planetas tradicionais (Sol, Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vénus, Saturno) estivessem plasmados na Terra, cada qual com as suas idiossincrasias próprias, nisto, cada qual com o seu método de ministrar a Fé (al-Îmân).

De volta a Lisboa, a sede eclesial da devoção moçárabe era a igreja de São Cristóvão e São Lourenço, situada no sopé ocidental do bairro da Mouraria, e por sido poupada da destruição pelo terramoto de 1755 conserva no seu interior segredos de Tradição e tesouros de Arte de riqueza incalculável. Foi aqui que começou a pintura barroca em Lisboa, é o berço setecentista do barroco lisboeta como protobarroco, seguindo o programa sacro do Corpus Dei e da Santa Eucaristia conformado ao espírito da Contra-Reforma Católica (1545) à Reforma Protestante (1517).

A actual feição da igreja data de 1671-72, quando se concluiu o seu restauro, mas já sofrera um incêndio que a destruíra totalmente no reinado de D. Manuel I, possivelmente sendo quando nela se vulgarizou a evocação de São Cristóvão de Lícia, contudo já assinalado como seu Orago num documento paroquial do começo do século XIV, significativamente a centúria em que a cultura moçarábica já estava praticamente extinta na urbe e remetida aos campos agrícolas seus vizinhos, com isso recrescendo a presença çahroi ou çalaia, vulgarizada saloia, ou seja, a do “homem do campo”. No século XII, esta parte ocidental da Mouraria era o bairro dos moçárabes, os “cristãos sob regime árabe”, e a sua cabeça paroquial era esta mesma igreja então consagrada a Santa Maria de Alcamim, aparecendo ainda mencionada no primeiro quartel do século XIII.

Moçárabes mouriscos de Lisboa (séculos XIII-XIV)

A origem da igreja de Santa Maria de Alcamim talvez recue ao século IX-X, quando os árabes incorporaram os cristãos de Al-Lixbuna no seu regime administrativo, permitindo-lhes a celebração do culto. Alcamim entronca em dois significados, um geográfico e outro agrário: o de “caminho”, assinalando este templo como tutelar dos caminhos que, desde o actual Rossio, partiam para o interior, um para norte (pela actual Avenida Almirante Reis) e outro para oeste (pela actual Avenida da Liberdade), seguindo a ramificação do esteiro ainda existente na Idade Média. Por outro lado, alcamim ou al qamim significa literalmente “hortaliça”, mas também “horta”, e isto indicará o sítio como lugar de hortas e hortedos, pelo que o topónimo original bem poderia ser Santa Maria de Entre-Hortas.

Depois da conquista cristã da cidade em 1147 pelas forças de D. Afonso Henriques, houve quezília entre essas e os 38 moçárabes principais do cabido pelo senhorio da paróquia de São Cristóvão, sinal da sua grande importância já na época, e com violência o rito romano acabou por se impor ao rito hispânico, este que aos poucos foi se apagando na urbe. Contudo, até hoje permanece a memória pouco ou nada apercebida da incorporação moçarábica do santoral arábico passado ao cristão romano, como seja na imagem do próprio Cristóvão identificado àquela do Kadir por via miracula (literatura hagiográfica relacionada ao culto histórico), talvez o principal pomo da discórdia histórica e teológica, inclusive litúrgica, entre moçárabes e católicos.

Kadir é identificado pelos árabes como um dos companheiros de Moisés, dando-lhe o nome de Beliah Ibne Fáligue ou Ibne Nuh (Noé), indo incarnar um esoterismo islâmico onde se compreendem ou sintetizam tradições hebraicas relativas ao Patriarca Elias e ao Arcanjo São Miguel, este o assistente da Sinagoga (Mikael) mas também da Mesquita (Mirraïl) assim como da Igreja (Miguel). Segundo a lenda sagrada, Kadir terá descoberto a Fonte da Vida Eterna e bebido dela, pelo que não morreu e ainda é vivo (ideia parúsica do Madhi ou Messias) estando em parte incógnita aguardando o momento de ressurgir entre os fiéis. Se Kadir conduz o povo eleito a terra salva do Dilúvio Universal, por sua vez o gigante Cristóvão ou Christoferens é o que “carrega o Cristo” Menino, conduzindo-o a salvo através das águas caudalosas de um vau furioso à outra margem, lenda piedosa indicativa da Fé que resiste a todos os caudais de descrença (kufr) e mantém incólume a Igreja no caminho dos séculos. Por isto, tal como Kadir foi o condutor do seu povo, também Cristóvão é o padroeiro dos peregrinos e viajantes.

Rio de Janeiro, a “Cária” brasileira – Por Vitor Manuel Adrião Segunda-feira, Nov 29 2021 

Quem está ou chega no Rio de Janeiro, a “cidade maravilhosa” e maravilhada pela sua disposição geográfica perfeita, plantada à beira da imensa baía de Guanabara dando-lhe beleza ímpar, imagem-postal que percorre o mundo, e pelas muitas tradições e monumentalidades erigidas ao longo dos tempos que criaram raízes e lhe aumentaram, a par da beleza natural, o valor da importância sociocultural necessária ao entendimento do passado histórico brasileiro, dizia, quem está ou chega se inquirido for sobre qual seja o mais antigo ex-libris da cidade, invariavelmente apontará a Pedra da Gávea.

Hoje é vista como desafio a escalar pelos montanhistas, a saltar do seu topo pelos praticantes de “asa-delta”, mas também como fonte de estórias mal-assombradas e pomo de confluência das atenções e romarias das crenças de toda a espécie, o que lhe acresce e mantém o halo de sobrenatural e mistério.

Mas não há fumaça sem fogo…

Diz a Tradição Iniciática pela voz da Teosofia Brasileira que esse imenso bloco granítico fora talhado, no tempo fenício, de maneira a configurar uma esfinge e no seu interior escavado haver um vasto espaço que inicialmente constituiu-se um templo hipógeo, depois convertido em jazigo tumular.

No sopé do colosso granítico tem-se a escassa enseada Recreio dos Bandeirantes, onde um carreiro leva directamente ao topo da Gávea; defronte a essa praia de cascalho, há umas pequenas ilhotas que debruam a enseada. Ora, quando está maré baixa vê-se numa delas uma imensa cavidade que o mar engole feroz quando a maré sobe. Quem já penetrou no seu interior e saiu vivo, pois que muitas vidas já se perderam aí, desde pescadores veteranos a mergulhadores profissionais, conta que essa gruta submarina se prolonga na direcção do continente e bem por baixo da Pedra da Gávea, o que acaso atestará a tradição da Gávea comunicar-se subterraneamente com uma ilha defronte a ela. Acaso teria sido “boca de fuga” em caso de ataque inimigo? Poderia ser e poderia não ser. Fica a conclusão para a especialidade espeleológica. Mas também poderia ou poderá, quiçá, ser muito mais ainda: embocadura levando ao ventre da Terra, a essas regiões subterrâneas sob a cidade do Rio de Janeiro que têm sido a origem de tantas lendas e polémicas. O facto provado é que à Pedra da Gávea os tupis e tamoios chamavam de Metaracanga, “cabeça bonita coroada”, e Piraquara, “a toca, o buraco de mar”.

Administrativamente, localiza-se no Bairro da Tijuca próximo de São Conrado, vizinho do Bairro da Gávea, no sul da capital carioca, tornando-se evidente ter sido essa Pedra a dar o nome a esse último bairro luxuoso, significando gávea, na língua portuguesa, o cesto colocado no alto do mastro de um navio, donde o marinheiro podia observar, vigiar e, eventualmente, avistar terra. Curiosamente, no caminho de subida ao topo do maciço o lugar da primeira vista que se tem de toda a cidade e baía em baixo, leva o significativo nome de Pedra do Navio, e logo depois, mais à frente, a Pedra do Grito ou do Avistamento. Por conseguinte, o significado desta palavra estende-se a alguém ou a algo que está a vigiar e a guardar alguma coisa.

Pedra da Gávea, Esfinge do Brasil… De facto, ela carrega vários sinais indesmentíveis como assinalam diversos autores, mesmo que as suas explicações possam ser bastante discutíveis. Nisso está o caso do livro de Eduardo B. Chaves[1], apesar de fornecer uma série de informações importantes sobre motivos decorativos desaparecidos do colossal rochedo, as quais serão reproduzidas aqui.

Um desses motivos seria a “cauda” da pressuposta “esfinge”, a tromba do elefante como lhe chamava o povo, enorme rochedo que numa noite chuvosa de 1919 rolou do alto da Pedra da Gávea. Informa também que, oculta sob a espessa vegetação escondendo a parte traseira da “esfinge”, existe uma escadaria com cerca de 50 degraus muito rentes (provavelmente desgastados pela erosão) levando a um terraço de formas ainda perfeitas que, “evidentemente, foi esculpido”. Aí existe um trono, com o braço direito semidestruído, voltado para o Oriente, ou seja, para o Sol Nascente[2].

Outro motivo seria um Sol esculpido em alto-relevo no topo, sobre a “cabeça” da Pedra da Gávea, destruído a marretada cerca de 1957, cujos vestígios do vandalismo ainda hoje podem ser confirmados facilmente.

Há também o famoso “portal” da Gávea, visto do Bairro da Barra da Tijuca. Contam os moradores da vizinhança que uma grande pedra rolou do seu alto numa noite de tempestade, dessa feita do lado esquerdo da montanha, tendo em vista que a “esfinge” não existe dessa parte. Quando o rochedo caiu, deixou à vista algo interessante: uma espécie de portal, inclusive visto de baixo. As suas dimensões são 15 metros de altura por 8 de largura e 4 metros de profundidade. Não falta quem acredite que essa seja a suposta famosa entrada para o interior da Pedra da Gávea[3].

Finalmente, exactamente defronte à Pedra da Gávea tem-se a Pedra Bonita, com os seus 609 metros de altura, cujo acesso a pé é facílimo. No seu cume aplainado, a exemplo do da Gávea, estão perfeitamente esculpidos na rocha viva sete círculos concêntricos, um dentro dos outros, defronte para a “esfinge” carioca.

Lugar altaneiro de óbvio culto astrolátrico por povos primitivos, neste contexto podendo-se instalar cários e fenícios, esses sete círculos concêntricos para uma oitava coisa assinalada na própria “esfinge”, a Tradição Iniciática permite a possibilidade do conjunto lítico poder se inscrever no culto primitivo aos Cabires ou Kabirim, “deuses poderosos”, do orbe celeste (como os mesmos Cumaras ou Kumaras védicos, os “Planetários de Rondas” da nomenclatura teosófica), da devoção dos povos mediterrâneos, inclusive dos fenícios, cultores dos Mistérios Sagrados, segundo Helena Petrovna Blavatsky[4]. Simultaneamente, poderá ser a representação do primitivo Sistema Geográfico de Teresópolis, em guisa de “círculos planetários” ou “círculos geográficos” em torno do oitavo sintético representativo do Sol Oculto, Espiritual: Teresópolis, aliás, Charma.

De maneira que desde muito cedo o contorno da Pedra da Gávea, na vertente meridional do maciço da Tijuca com os seus 842 metros de altura, foi associado a uma esfinge. Inclusive a maioria das pessoas conhecem hoje, sem mais apuramento ou erudição, o seu frontispício pelo nome de “Cara do Imperador”, referindo-se ao imperador D. Pedro II, em seu tempo caricaturado como uma esfinge na Revista Illustrada (1876), dispondo-o no lugar do maciço, provando assim que já na época existia a associação da Pedra da Gávea a uma esfinge. No interessante livro de Araken Távora[5], ele reproduz essa caricatura do imperador, informando ter ocorrido depois da sua primeira viagem ao Egipto em 1871, que era pessoa muita culta e inclusive dominava a língua sânscrita. Devido à mania de caricaturar o imperador teria surgido mais essa, mas cujo significado real, em última instância, só poderá ser: D. Pedro II era um Iniciado verdadeiro!

Uma coisa é certa: desde há muito que o enigma da Pedra da Gávea é pomo de discussões acaloradas nos meios académicos, gerador de controvérsias entre os analistas, e não faz muito tempo terem sido lançadas mais achas para a fogueira da polémica pelo jornal O Globo, na sua reportagem de domingo, 6.8.2000, assinada pelo jornalista Eric Brücher Câmara, com o título: Desvendado o Enigma da Pedra da Gávea, e o subtítulo: Expedição constata que supostas inscrições são resultado da acção do tempo e que não há túnel oculto na rocha. Pelas manchetes claramente tendenciosas revela-se já a intenção principal da reportagem: “desmistificar” tudo quanto foi dado à luz acerca do maciço como construção humana, como defendia e encabeçava a primazia teosófica do Professor Henrique José de Souza (São Salvador da Bahia de Todos os Santos, 15.9.1883 – São Paulo de Piratininga, 9.9.1963).

O jornalista informa que uma equipa de geólogos e geofísicos esteve na Pedra em 8 de Julho de 2000, levando equipamento GPR (sigla inglesa de radar de penetração no solo) que “vê” através da pedra, e que os dados obtidos não mostraram mais do que rocha maciça. Respeitante ao “Portal dos Fenícios”, reentrância rectangular com cerca de 15 metros de altura, bem próxima ao cume da Gávea, foi simplesmente remetido para o “terreno pueril da lenda”. Quanto às supostas inscrições fenícias, também foram explicadas por um dos geólogos da expedição: “Com as intempéries, os minérios mais sensíveis desgastam e o resultado é ficarem com a aparência de inscrições” (sic)!!!

Não havendo consenso entre geólogos e arqueólogos quanto à origem fenícia ou de alguma outra civilização antiga que tenha estado no Brasil e intervindo na Pedra da Gávea, assim recusando esta como sítio arqueológico ao apontarem “a “inscrição” como resultado do processo natural da erosão e o “rosto” um produto de pareidolia”, fenómeno psicológico envolvendo um estímulo vago e aleatório, geralmente uma imagem ou um som, sendo percebido como algo distinto e com significado, repito, essa última expedição apoiada pela Governo brasileiro parece ter se destinado a reconfirmar a sentença já proferida pelo mesmo quando, na década de 1950, o Ministério da Educação e Saúde do Brasil adoptou a atitude negativa do local não apresentar qualquer tipo de escrita nem alguma outra espécie de intervenção humana, até hoje sustentando essa postura oficial nas conclusões do químico suíço Paul Hermann: “A arqueologia brasileira nega totalmente a existência de inscrições fenícias em qualquer parte do país”[6]. Mas isso não é verdade, a não ser que se descartem os inúmeros estudos que contrariam tanto a posição do Governo quanto a de Hermann. Tal não pauta o preceito científico de não recusar até prova em contrário, porque a recusa da prova liminar deixa de ser preceito e passa a preconceito mais irracional que académico, gozando empiricamente de dados viciados ou preceitos supostos a priori, mesmo sem deixar de anacronicamente sugerir a América do Norte como a “eleita bíblica”, crença importada das seitas pentecostais norte-americanas, com tudo atirando para as calendas fenícias o princípio da incerteza de Heisenberg. Reafirma-se a eterna dependência, contaminação até nas ciências, desde a sociologia à política, do Brasil relativamente aos norte-americanos, cuja “cultura superior” afinal colheram da Europa onde têm a sua origem recente, menos de 300 anos.

Tomando a defesa da Teosofia no Brasil e do seu maior baluarte humano, Henrique José de Souza, devo afirmar que este nunca negou que a Pedra da Gávea não fosse um maciço rochoso, e sim que boa parte desse maciço fora esculpido de maneira a sugerir uma esfinge, com parte do interior escavado para conter um pequeno templo, depois convertido em túmulo… a que hoje não se tem acesso por qualquer parte externa do controverso maciço, para todo o efeito, monumental. Seja como for, tanto a sua gruta “garganta do céu” como a famosa “chaminé”, a trilha utilizada para chegar ao topo, revelam sinais de intervenção humana, cuja memória olvidada hoje é pomo de tantas discórdias. Também nisto, respeitante a hipógeos e outros espaço subterrâneos, os fenícios pós-atlantes (o Homo Atlantis ou Homem Diluviano, já hoje aceito e discutido na Academia Portuguesa de História, como confirmei pessoalmente em sessão magna de académicos de número) teriam herdado a sua tradição dos epoptae egípcios, conforme indicam Heródoto e Ptolomeu.

Ainda acerca do aparelho GPR, este não sonda mais de cinco a sete metros, e se a sonda estiver horizontal não capta o que está vertical, e vice-versa. Assim, por exemplo, se fosse colocada no piso em frente ao Cristo Redentor, o “Corcovado”, jamais poderia “ver” os túneis Rebouças, centenas de metros abaixo, e logo não captar o imenso afluxo de veículos que atravessam a base da montanha.

Creio que geólogos, arqueólogos, montanhistas e jornalistas obviamente não possuem bases positivas para concluir decisivamente acerca de factos ainda não completamente explorados por quem de direito, tal como, evidentemente, os historiadores, médicos e matemáticos não têm condições para validar a existência ou não de jazidas de minério. Isto a propósito da conclusão já citada do geólogo Marcos André Malmann, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que fez parte dessa expedição à Gávea no ano 2000; se os conhecimentos de História Antiga, Filologia Antropológica, Línguas Antigas comparadas, Paleontologia e Arqueologia fossem ministrados regularmente aos estudantes dos cursos de Geologia, então eu concordaria com esse senhor. Aliás, idênticas no género eram as afirmações da maioria dos geólogos e historiadores britânicos do século XVII ao meado do XIX, quando regressavam a Inglaterra com os resultados das suas expedições à Mesopotâmia e ao Egipto: que as inscrições cuneiformes e os hieróglifos nada mais eram do que meros desenhos decorativos sem significado algum, quando não simples desgastes causados pelas intempéries sobre as pedras. É universalmente sabido que foi necessário o aparecimento de um Champollion para que os “decorativos” ou os “desgastes” fossem assumidos como códigos e interpretados, de maneira à maravilhosa História do Antigo Egipto poder ser desvendada.

Mais valor terão as palavras do antropólogo que acompanhou a dita expedição, o professor Francisco Otávio da Silva: “Ainda não há prova científica da vinda dos fenícios ao Brasil”. Sim, propagar que os fenícios estiveram e se estabeleceram por largo tempo neste país, de que existem provas sobejas, embora ainda sem base científica aceite com a concordância de todas as parte, faz com que esse conhecimento se escoe e propague por outra via como é a do campo do mítico e do místico, enquanto “aguarda” a necessária comprovação científica, a qual vem sempre atrás da Ciência Iniciática, em todos os sectores, de que é exemplo a prova da existência do átomo ainda nos inícios do século XX, violentamente repudiada por alguns físicos eminentes, a despeito dos hindus, egípcios e gregos da Antiguidade já o conhecerem como atman, aton e atmon, donde átomo. Nisto também se inscreve o método de ensino do Professor Henrique José de Souza: “semear novos conhecimentos, ideias e ideais, e trabalhar para que eles se transformem, com o tempo, em realidades concretas”, acrescentando que “estamos vivendo no século da luz, mas não se deve deixar arrastar por ilusões. Raciocine-se imparcialmente e nada se aceite sem entender. Se não se compreender alguma coisa, não se a rejeite imediatamente. Procure-se estudar profundamente o assunto. Não se conforme com a pior das escravidões que é a mental. Nascemos para ser livres e só o seremos quando raciocinarmos livremente”.

As inscrições referidas encontram-se gravadas no lado direito da Pedra da Gávea, sendo atribuídas aos fenícios praticamente desde a época de D. João VI. Com efeito, na folha 66 do I Volume da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, encontra-se a seguinte carta lida pelo cónego Januário da Cunha Barbosa (Rio de Janeiro, 10.7.1780 – Rio de Janeiro, 22.2.1846), no expediente dos trabalhos da 8.ª sessão extraordinária de 23 de Março de 1839:

“Em uma das montanhas do litoral do Rio de Janeiro, ao sul da barra, há uma inscrição em caracteres fenícios, já muito destruídos pelo tempo e que revelam grande antiguidade. Esta inscrição foi vista e observada por um conhecedor das línguas orientais, e que ao vê-la concluiu que o Brasil tinha sido visitado por nações conhecedoras da navegação, e que aqui vieram antes dos portugueses. Ele me certificou que tinha dado conta desta descoberta ao governo de D. João VI, e que tinha copiado a inscrição do mesmo modo que se acha feita.”

“Requereu pois o Sr. Cunha Barbosa que o Instituto Histórico, atenta a importância desta notícia, peça com empenho aos nossos consócios oficiais de secretarias que se esforcem por descobrir nelas o relatório desta descoberta, feita no reinado de D. João VI, e oferecido pelo padre mestre Fr. Custódio, professor de grego, e versado nas línguas orientais. Esta carta foi remetida ao Sr. Guedes para fazer as indagações precisas para o descobrimento da memória de que ela fala.”

Mais adiante, nas folhas 98 a 103, encontra-se o Relatório sobre as referidas inscrições, acompanhado do desenho das mesmas, trabalho apresentado por uma comissão nomeada pelo Instituto com o fim de as estudar. Este valioso documento, que passo a transcrever, é concebido nestes termos:

“… Senhores. A comissão encarregada pelo Instituto Histórico e Geográfico para analisar e copiar a inscrição, que se acha gravada no morro da Gávea, transportou-se ao lugar, e não se poupou aos meios e fadigas, que uma primeira excursão demanda, para obter-se um resultado digno de sua missão; e vem hoje perante o Instituto Histórico e Geográfico dar conta do que viu e observou, assim como trazer uma cópia fiel da pretendida inscrição, desse monumento, que pertence à classe daqueles que Mr. Court de Gibelin coloca no seu “Mundo Primitivo”, e que têm chegado às recentes gerações envolvidas no mistério dos tempos com os hieróglifos, os caracteres cuneiformes e as construções ciclopeanas.

“A descoberta de uma inscrição é um facto, que pode trazer uma revolução na História; que pode reconquistar ideias perdidas e aniquilar outras em pleno domínio: um nome, uma frase em uma lápida podem preencher lacunas imensas, restaurando conjecturas e abrir uma estrada luminosa do Passado ao Futuro.

“Os povos que têm uma civilização nascente, são naturalmente crédulos, e sua imaginação os arrasta a ver tesouros encantados por todas as partes; e homens amigos do misterioso algumas vezes também crêem encontrar vestígios dos outros homens naquilo que é um acaso da Natureza.

“À comissão cumpre que aqui manifeste perante o Instituto Histórico e Geográfico a sua gratidão para com os Srs. Rev. Ex-vigário da Lagoa, Manoel Gomes Souto, Manoel Joaquim Pereira e João Luiz da Silva, pela bizarra e cordial hospitalidade que deles recebeu; assim como ao Rev. Sr. José Rodrigues Monteiro, capelão de S. M. I., que teve a bondade de acompanhar e servir de testemunha na averiguação da cópia que se fez da pretendida inscrição, participando dos incómodos sofridos nesta exploração arqueológica.

“Senhores. Que no cume da Gávea, do lado direito aos que vão pela Serrote da Boavista, numa pedra de forma cúbica existem caracteres, ou sulcos que a eles se assemelham é indubitável; mas a comissão não afirma que eles sejam gravados pela mão do homem, ou pela lima do tempo.

“Assim como a Natureza esculpiu sobre a rocha de ‘Bastia’ a forma de um leão em repouso; na gruta das Sereias, em ‘Tivoli’, um dragão em ar ameaçador; e na mesma Gávea a forma de um mascarrão trágico; assim como ela eleva pontes naturais, constrói fortificações e baluartes, que ao primeiro lampejo da vista fazem crer ao viajor monumentos da mão do homem e assim ela podia gravar na rocha viva aqueles caracteres que podem mais ou menos por suas formas aproximarem-se a algumas das letras dos alfabetos das nações antigas e orientais.

“A comissão não deseja representar perante o Instituto Histórico o papel dos antiquários de Walter Scott e Goldoni, para não encontrar a ilusão de suas conjecturas na ingenuidade de um mendigo, ou nas trapaças de um Brighella; tanto mais que com os seus próprios olhos ela encontrou em diversas pedra isoladas em roda da mesma Gávea, sulcos profundos entre dois veios do granito, que mais ou menos representavam caracteres hebraicos, e alguns até romanos, e de uma maneira assaz evidente e caprichosa.

“Pitágoras, senhores, olhava para o Sol como um Deus, e Anaxágoras como um Pedra inflamada. A comissão nesta sua primeira análise voltou, como os dois filósofos, vendo uma inscrição e vendo uns sulcos gravados pela Natureza.

“Argumentos notáveis se apresentam de uma e outra parte para que ambas as conjecturas tenham seu fundamento e suas principais proposições vos vão ser apresentadas.

“1ª. Que os diversos viajantes têm descoberto inscrições em diferentes rochedos do Brasil, e que a da serra da ‘Anabastabia’, aonde se crê, vai a descrição de uma batalha, assim como a das margens do ‘Iapurá’ e outras mais, que se vêem na famosa colecção das palmeiras de “Spik et Martiles”, dão uma prova da existência desta sorte de monumentos no nosso solo: acrescentando mais a tradição das ‘Letras do Diabo’ num rochedo em Cabo Frio, que depois de dados mais exactos algum de nós se transportará ao lugar para copiá-las, e descortinar mais esta ponta do véu que encobre a História primitiva desta Terra bem-aventurada.

“2ª. Que assim como Pedro Álvares Cabral, Afonso Sanches, empurrados pelos ventos, descobriram o continente da América, também algum desses povos antigos, que a ambição do comércio forçava a sulcar os mares, podia por iguais motivos aportar às nossas praias, e escrever sobre uma pedra um nome ou aquele acontecimento, para que a todo o tempo as gerações vindouras lhe restituíssem a glória de tão grande descoberta.

“3ª. Que a inscrição da Gávea se acha colocada de uma maneira vantajosa a estas conjecturas: voltada para o mar, em uma face da rocha cúbica, pouco escabrosa, com caracteres colossais de sete a oito palmos, ao rumo de L. S. E., pode ser vista a olho nu de todas as pessoas que por ali passarem; e notável é que os habitantes daqueles lugares todos conhecem as letras da pedra. A inscrição assim colocada está exposta à fúria das tempestades e dos ventos do meio-dia e por consequência, deve estar muito safada, tanto mais que o granito da pedra em que está gravada é de uma consistência menos forte, por conter muito talco e mica, e na sua base existem três concavidades esburacadas que formam o aspecto de mascarrão.

“Um dos dados arqueológicos para fortificar qualquer conjectura na averiguação de tais monumentos, é o da possibilidade de poder-se ou não gravar naquela altura imensa uma inscrição tão colossal, e o carácter geológico do mesmo lugar.

“O terreno que circunda as raízes do morro da Gávea é todo primitivo, à excepção de uma pequena enseada que está na base da colina da fazenda da Gávea, que é de terreno de aluvião, pouco acima do nível do mar, e que nada influi sobre os pontos principais que se denotam dos ‘Dois Irmãos’ à Tijuca e desta à Gávea que são massas enormes de granito, cobertas de uma crosta de terra vegetal, assaz delgada, e tendo aqui e ali glebas de carbonato de ferro, ou saibro micoso: o mar está muito próximo, nenhuma revolução grande, se exceptuarmos alguns calhaus destacados dos morros, se denota naquele recinto.

“O homem, que levado a aqueles lugares quisesse deixar uma memória da sua passagem, facilmente seria seduzido pela majestade e grandeza do morro da Gávea, e pela disposição daquela pedra com uma face quase plana, e fronteira ao mar; e quanto ao acesso do cume da Gávea, ele é incontestável, porque dias antes de nossa exploração alguns oficiais da marinha inglesa lá subiram, e colocaram umas bandeirinhas ainda que com muito custo.

“O lugar onde está a inscrição pode ser que em tempos remotos fosse mais aterrado, e que com os séculos tenha sido escalvado pelas contínuas humidades, chuvas e ventos do sul.

“Porém, senhores, além destas considerações e outras mais diminutas, que conduzem o nosso espírito à crença, outras se levantam para encontrá-las e nos obrigam a oscilar entre a afirmativa e a negativa.

“1ª. Que os pretendidos caracteres, que apresenta o rochedo da Gávea, não se assemelham aos dos povos do velho continente, que empreenderam as primeiras navegações, e muito menos aos dos modernos.

“2ª. Que estes caracteres, comparados com os alfabetos e inscrições, que Mr. Court de Gibelin dá na sua obra do “Mundo Primitivo”, não apresentam semelhança alguma de uma inscrição fenícia, cananeia, cartaginesa ou grega: e que mais parecem sulcos gravados pelo tempo, entre dois veios do granito, pois com iguais aparências se encontram não só no lado oposto do da inscrição da mesma Gávea, como em outras pedras destacadas, e principalmente numa grande, que se encontra à esquerda, na base do morro, quando se sobe para a casa do Sr. João Luiz da Silva.

“3ª. Que a parte da rocha onde começa a pretendida inscrição, além de perpendicular e de um acesso quase impossível, é a menos conservada ou a mais apagada: sendo aquela que está menos exposta à fúria das estações; alguns traços perpendiculares, outros mais ou menos oblíquos, mais ou menos curvos, ligados por hastes interrompidas, que muito e muito se assemelham a veios, fazem o todo da inscrição, e uma grande irregularidade de profundidade se observa na gravura, assim como no largo veio da base, que se poderia conjecturar como um traço, para melhor se descobrirem as letras, o que é interrompido visivelmente e dá formas não equívocas de um veio mais profundo. Este argumento é fortificado pela profundidade dos caracteres da parte esquerda que estão mais expostos do que os da direita, por entrarem na curva que se dirige para o norte.

“Os fenícios escreviam da direita para a esquerda, trabalhando destarte deviam dar a mesma profundidade às letras, para que elas fossem igualmente visíveis.

“Mas a comissão, senhores, vindo perante o Instituto Histórico e Geográfico dar conta de sua missão, está longe de protestar solenemente contra a ideia de serem, ou não, uma inscrição aqueles sulcos ou traços que se encontram no cume da Gávea, porque ela ainda não empregou os últimos recursos que lhe restam para a verificação de semelhantes monumentos; ela vem, em família, expor as suas impressões e conjecturas, e protestar que uma segunda exploração será feita com melhores instrumentos e com um dia mais favorável para ver se obtém um resultado de maior evidência, e mais positivo; lastimando, contudo, o não poder estudar a ‘Memória’ que o ilustre Fr. Custódio escrevera, noutros tempos, sobre esta mesma inscrição[7].

“A comissão tem presente na lembrança as navegações desses povos da Antiguidade, e se triunfar a ideia do ilustre Padre Mestre, ela a fortificará por uma ‘Memória’ mais ampla e circunstanciada, e nas formas demandadas pela ciência da Arqueologia, em que não somente passará em resenha todas as tradições, que temos das navegações dos antigos, como também procurará nas línguas e tradições de diversos povos a luminosa esteira traçada pela civilização dos fenícios, entre os povos das ilhas aonde eles tiveram as suas feitorias, e onde eles deixaram monumentos materiais de sua existência e passagem, tanto na Ásia e África como na América, que, segundo Stevan Sewall e Court de Gibelin, aí aportaram e deixaram inscrições na parte setentrional.

“A comissão não desespera da glória, que aguarda o Instituto Histórico e Geográfico, na descoberta de iguais monumentos; nem da esperança de ver aparecer em seu seio um Champollion brasileiro, esse Newton da Antiguidade Egípcia ou Cuvier do Nilo, para o facho de seu génio indagador iluminar esta parte tão obscura da História primeva do nosso Brasil; e porque ela pode num dia contemplar aquele monumento como Anaxágoras o Sol, e no outro como Pitágoras ver naquela rocha uma inscrição gravada pelo acaso e o tempo, ou um padrão, pelo cinzel do homem, deixado às gerações vindouras.

“Rio de Janeiro, 23 de Maio de 1839 – Manoel de Araújo Porto Alegre. – J. da C. Barbosa. Como testemunha, José Rodrigues Monteiro.”

Tal “Champollion brasileiro” estaria destinado a ser Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (Manaus, 13.11.1858 – Rio de Janeiro, 5.2.1931), que com a paciência e a minúcia de um sábio chinês, num longo e exaustivo estudo filológico comparativo das línguas antigas, chegou à conclusão de tratar-se de escrita fenícia, dando a seguinte tradução ao texto da Pedra da Gávea[8]:

Todavia o eminente autor deixou escrito no término do seu preciosíssimo estudo, na página 436 v da obra citada, sobre a sua interpretação da inscrição: “Dada a hipótese de não a termos interpretado fielmente, resta-nos o consolo de que bem empregámos o nosso tempo, determinando com nossas modestas investigações o estímulo aos competentes, que nos perdoarão esse alvitre”.

A frase viria a ser corrigida em Maio de 1954 pelo próprio Professor Henrique José de Souza, que assim a interpretou:

YETBAAL, TYRO FENÍCIA, PRIMOGÉNITO DE BADEZIR.

Quanto ao dito recheio interior havido na Pedra da Gávea até 1938, ano em que foi tudo retirado e lacradas ainda mais as suas passagens subterrâneas conforme a primazia autoral de Henrique José de Souza, este mesmo assim o descreve[9]:

“Dentro da Pedra da Gávea, além de duas múmias colocadas uma junto à outra sobre uma mesa de pedra, aos seus pés também se acham duas outras de dois escravos núbios, sendo que à cabeceira se encontram dois jarrões contendo flores em parafina, etc. E dos lados, em dois vasos canópicos, como outrora nos túmulos faraónicos do velho Egipto, os manes das duas referidas múmias… E mais adiante, depois de uma rampa que vai dar ao mar, pela parte traseira da mesma Pedra – como esfinge fenícia que é – uma barquinha de tecto esmaltado de azul, movida por uma roda que ia ter à pequena hélice, na popa, sendo accionada por referido escravo núbio.

Pelo que se vê, o ‘casal’ cujas múmias se acham sobre as mesas de pedra, outro não é senão ‘a parelha primogénita de Badezir’, do mesmo modo que o escravo (pois a escrava morreu alguns anos depois) que movia a barquinha, e que soçobraram na baía que hoje tem o nome de Guanabara (Niterói, em língua tupi, quer dizer ‘baía grande’, mas, em língua fenícia, chamava-se outrora Nish-Tao-Ram, ou ‘o caminho iluminado pelo Sol’, como se se dissesse que os dois referidos seres, já naquela época, preparavam, na mais excelsa de todas as tessituras, a sua própria Obra do Futuro, que deveria tomar forma na referida região).

“Quando Badezir veio a saber da morte de seus dois filhos, correu pressuroso, em companhia do sumo-sacerdote Baal-Zin e de um mago (médico e mumificador), chegando, infelizmente, muitos dias depois. O choque moral e a sua própria idade, concorreram para que ele durasse pouco tempo. Mas, antes de morrer, pediu ao supracitado sacerdote que ‘logo isso acontecesse, mumificasse o seu corpo, deixando-o ao lado dos dois filhos durante sete anos, findos os quais deveria ser transportado para certa região do Amazonas’, onde até hoje se acha, num pequeno santuário oculto nas referidas selvas.”

Fazendo agora uma ordenação geosófica, tem-se que além do morro próximo chamado dos Dois Irmãos (possível evocação toponímica dos malogrados Yet-Baal-Bey e Yet-Baal-Bel), dois outros perfazem uma triangulação com a Pedra da Gávea. Um é o Corcovado (possível evocação toponímica do velho Badezir), montanha granítica com mais de 700 metros de altura, onde foi levantada a estátua do Cristo Redentor. Aí existia antes de 1831 uma famosa Pedra Santa, que presumo ter sido algum ícone ou altar sobrevivente da Proto-História, destruído nessa data conforme a notícia dada por Brasil Gerson[10]: “… Era o padre Souto um homem inquieto, que levou uma comissão do IHGB à Pedra da Gávea para destruir a lenda de que nela existiam inscrições fenícias e recebeu da Ilustríssima Câmara a incumbência de retirar do Corcovado a famosa Pedra Santa, que ameaçava o caminho para o jardim (suponho, o Botânico), e quando ele deixou a sua paróquia, em 1831, sucederam-lhe…”.

O outro morro é o Pão de Açúcar. Foi no seu sopé que Estácio de Sá, no 1.º de Março de 1565, fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, depois de se derrotarem as pretensões francesas, entre 1560 e 1567, de fundarem aqui uma colónia, França Antártica, e uma cidade Henriville, pretendendo assim tomar posse do território brasileiro para a Coroa de França. Os franceses liderados por Nicolas Durand de Villegagnon, cavaleiro oficial da Ordem de Malta, foram definitivamente derrotados e expulsos de todo o território do Rio de Janeiro, cuja batalha da Baía de Guanabara foi decisiva para a vitória de Mem de Sá à cabeça dos portugueses e temiminós juntos contra o opressor estrangeiro[11], o qual depois se vingou pela calúnia perdurando até hoje, inclusive alimentada por certos meios intelectuais brasileiros, os quais melhor do que ninguém deveriam saber que lusos e tupis mais que fraternos são irmãos, nem que seja «só» pela ligação consanguínea donde resultou o mameluco; são, enfim, a argamassa racial do Brasil Ibero-Ameríndio!… Após a vitória decisiva e à semelhança do que muito antes fizera Badezir, em 1572 o Brasil foi dividido em dois Governos: o da Bahia (sendo governador Luís de Brito e Almeida) e o do Rio de Janeiro (sendo governador António Salema). Em 1577 aboliu-se essa dualidade governativa e ficou um só Governo do Brasil, sendo Lourenço da Veiga nomeado governador-geral com sede capital na Bahia, e só em 1763 a sede do Governo Central transferiu-se para o Rio de Janeiro, que então passou a ser a capital, capitã ou cabeça política do país.

A História igualmente conta que os portugueses, quando aí chegaram, perguntaram aos índios o nome daquela montanha junto à barra, talvez por acharem estranha a sua forma. A resposta teria soado como pau-nd-açuquã, que em tupi significa “morro isolado e pontiagudo”, tendo-a os portugueses traduzido como Pão de Açúcar, deturpando sem malícia essa forma fonética. Segundo o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda[12], pão de açúcar é o tronco de açúcar branco que se forma ao aparar-se internamente a forma de açúcar dos engenhos antigos, anteriores às fábricas. Naturalmente, os portugueses acostumados que estavam com esse sistema de produção de açúcar, associaram a forma de um pão de açúcar (cónica) das suas primitivas fábricas à forma da montanha em questão, além, naturalmente, da “coincidência” fonética com o nome que os índios lhe davam.

Os teósofos brasileiros consignam o Pão de Açúcar marco do Karma Atlante-Fenício, têm-no como lugar fatídico de mau agouro, apontando ter sido nas suas imediações que terá se afundado a barca que conduzia os Gémeos Espirituais fenícios de Niterói para o Rio de Janeiro. O facto é que até as mais antigas referências históricas sobre esse maciço granítico são-lhe pouco abonáveis. Gustavo Barroso, por exemplo, no seu magnífico livro[13] cita uma lenda árabe, possivelmente recolhida da cultura fenícia, onde aponta o nome da “Ilha Brasil” em cuja entrada da barra havia uma certa Mano Satanas, a qual fazia soçobrar as embarcações que ousassem atravessá-la. Como “não há fumaça sem fogo”, verifica-se, ao compulsar-se as cartas de Pedro Reinel, de 1519, e de Gian Baptista Ramusio, de 1556, no Roteiro Cartográfico da Baía de Guanabara e Cidade do Rio de Janeiro, séculos XVI e XVIII, apud Álvaro Teixeira Filho, o deparar, respectivamente, com os termos Sombreyo para o Pão de Açúcar, e Sombriere para a baía de Guanabara. Esses dois topónimos são derivados da palavra sombra… No francês, inclusive, o verbo sombrer tem o sentido de “soçobrar”, “fazer naufragar o navio”, etc.[14]

Essa Mano Satanas de péssimo agouro divulgada pelos navegadores árabes em África e na Europa, é uma entre muitas tradições recolhidas por eles nos “lugares incógnitos” aonde chegaram e depois difundiram. Com efeito, as posteriores geografia e cartografia dos navegadores portugueses da Idade Média foram maioritariamente herdadas dos árabes, por sua vez possuindo essas informações por herança mesopotâmica – turco-síria e iraniana-iraquiana – afim à antiga Fenícia, através da grande plataforma transcontinental de intercâmbio cultural de povos que era e ainda é Jerusalém.

Entendo por literatura geográfica árabe os famosos relatos de viagens célebres, como as de Soleimão, o Mercador, à China por mar. Essa literatura havia de servir para os tratados descritivos como o de Ibn Khordadhbeh que tomou o título, depois vulgarizado, de Kitâb Al-Massâlik wa Al-Mamâlik (“Livro dos Caminhos e dos Reinos”). A partir de então, os árabes acrescentaram a China e a Sibéria aos conhecimentos do mundo antigo, atingindo as terras de Gog e Magog. No entanto, os seus mapas obedeciam ainda aos critérios de Ptolomeu, apenas havendo a acrescentar que tornaram o mundo mais extenso. O primeiro período de esplendor da Geografia árabe é o definido, cerca do ano 1000, por nomes de sábios como Balkhi, Yacubi, Istakhri, Ibn Hauakal e Al-Massudi.

Ao mesmo tempo que a Geografia descritiva dá uma extraordinária riqueza de informação e pormenor (Al-Massudi é considerado, por isso mesmo, o Plínio árabe), a Cartografia prossegue o iniciado por Ptolomeu, com os cartógrafos utilizando desenhos esquemáticos e figuras geométricas para representar os países e os acidentes geográficos. É o caso dos mapas de Istakhri, bem elucidativos desse processo. Estava-se, precisamente, na época dos mapas do Islão.

Uma época à parte pode ser considerada a de Edrisi ou Idrisi ou Abu Abdullah Muhammad al-Idrisié no século XII (1110 – 1165), que trabalhando em Palermo às ordens dos reis normandos da Sicília, não só elaborou a sua monumental Geografia como também um gigantesco mapa onde representou todo o Mundo então conhecido, da China ao Magreb, do Andaluz à Índia, de Zanzibar à Terra dos Russ (Rússia)[15]. Nos séculos seguintes surgiram os criadores dos dicionários geográficos e enciclopédias: Yaqut, Qazwini, Abu’l-Fida.

Mapa-Mundi de Al-Edrisi, situando-se o Sul no topo

No que diz respeito à cartografia, importa registar que antes de Edrisi, que já representa um notável progresso na ubicação das costas marítimas do Mediterrâneo, Abu’l-Hassan, autor de um famoso tratado de astronomia, dá numericamente a posição de 131 cidades com tanta perfeição que se tornou possível o desenho de um mapa do Mediterrâneo, onde os erros em relação à realidade hoje conhecida são quase desprezíveis. Se comparar-se o mapa de Ptolomeu com o de Abu’l-Hassan (séculos X-XI), tem-se de reconhecer que com os árabes a Geografia deu um salto gigantesco trazendo-a quase até à posição actual.

A esfericidade da Terra era ponto assente para os árabes, e entre eles não faltaram autores que admitiam a existência de um continente onde está a América, como justamente protesta José Garcia Domingues[16]. Exemplo disso é a Geografia Taqwin al-Buldân, escrita nos inícios do século XIV por Abu’l-Fida (Abu’l-Fida Ismail Ibn Ali Al-Ayubi), que teve como fontes Ibn Hauqal, Edrisi e Ibn Kondhadhbeh. Apresenta uma particularidade mais que nova, notável: a de dar a situação das diferentes localidades por meio de coordenadas – latitude e longitude. A latitude a partir do Equador, definido pelos equinócios; a longitude a contar das terras do Extremo Ocidente[17], as “Ilhas Afortunadas” – Jaza’ir-as-Sa´adat.

Com efeito, a geografia árabe estava cheia de mitos a descobrir, tal como a sua cartografia repleta de mistérios a desvendar. Ambas consequência certa de cultura e saber legadas por civilização anterior afro-mediterrânea. Abentofaíl aludira às ilhas de Vac-Vac, às quais se chegava pelas estrelas, pela orientação estelar, e Edrisi à Ilha dos Carneiros ou Ilhas Fantásticas, num texto relembrando a Navegação de São Brandão. A ideia de viagem por Ocidente em busca de terras era de tal modo grata que, no século XII, os almagrurin de Alfama encetaram empresa de viajar Atlântico fora até às Canárias. Foi de Lisboa que partiram os navegadores que, no dizer de Edrisi, iam procuram saber o que havia no Mar das Trevas (Mar Tenebroso) e quais os seus limites, tendo atingido Ua açafi (Safim?) mas não as Canárias, segundo certos autores do século XIX[18], no que não concordo por serem vastas as provas e referências romano-árabes da presença arábica nessas ilhas, nomeadamente em Tenerife, ao lado dos templários e do médico, escritor e alquimista, afamado peregrino de Santiago de Compostela, Raimundo Lúlio. Ademais, as Canárias, tal como outras ilhas atlânticas, estavam bastante mencionadas na geografia árabe. Por exemplo, Maudi, no século X, aludiu na obra Os Prados de Ouro às “Ilhas Eternas” (Jaza´ir-al-Khalidat) no Oceano Ocidental, e a tais “Ilhas Eternas”, espécie de Paraíso Terreal, refere-se também Almacarí.

Na geografia como na astronomia, filosofia, matemática, química, a ciência árabe medieval foi, na verdade, o elo de ligação entre a ciência grega, de tão nobres tradições, e a moderna, não apenas no sentido de que transmitiu a ciência grega mas ainda por trazer o saber no nível em que os gregos o deixaram, até ao momento em que foi possível elaborar a ciência moderna.

A serem verídicas, poderão ser já da época da decadência do “império” fenício no Brasil as inscrições no Pão de Açúcar, descobertas e traduzidas por Ladislau de Sousa Melo e Neto, director-geral do Museu Nacional do Rio de Janeiro, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e catedrático em Ciências Naturais, citadas no livro de Peter Kolosimo[19]:

“Somos filhos da terra de Canaã. Sobre nós pesa a desventura e a maldição. Em vão invocamos os nossos deuses; eles nos abandonaram e assim morreremos desesperados. Hoje é o décimo aniversário do infausto dia em que chegámos a estas margens. O calor é atroz, a água é podre, o ar cheio de repugnantes insectos. Os nossos corpos estão cobertos de chagas. Ó deuses, ajudai-nos! Tiro, Sidon e Baal!”

Deixo essa informação à apreciação do leitor, e como não disponho de mais dados plausíveis até ao momento, não me é possível julgar da sua mais ou menos valia. Passo, pois, de imediato à origem toponímica de São Sebastião do Rio de Janeiro. Este nome depreende-se da tradição do santoral católico em se batizar as terras descobertas em conformidade aos dias das festas do calendário litúrgico. Ainda assim, a frota comandada pelo capitão D. Nuno Manuel ao serviço do rei D. Manuel I, com a missão de explorar a costa brasileira, fugiu à praxe adoptada, pois ao alcançar a região da Guanabara, no dia 1 de Janeiro de 1502, batizou-a primeiro de Rio de Janeiro, e só depois consagrou o lugar a São Sebastião.

A título de exemplo, repasso uma pequena lista dos lugares que receberam os nomes conformados ao calendário litúrgico: a 28 de Agosto, Cabo de Santo Agostinho; a 29 de Setembro, Rio de São Miguel; a 30 de Setembro, Rio de São Jerónimo; a 4 de Outubro, Rio de São Francisco; a 21 de Outubro, Rio das Virgens; a 1 de Novembro, Baía de Todos os Santos; a 13 de Dezembro, Rio Santa Luzia; a 21 de Dezembro, Cabo de São Tomé; a 25 de Dezembro, Baía do Salvador; a 6 de Janeiro, Angra dos Reis; a 20 de Janeiro, Ilha de São Sebastião; a 22 de Janeiro, Porto de São Vicente, etc.[20]

Janeiro, nome que encerra inúmeros simbolismos, deriva de Jano ou Janus, que na mitologia romana é o “deus das duas caras”, e por estar colocado no primeiro mês do ciclo anual com uma das caras presidia aos acontecimentos dos onze meses procedentes, e com a outra reflectia os sucessos e insucessos do ano precedente. De maneira que, em termos teosóficos, simbolizava o Manu Semente e Colheita presidindo ao início e ao final de um Ciclo de Evolução Humana, facto representado no Cristianismo nas duas chaves entrecruzadas do seu sumo-pontífice[21]: a de ouro (Manu – Vida – Semente – Encarnação) e a de prata (Yama – Morte – Colheita – Desencarnação). No contexto da Evolução Cósmica, as “duas caras” representam as Duas Faces do Eterno: a Divina e a Terrena. Uma é a face de um Velho barbado, o Ancião das Idades, e a outra é a de um Jovem, o Eterno Adolescente; uma que chora, e outra que ri. As Duas Faces do Eterno representam, pois, “o Começo e o Fim das Coisas” – o Alfa e o Ômega da Criação.

Quanto a São Sebastião, Juan Atienza faz eco da Tradição Iniciática quando o aponta como paradigma da condição Kshatriya, “Guerreira ou Real”, conformada ao ideário sinárquico de Agharta em que se inspirou St.º Agostinho para a sua Civitas Dei ou “Cidade de Deus”[22], e muito mais tarde a Maçonaria Adonhiramita, ao escolher a capital carioca para nela fundar a primeira Potência Maçónica do Brasil, ela mesma ao se considerar Arte Real perseguiu o projecto magno de edificar aqui mesmo a Nova Cidade de Deus, a Nova Jerusalém, já desde a lonjura dos tempos assinalada por vates e sibilas a sua aparição no Grande Ocidente do Mundo. Tudo isso, afinal, revelando-se causalidades da Lei Suprema que a tudo e a todos rege.

Em 1921, o Governo Federal resolveu demolir o Morro do Castelo, antigo Morro de São Januário, onde se localizava a igreja de São Sebastião do Rio de Janeiro. No dia 20 de Janeiro de 1922, houve a trasladação das “relíquias históricas” da igreja de São Sebastião, acto cuja missa foi celebrada pelo então arcebispo coadjutor D. Sebastião Leme, depois cardeal. A família Leme, tão ligada à História do Brasil, de onde desponta um Fernão Dias Paes Leme, é de origem flamenga e se assinava Lem, cujos irmãos Martim Lem já haviam desempenhado papel importante na Basílica do Precioso Sangue, em Bruges, Bélgica, onde no século XV foi fundada e consagrada a Ordem do Tosão de Ouro.

Inclusive o primeiro governador do então povoado do Rio de Janeiro, Mem de Sá (Coimbra, 1500 – Salvador, 2 de Março de 1572), estava ligado à família Lem. No processo militar de expulsão dos franceses (que haviam angariado o apoio guerreiro dos tamoios contra os portugueses, por artifícios vários a ponto de depois os deixarem entregues à sua triste e má sorte), ele recebeu o auxílio de Ararigboia, chefe ou morubixaba dos temiminós, vindo com a sua gente do lugar do Espírito Santo[23] onde se haviam estabelecido em 1555, emigrados da Guanabara devido aos ataques dos mesmos tamoios.

A batalha foi rápida e brilhante, começando pela tomada do forte de Uruçú-mirim, situado na foz do rio Carioca (no fim da praia do Flamengo, próximo do local onde foi construído o Hotel dos Estrangeiros), generalizando-se depois à ilha de Villegaignon e à do Governador ou do Gato (Maracaiâ), onde se declarou a vitória final[24].

Durante o combate de Uruçú-mirim recebeu Estácio de Sá uma flechada no rosto, de que veio a morrer alguns dias depois.

Ao índio Ararigboia (em tupi, “cobra de tempestade” ou “cobra feroz”), em recompensa dos seus serviços, foi-lhe entregue o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo (tendo recebido o batismo cristão no Rio de Janeiro em 1530, segundo Frei Vicente do Salvador, recebendo do seu padrinho o nome de Martim Afonso de Sousa) e doada do outro lado da baía uma légua de terra no litoral com duas pela terra adentro, desde São Lourenço até Icarahy, compreendendo a maior parte da actual cidade de Niterói. O seu nome ficou ligado à colonização do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e da Guanabara[25].

Mem de Sá retirou-se pouco depois para a Bahia e de lá continuou a insistir pela sua demissão, vindo a falecer em São Salvador dois meses antes da chegada do seu sucessor.

Como disse, no Morro do Castelo estava a igreja de São Sebastião que durante quase quatro séculos foi o bastião da Sé, e no seu topo dominava a estátua do Arcanjo São Miguel, simples e bela, toda em cobre, que servia de ponto de referência aos navios que cruzavam a barra (Pão de Açúcar…) da baía de Guanabara. Este Arcanjo psicopompo, conduzindo as almas de um lado ao outro da vida, portador da Espada e da Balança, diz a Tradição Iniciática que seria representado pela secreta Ordem de Mariz, tendo dado início à extinção do Karma Fenício-Atlante que pesava sobre o Rio de Janeiro.

Tal Ordem Encoberta, Jina, como diria Mário Roso de Luna, avança ainda a Tradição Iniciática que ela é a Quinta das Sete Ramas da Grande Loja Branca, Maçonaria Universal ou Igreja de Melkitsedek – afim à chamada Linha Cabayu (tupi) ou Morya (sânscrito), em arábico Muridj ou Maridj, donde Mariz em português – e que levantou bem alto o seu Pavilhão Púrpura no Rio de Janeiro, a ponto de no Brasão de Armas deste a figurar centralmente o barrete frígio (simbólico do Adepto Independente ou o verdadeiro Homem Livre) sobreposto às três setas sebásticas, flechas incendiadas pelas Três Hipóstases do Deus Eterno Criador do Universo Mundanal, este assinalado na Esfera Armilar signatária do Hermetismo Manuelino, indicativa da Assiah ou o “Mundo”, que no Tarot se representa no Arcano 22 marcando o biorritmo do Brasil.

No Ermitão da Glória, obra preciosa do Genial José de Alencar (ou “Jina de Além-Mar”…), fala-se de Aires de Lucena e de Maria da Glória, autênticos gémeos espirituais profundamente enamorados que, por causa do seu amor impossível, morre ela na flor da idade e ele se torna o ermitão da Glória. Esotericamente, ela, Maria, é Vénus (Mãe, Mater, Mariz…) e ele, Aires ou Áries, é Carneiro (o “Guerreiro da Arca ou Agharta”, que toma por espada o bastão de eremita e por couraça o solidéu da renúncia), no cume do Outeiro (Solar) com o nome daquela alma amada que tão jovem partiu. Assim, Lucena acaba encarnando em si o martírio do próprio Orago, e quis a Lei de Causalidade que lá em baixo, logo ao começo da subida, fosse postada a monumental estátua de São Sebastião, “bastião” da Mui Leal e Heróica Cidade do Rio de Janeiro.

Lucena e Glória, cuja morte acaba simbolizando a “Realização do Andrógino” como parelha gémea, ficaram representados nos dois golfinhos laterais do Brasão de Armas do Rio, bem se sabendo que o delfim é tanto símbolo da Pedra Filosofal como do Messias ou Avatara, seja Cristo ou Maitreya, tanto vale, por ser a mesmíssima Consciência Divina em nova manifestação como Espírito de Verdade.

O Outeiro da Glória tem por “balizas”: à sua esquerda, o Relógio da Glória, de “quatro faces”, as quais transpostas às quatro faces de Janus, o deus das Portas, dos Portais do Mundo, vêm a representar os quatro pontos cardeais. No pedestal posta-se Brasão de Armas da cidade, ostentando a quilha de uma caravela entre a parelha de golfinhos.

À direita, encontra-se o Monumento Comemorativo da Abertura dos Portos (28.1.1888), onde duas damas sentadas vis-à-vis, a primeira tem a mão esquerda apoiada numa âncora (marinha), e a segunda empunha um caduceu (comércio); no respectivo pedestal, mais uma vez, o Brasão de Armas da cidade. Se teologicamente expressa a Esperança, esotericamente a âncora representa a fixação de um Ideal em lugar predeterminado aportado por determinado Movimento, portanto e como muito bem diz Moysés Jakubovicz, é “o símbolo do Salvador, o Avatara ou Manu, cuja “Barca” ancora em Porto Seguro… para a eclosão dos Seus preceitos, que, devidamente vivenciados pela criatura humana, realiza o equilíbrio do masculino e do feminino, energias estas representadas pelas serpentes do caduceu de Mercúrio, uma das metas da Teosofia”.

A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos e Brasília, a actual capital do país, têm uma característica comum: à luz da Tradição os seus nomes correspondem a princípios sagrados.

Cidade do Salvador – 1.ª capital (1549-1763). Início do Brasil Ibero-Ameríndio. Salvador, em grego, é Soter, com o sentido de Messias, Avatara, Legislador, Manu, etc.

Cidade do Rio – 2.ª capital (1763-1960). Brasil Luso-Mameluco. Janeiro provém de Janua, “Porta”, e Janus, o “Senhor das Eternidades”. Aqui foi a capital de Portugal e de todo o Império Português no Mundo, reinando D. João VI, e diante da dimensão geográfica do Império bem se poderá dizer que o Rio de Janeiro chegou a ser Capital do Mundo.

Cidade de Brasília – 3.ª capital (desde 1960). Brasil Americano, o Futuro. Brasília é feminino de Brasil, o que decerto terá a ver com o alvorescente V Império Universal ou a Era do Espírito Santo – a Idade do Veltro di Dio, a da Parúsia.

Para terminar, de volta à memória desse enigma brasílico que é a Pedra da Gávea e assim desfechar a saga do Brasil Fenício, informa, em lavra romanceada, Sérgio Órion de Souza do que terá sucedido após a morte abrupta de Yet-Baal-Bey e Yet-Baal-Bel[26]:

“O choque e a comoção apossaram-se do reino. Badezir foi mandado buscar às pressas pelos sacerdotes, apressando-se quanto pôde em vencer tão longo quão dificultoso trajecto, mas ao chegar nada mais pôde ser feito senão o sepultamento dos gémeos, que se deu no interior da hoje chamada Pedra da Gávea. Badezir retornou ao reino do Norte arcado pela imensa dor. Os reinos não mais lhe interessavam. Mesmo as redobradas responsabilidades políticas e administrativas – pois teve que assumir a ambos os reinos – não lhe dissiparam a tristeza de pai que muito se lamentava por nada ter conseguido fazer pela protecção dos filhos amados. Meses depois falecia Badezir de desgosto na capital de seu reino, em plena floresta amazónica. O seu corpo foi sepultado num templo piramidal, ainda lá existente, porém inacessível.

“Sob Badezir vigia a mais harmónica complementaridade entre os dois reinos, com a natural hegemonia do reino do pai, ao Norte. Com o desaparecimento dos supremos dirigentes, os sacerdotes e os militares tentaram de alguma forma manter coesos os reinos, mas as desavenças avultaram. Negavam-se os do Sul a serem governados pelos do Norte, chegando-se quase à declaração de guerra. O caos generalizou-se. Seguiram-se à dissidência política as crises administrativas e económicas. À falta de um governo central, as cidades fundadas às margens das rotas interiores foram deixadas à própria sorte; umas desapareceram, outras vingaram ainda por muito tempo, mas todas, com o passar dos séculos, foram abandonadas, pela vida mais fácil nas cercanias do litoral”… até desaparecerem definitivamente, com o fenício e o cário conversos simplesmente tupi e carioca.

Em desfecho final ao tema, agora respigo breve trecho de obra privada da lavra do Professor Henrique José de Souza, escrita nos anos 50 do século findado, levando o sugestivo título Livro da Pedra:

– Acolá, a Pedra da Gávea respondendo aos sinais semafóricos dos náufragos da vida, querendo dar entrada na Barra da “Baía de Guanabara”. Do outro lado, a Nistaoram dos amores fenícios dos Gémeos contemplando o mistério. A barquinha tradicional encalhada no bojo da serra, do monólito estranho, como Templo-Túmulo de Dois Deuses do Passado… E querendo ela mesma revelar a imortalidade indiscutível dos Gémeos. As vísceras nos vasos canópicos… querendo sangrar com as dores e saudades de outrora, duas múmias de escravos núbios postados aos pés desses mesmos Gémeos… olhando fixamente os corpos dos seus senhores… À cabeceira, dois jarrões de vítrea forma e adornados com aves exóticas e multicoloridas… mais parecem “dois pêndulos do mesmo relógio” a marcar a “Ancianidade dos Tempos”… E o perfume das flores que dentro dos mesmos existem, também na imortalidade de sua existência, a perfumar, agridocemente, o mágico ambiente do multissecular Monumento. Sim, os festejos da face da Terra, nas suas águas oceânicas, a se confundirem com os festejos de Duat repercutidos na Agharta…

E a Pedra da Gávea faz ecoar, no “tintinábulo das pedras em seu redor”, acompanhando o marulhar das águas oceânicas:

“BADEZIR… BASIL… BRASIL!” Terra do Fogo Sagrado.

A Canaã da Kumárica e Pramanthica Quadrilateralidade.

Palavras cruzadas…

NOTAS

[1] Eduardo B. Chaves, Mensagem dos Deuses (Para uma revisão da História do Brasil). Livraria Bertrand, Lisboa, 1977.

[2] Cássio Costa, História dos Subúrbios: Gávea. Departamento de História e Documentação do IHGB, Estado da Guanabara, 1963.

[3] Brasil Gerson, Histórias das Ruas do Rio de Janeiro. Editora Sousa, Rio de Janeiro, 1954.

[4] Helena P. Blavatsky, Isis Sin Velo, tomo II, cap. VI. Editorial Sirio, S. A., Málaga, 1988.

[5] Araken Távora, Pedro II através de Caricatura. Editora Bloch, Rio de Janeiro, 1975.

[6] Paul Hermann, Conquest by Man – The saga of Early Exploration and Discovery. Harper & Brothers, New York, 1954.

[7] Trata-se do padre frei Custódio Alves Serrão (1799-1873), da Ordem dos Carmelitas Calçados da Província do Reino, que durante muito tempo foi professor catedrático de Física e Química na Escola Militar no Rio de Janeiro, neste onde dirigiu o Museu Nacional por decreto de 25 de Janeiro de 1828. Em 1839 escrevera uma Memória remetida ao rei D. João VI, relatando a sua descoberta e interpretação dos pressupostos petróglifos da Pedra da Gávea.

Sacramento Blake, literato, biógrafo e historiador brasileiro, no segundo volume do seu Diccionario Bibliographico Brazileiro (1893), assim descreve este religioso erudito:

“Custodio Alves Serrão — Filho de José Custodio Alves Serrão e de Dona Joanna Francisca da Costa Leite, nasceu na villa, depois cidade de Alcântara, no Maranhão, a 2 de Outubro de 1799, e falleceu no Rio de Janeiro a 10 de Março de 1873. Carmelita professo aos quinze annos de idade, apezar de sua manifesta aversão á vida claustral, mas por imposição de seus paes, em vista da rara intelligencia que demonstrava, foi mandado, à expensas da Ordem, para Coimbra, com o fim de seguir o curso dos estudos superiores; mas bem depressa teve de entrar em lucta com os frades conimbrenses, porque queriam estes obrigal-o a estudar theologia e, como ele teimasse em seguir o curso de sciencias naturaes, chegaram ao ponto de negar-lhe um talher em seu refeitorio! Obtendo, entretanto, o gráo de bacharel com as melhores approvações e com grandes sacrificios, veiu para o Rio de Janeiro em 1825; foi nomeado em 1826 lente do botanica e zoologia da Academia Militar, passando logo com a reforma da Academia a lente de chimica e mineralogia, e em 1828 director do Museo Nacional. Do primeiro destes logares obteve aposentadoria em 1847; do segundo a exoneração que pediu, depois de elevar o Museo ao gráo de aperfeiçoamento que elle ideava. Antes disto, em 1834, exerceu as funcções de membro da commissão de melhoramentos da Casa da Moeda, onde introduziu uteis reformas e processos de analyse e refinação de metaes, que então eram novidade; depois disto, em 1859, foi nomeado para o cargo de director do Jardim Botanico, onde conservou-se alguns annos, tendo alcançado breve de secularisação em 1840. Por occasião de uma viagem ao Norte, em 1835, explorou, em Sergipe, as serras de Itabaiana, onde se dizia existirem minas de ouro e de salitre, e em Alagoas a formação betuminosa das praias de Camaragibe, remettendo amostras ao Governo. Conhecia a lingua grega e varias linguas orientaes e era notavel naturalista, vindo a cegar completamente antes de fallecer, em consequencia das repetidas observações microscopicas a que se entregava. Foi membro do Instituto Fluminense de Agricultora, socio fundador da Sociedade de Melhoramentos da Instrucção Elementar, socio do Instituto Historico do Brazil, socio e presidente honorario da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, e commendador da Ordem de Christo.”

Quanto às pesquisas na Pedra da Gávea, empreendidas por esse mesmo erudito, agrega Sacramento Blake:

“Consta-me que frei Custodio, em vista de uma inscripção em caracteres phenicios, já muito carcomidas pela acção destruidora do tempo, encontrada em uma das montanhas do littoral do Rio de Janeiro, ao sul da barra, escrevera uma Memoria, em que se prova que o Brazil fôra visitado por alguma nação conhecedora da navegação, antes que aqui viessem os portuguezes. Esta Memoria foi examinada por uma commissão do Instituto Historico, mas nunca se tratou mais disto.”

[8] Bernardo Ramos, Inscrições e Tradições da América Pré-Histórica (Especialmente do Brasil), vol. I, cap. XIV, “As inscrições do Morro da Gávea”. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1930.

[9] Henrique José de Souza, Brasil Fenício. Brasil Ibero-Ameríndio. Revista Dhâranâ, ano XXIX, n.º 2, Maio / Junho – 1954, São Paulo.

[10] Brasil Gerson, História dos Subúrbios: Botafogo. Departamento de História e Documentação da Prefeitura do Distrito Federal, 1959.

[11] Vasco Mariz, Lucien Provençal, Villegagnon e a França Antártica: uma reavaliação. Nova Fronteira, Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, 2001.

[12] Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Editora Positivo, Curitiba, 2010.

[13] Gustavo Barroso, Aquém da Atlântida. Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1931.

[14] Alfredo Pinheiro Marques, A Cartografia Portuguesa e a Construção da Imagem do Mundo. Edição trilingue (português – francês – inglês). Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1991. O citado Álvaro Teixeira Filho pertencia às Armas de João Teixeira Albernaz I que, cerca de 1640, pintou uma carta antiga de Portugal Continental que se conserva até hoje em Lisboa, no Museu Calouste Gulbenkian, recentemente acrescentada nos Portugalie Monumenta Cartographica. Sendo filho de Luís Teixeira, João Teixeira Albernaz I foi cartógrafo real, entre 1597 e 1612, e o que teve influência mais notável no estrangeiro, notoriamente na Holanda, onde está boa parte da sua obra. Deve-se a ele as cartas planisféricas do litoral e interior do Brasil, que assim passou a ser conhecido dos navegadores de Seiscentos, nomeadamente holandeses e ingleses, já que desde muito antes os portugueses conheciam bem o Brasil, cerne da sua diáspora mais cultural que comercial, ao inverso dos outros. A dinastia Albernaz teve continuação sobretudo com João Teixeira Albernaz II, neto do homónimo e bisneto de Luís Teixeira. Cf. Armorial Lusitano (Genealogia e Heráldica), referência aos Albernaz, pp. 37-38. Lisboa, 1961.

[15] Este mapa foi publicado em Monumenta Cartographica Africae et Aegypti, de Yousouf Kamal, t. 3.º, fasc. IV, p. 867, Cairo, 1934.

[16] José Garcia Domingues, Portugal e o Al-Andalus. Hugin-Editores, Ltda., Lisboa, 1.ª edição Outubro de 1997.

[17] O texto árabe da Geografia de Abu’l-Fida, Taqwin al-Buldân, foi publicado por Reinaud et Slane, Paris, 1840. A sua tradução, sob o título La Géographie d´Abulfêda, deve-se a Reinaud e Estanislau Guyard, Paris, 1848-83.

[18] J. da Costa Macedo, Memória (…) que os Árabes não conheceram as Canárias antes dos Portugueses, in Hist. e Mem. da A.R.C.L., Tomo I (1843), 37-268. Cf. Pinharanda Gomes, História da Filosofia Portuguesa – A Filosofia Arábigo-Portuguesa. Guimarães Editores, Lisboa, 1991.

[19] Peter Kolosimo, Antes dos Tempos Conhecidos. Edições Melhoramentos, São Paulo, 1970.

[20] Moysés Jacubovicz, A Pré-História do Brasil. Revista Aquarius, ano 3, n.º 9, 1977, Rio de Janeiro.

[21] René Guénon, Symboles Fondamentaux de la Science Sacrée. Éditions Gallimard, Paris, 1962.

[22] Juan G. Atienza, Santoral Diabólico. Ediciones Martínez Roca, S. A., Barcelona, 1988.

[23] Osório Duque Estrada, História do Brasil. Jacinto Ribeiro dos Santos, Editor, Rio de Janeiro, 1922.

[24] Esta ilha teve sucessivamente os nomes de Paranapuam ou Paranapucú, Maracaiâ ou do Gato, dos Sete Engenhos e, finalmente, do Governador (Mem de Sá).

[25] Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1500-1627). Editora Melhoramentos, São Paulo, 1931.

[26] Sérgio Órion de Souza, O Descobrimento do Brasil em três actos. Revista Dhâranâ, ano 76, edição 235, Janeiro 2000, São Paulo.

HY-BRAZIL: DELENDA PHOENICIA – Por Vitor Manuel Adrião Quinta-feira, Nov 25 2021 

Parece ter se tornado instituição o muro de silêncio e ostracismo sobre a Pré e Proto História do Brasil. É como se este nunca tivesse existido antes da chegada de Cabral… Este mistério de ignorar ou de ocultar as provas, ou então as censurar e deturpar, é daqueles que não consigo decifrar, confesso.

Lembro há uns anos atrás ter chegado a Portugal a notícia televisiva de ter sido descoberta no fundo da baía de Guanabara (RJ) uma embarcação pressupostamente fenícia. Foi o “fim do mundo”! Os mais reputados historiadores vieram a liça gesticulando coléricos que essa “não passava de um barco de pescadores afundado recentemente” (como é que eles sabiam se não assistiram ao naufrágio, tampouco realizaram alguma pesquisa submarina no local?!) e que “antes de Cabral nada havia”… e a notícia morreu aí.

Lembrei-me desse acontecimento passado por recentemente ter lido sobre ele numa revista teosófica, o que me avivou a memória[1]:

“Um triste exemplo que comprova esse aberrante comportamento (académico) tivemo-lo em 1982, quando surgiu a notícia da descoberta de três ânforas reconhecidamente fenícias, retiradas da baía de Guanabara. O arqueólogo norte-americano Robert Frank Marx iniciou, em 1975, uma série de mergulhos na citada baía, para confirmar a hipótese do afundamento de um navio fenício ali. Não encontrou navio algum, mas sim as ânforas. O caso foi mediatamente abafado e somente foi divulgado, com informações vagas, três anos depois, em 1978. O assunto só voltou à baila em 1982, quando o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, publicou matéria sobre uma Conferência da Marinha, onde o presidente da Associação Profissional das Actividades Subaquáticas, Raul Cerqueira, relatou o achado das ânforas, cada uma delas com capacidade para 36 litros, juntamente com outras 12 peças arqueológicas. O nome do mergulhador que as encontrou foi então revelado: José Roberto Teixeira, que teria ficado com uma das ânforas, entregando as outras duas para o Governo Brasileiro que, segundo informações confidenciais, as mantém em local sigiloso.”

Ainda defronte à cidade do Rio de Janeiro, na Ilha Rasa, foram encontrados esqueletos humanos e paleogravuras datados para cima de 20.000 anos. Não é isto significativo?

Há ainda a notícia da descoberta de 40 urnas funerárias em Presidente Figueiredo, a 107 quilómetros ao norte de Manaus, sendo considerada um dos mais importantes achados arqueológicos do Amazonas de todos os tempos[2]. As urnas mantinham os mortos parcialmente conservados, o que revelava conhecimento herdado dos antepassados acerca dos processos de mumificação. O secretário municipal de Turismo e Meio Ambiente de Presidente Figueiredo, o geólogo Frederico Cruz, disse aos órgãos de comunicação social: “Essas urnas podem conter informações preciosas sobre as populações passadas e sobre as migrações dos paleoíndios que habitaram a região, com certeza há mais de dois mil anos”. Uma das urnas descobertas, de cinco metros de diâmetro no chão, supôs-se “poder ser uma urna gigante usada para enterro colectivo”[3]. Frederico Cruz acrescentou ainda que a Prefeitura de Presidente Figueiredo não era irresponsável ao divulgar informação tão extraordinária. Por causa da grande pressão de jornais e arqueólogos independentes, foi decidido que uma excursão pioneira coordenada pelo arqueólogo Marco António Rocha, do Centro Ambiental da Vila de Balbina, se deslocaria até ao local do achado para realizar os primeiros estudos.

Essas são notícias factuais, referentes a descobertas cientificamente comprovadas, as quais em nada ingerem com a posterior presença de Cabral no Brasil, ao contrário do que achou certa e desavisada comissão de portugueses patrioteiros em Maio de 1968, nisso sendo “mais papistas que o Papa”, como conta Moacir Lopes na sua Introdução à obra de Ludwig Schwennhagen[4]:

“Em Maio de 1968 lemos no jornal O Dia, do Rio de Janeiro, uma notícia vinda dos Estados Unidos, acompanhada da reprodução de um quadro de símbolos. Dizia o texto: “Encontrados na Paraíba e levados para Walthan, em Massachussets, nos EUA, estes símbolos foram estudados durante quase cem anos. Finalmente o professor Cyrus Gordon, especialista em assuntos mediterrâneos, conseguiu decifrá-los. Indicam que os fenícios estiveram nas terras que hoje formam o nosso país, pelo menos dois mil anos antes de Cristóvão Colombo descobrir a América e Cabral chegar ao Brasil”.

“Dois dias após a publicação dessa nota, vimos em outro jornal outra nota: “Lusos: Cabral chegou antes”, em que alguns portugueses radicados no Brasil mostram-se mesmo “revoltados, manifestando a disposição de fazer uma representação junto à Embaixada dos Estados Unidos”…”

Isso vem revelar ignorância crassa em termos históricos, como se o período Pré-Cabralino de alguma maneira ingerisse com o Cabralino e Pós-Cabralino do Brasil. Passo adiante.

De maneira que assim vou me achegando ao estudo filológico comparativo Sumério – Tupi, que é dos mais apaixonantes da Proto-História Brasileira, indo tomar por ponto de partida a palavra bíblica Ophir, que fez a glória de Israel e foi a joia mais cara da grandeza de Tiro, esta descrita pelo profeta Ezequiel:

“Ó Tiro, tu disseste: «Eu sou de uma beleza perfeita e situada no coração do mar”… Os cartagineses que traficavam contigo, trazendo-te toda a casta de riquezas, encheram os teus mercados de prata, de ferro, de estanho e de chumbo. A Grécia, Thubal e Mosoch também estes sustentavam o teu comércio: trouxeram ao teu povo escravos e vasos de metal. Da casa de Thogorma trouxeram à tua praça cavalos, e cavaleiros, e machos. Os filhos de Dedan negociaram contigo: o comércio das tuas manufacturas se estendeu a muitas ilhas, eles em troca das tuas mercadorias te deram dentes de marfim, e de pau ébano. Os sírios se meteram no teu tráfico por causa da multidão das tuas obras, expuseram à venda nos teus mercados pérolas, e púrpura, e estofos bordados de pequenos escudos, e linhos finos, e sedas, e toda a casta de mercadorias preciosas. Os povos de Judá, e da terra de Israel, foram os mesmos que comerciaram contigo no melhor trigo, eles puseram de venda nas tuas feiras o bálsamo e o mel, e o azeite, e a resina. O de Damasco traficava contigo pela abundante variedade dos teus géneros, pela multidão de varias riquezas, em vinho generoso, em lãs da mais alva cor… A Arábia, e todos os príncipes de Cedar, estavam também metidos na dependência do teu comércio: com cordeiros, e carneiros, e cabritos vinham a ti para comerciar contigo… Os teus vasos faziam o teu comércio principal: e tu foste cheia de bens, e elevada à mais sublime glória no coração do mar…”[5]

É Cândido Costa[6], repetido por Arthur Franco[7], a não economizar detalhes filológicos, devidamente apurados, no intento de comprovar a presença fenícia na “Ínsula” que depois se revelaria o Brasil, tomando por base da sua arqueofilologia diversas passagens do Antigo Testamento.

O rei David, quando morreu, deixou ao seu filho, o rei Salomão, para a construção do Templo de Jerusalém, 7000 talentos de prata e 3000 de ouro de Ophir. O velho rei não possuía nenhum navio que navegasse nos mares exteriores. Recebia, pois, o ouro de Ophir pelo tráfico com os fenícios, os quais, segundo a mesma Bíblia, “conheciam todos os mares”. Salomão, para pôr em execução os seus grandes projectos de edificação do Templo, recorreu ao rei Hiram I de Tiro. Interessou-o nas suas empresas e contratou com ele aliança sólida.

O receio de provocar hostilidades dos povos vizinhos do Mediterrâneo, sem dúvida terá sido o motivo que decidiu Salomão a construir em Esion-Gaber, no Mar Vermelho, os navios que destinava às viagens a Ophir, havendo para isso marinheiros fenícios experimentados que Hiram lhe enviara (Paraliponemos 2, cap. 8, vers. 18: “E o rei Hirão lhe mandou por seus vassalos naus, e marinheiros práticos do mar, e foram com a gente de Salomão a Ofir, e de lá trouxeram ao rei Salomão 450 talentos de ouro”). Ademais, na época, as Colunas de Hércules estavam fechadas aos gregos por Cartago e o comércio para as terras banhadas Atlântico tinha vigilância apertada.

A frota salomónica a Ophir terá ido muito além do Mar Vermelho. Deduz-se que terá passado o Cabo africano e se reunido, já no Oceano Atlântico, à frota de Hiram que saíra do Mediterrâneo. É a partir desta hipótese que Cândido Costa, por via da Filologia, tenta levantar o véu acerca da verdadeira identidade das ricas localidades bíblicas de Ophir, Parvaim e Tarschisch. Para isso, baseou-se no estudo comparativo das antigas línguas europeias e asiáticas, bem como na língua quichua ou dos antis do Peru, a qual ainda se falava, pelo menos em 1900, na bacia superior do Rio Amazonas.

Nos Paraliponemos 1, cap. 29, vers. 2-4, conta-se que Salomão adornou a sua casa com belas pedras preciosas e que o ouro era de Ophir e de Parvaim. Ora, Parvaim é pronúncia alterada de Paruim. A terminação im dá o plural em hebraico, e vem acrescentado a Paru, decerto para indicar uma duplicidade na ínsula occidis de Ophir; efectivamente existem, na bacia superior do Rio Amazonas (nome fenício dado à Ursa Menor), no território oriental do Peru, dois rios auríferos, um com o nome de Paru, outro com o de Apu-Paru, o “rico Paru”, e que unem as suas águas para se confundirem no Ucuayli. Filologicamente, os dois rios Paru e Apu-Paru perfazem, no plural, Paru-im. Ateste-se ainda que, primitivamente, o Rio Amazonas levava o nome Paruinga e que os autóctones tupis até hoje pronunciam Paranatinga (pronúncia Paranã-tinga, “o mar ou caudal branco”)[8].

O Rio Amazonas, desde a embocadura do Ucuayli até à foz do Rio Negro, chama-se ainda hoje Solimões. Este não é mais nem menos que o nome viciado de Salomão, cujo batismo poderá dever-se aos da frota hebraico-fenícia do rei bíblico, quando tomaram conta da terra, tanto que Salomão se escreve em hebraico Solimah e em árabe Soliman, donde Solimões, corruptela tardia. Çorinam, alterado Sorimão, Solimão, donde Solimões, é o nome de uma tribo tupi do alto Amazonas que deu o seu apelido à parte do grande rio, acima do Rio Negro[9]. Nisto não se deve esquecer de que, na América, as correntes de água tiram os seus nomes das tribos que habitam junto delas. Daí também os portugueses bandeirantes setecentistas terem implantado a pronúncia rústica Solimão, por hábito de linguística não apurada em conformidade às poucas letras aprendidas, o que era comum no vulgar sertanejo.

Essa pressuposta colónia hebraico-fenícia terá tido uma duração assaz longa, pois as viagens trienais dos navios de Salomão e de Hiram se renovaram várias vezes, conforme se lê em Paraliponemos 2, cap. 9, vers. 13 e 21: “E o peso do ouro, que todos os anos se trazia a Salomão, era de 666 talentos de ouro. Porque as frotas do rei iam de três em três anos com a gente de Hirão a Tharsis (ou Tarschisch), e traziam de lá ouro e prata, e marfim, e bugios, e pavões”. “Marfim e pavões” parece remeter mais para a África congolesa do que para a amazónica América do Sul, mas poderá justificar-se o texto por eventual paragem da frota em alguma parte da costa africana. É ainda dito que a colónia amazónica não foi abandonada à sua própria sorte senão no reinado de Josaphat, rei de Judá, no tempo em que os cartagineses todo-poderosos não permitiam a nação alguma sair do Mediterrâneo. Poderá ter sido essa a razão porque Josaphat quis mandar sair do Mar Vermelho para essas mesmas regiões uma frota equipada, conjuntamente com Ochozias, rei de Israel. Porém, um terrível temporal destruiu-a completamente.

Passo agora a Ofhir, lugar de situação geográfica controversa, célebre pelas suas riquezas imensas. Antes de tudo o mais, devo lembrar que vários filólogos acreditaram poder fazer que prevalecesse o nome de Abiria, por ter sido a Ophir da Bíblia. Todavia, devem levar-se em consideração os factos seguintes:

Primeiro, o nome Abiria é a tradução latina do vocábulo grego Sabeiria, tomado da Geografia de Ptolomeu, livro VII, cap. I. A licença do tradutor é tão grande quanto censurável. Em segundo lugar, Sabeiria acha-se localizada na parte ocidental da Índia, que chamavam Indo-Scitia. Porém é reconhecido que a Índia, mormente na parte ocidental, nunca produziu ouro para o comércio; pelo contrário, os egípcios e os árabes para ali o levavam, para trocaram-no por tecidos de lã e algodão. Assim, a hipótese de que Sabeiria fosse a Ophir da Bíblia cai por si mesma!… Cândido Costa, na sua obra citada, aponta o filologista Esteban Quatremére que também não admite que Ophir estivesse colocada no Golfo Arábico ou em alguma parte da Índia, Ceilão, Sumatra, Bornéu ou em algum ponto do Extremo Oriente, pela razão muito simples de que os navios de Salomão e Hiram gastavam três anos em cada viagem dessas[10]. Mas não eram três anos de viagem, e sim viagens de ida-volta de três em três anos. Contudo, Quatremére cai no próprio erro dos que combate ao colocar Ophir em Soplah, na costa oriental de África. Para fortalecer a sua hipótese, Quatremére não hesita na escolha dos meios: assim é que, por não achar pavões na África (mas os há, como o pavão-do-congo, Afropavo congensis), quer que os pássaros chamados tulens na Bíblia sejam periquitos ou picotas. Curiosamente, muitos autores têm adoptado a teoria descabida, com laivos de brejeira ou anedótica, de Esteban Quatremére, ao colocar Parvaim e Ophir, o “País das Minas de Salomão”, na África. Devo acrescentar que o hebraico Parvaim é todo ele igual ao Paraim ou Paraima tupi, nome primitivo das Lavras de Minas, hoje Estado de Minas Gerais, enquanto Pindorama, em tupi, era o “País das Palmeiras”, hoje Brasil, o Hy-Brazil sumério.

No primeiro Livro de Reis aparece escrito Ophir em língua hebraica de três modos: Apir, Aypir e Aypira. Nada se opõe, antes se conclui, que o Aypira bíblico encontre o seu correspondente imediato no Rio Yapur, onde o Y significa “água”, ou seja, “água ou rio de Apir, Aypir ou Ophir”. Razão filológica da região de Ophir ser essa que atravessa o Rio Yapurá, no Amazonas, conectado ao significado tupi de “entre água, ilha”: Ypaú, alterado Ipaon e Upíon, este cuja fonética se identifica a Ophir.

Quanto à palavra hebraica Tarschisch, grafada de forma simples Tharsis, em sumério significa “Amazonas do Alto”, neste caso e astronomicamente, a Ursa Maior, obviamente acima da Ursa Menor, mas geograficamente só poderá ser, pela mesma lógica, a Alta Amazónia.

Parentes dos fenícios foram um outro povo dos mais ilustres da Antiguidade Clássica: o cário, provindo da Ásia Menor que deu nome ao território onde se fixou, a Cária, situado na Anatólia, a sudoeste da Europa, em cujo litoral estavam as famosas cidades de Halicarnassus e Mileto. Halicarnassus era o lugar do famoso Mausoléu que foi uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Mileto era a cidade do famoso Thalkes, de origem fenícia. Próximo ficava Rhodes, também sede de uma das Sete Maravilhas, o famoso Colosso. Heródoto descreve a importância real da Cária no Passado:

“Os cários eram uma raça que veio para o continente (europeu) a partir das ilhas (egeo-cretenses). Nos tempos antigos estavam sujeitos ao rei Minos, e o foram pelo nome de leleges (donde lelúgios, lúgios e lígures…), residindo nas ilhas e, tão longe quanto pude ir em minhas pesquisas, nunca sujeitos a prestar tributo a qualquer homem. Eles serviram a bordo dos barcos do rei Minos quando ele requeria; e então, como ele era um grande conquistador e prosperou em suas guerras, os cários eram, nos seus dias, de longe os mais famosos de todas as nações da Terra. Também foram os inventores de três coisas as quais os gregos copiaram. Foram os primeiros a colocar cristas nos capacetes e a colocar dispositivos nos escudos, e também inventaram punhos para os escudos. Nos tempos antigos, os escudos eram sem punhos, e seus usuários os manejavam pela ajuda de uma tira de couro que eles penduravam em torno do pescoço e do braço esquerdo. Muito tempo depois de Minos, os cários foram retirados das ilhas pelos jónicos e dóricos, e então estabeleceram-se no continente. Isto é o que os cretenses contam dos cários. Os cários mesmo contam algo muito diferente. Eles sustentam que eram os habitantes originais (originais e pós atlantes, aventarei) da parte do continente onde agora habitam, e nunca tiveram outro nome que este que ainda levam.”[11]

Essas cristas referidas no texto são, na realidade, uma característica da América Pré-Colombiana e do Brasil Pré-Cabralino. Era um hábito estranho à população europeia, como acentuou Heródoto. Isso poderá ser mais um indício etnográfico significativo a corroborar a presença desses povos mediterrânicos no continente americano. Observa-se em 1194 a.C. essas cristas na grande invasão dos povos do mar, os que varreram o Mediterrâneo e se caracterizavam por vestimentas muito idênticas às maias sul-americanas, inclusive a crista de penas. Adianta Arthur Franco na sua obra citada:

“Diodoro da Sicília (90-21 a.C.), escrevendo em 50 a.C., disse que os cartagineses seguiram na navegação os rastos dos cários nos mares do Oeste. Os cários usavam penas como os índios americanos. Segundo alguns historiadores, foram deixando na maior parte da América o seu nome, estabelecendo uma dinastia de sua raça que reinava em Quito, capital do Equador. Plutarco, em seu Tratado das Manchas no Orbe Lunar, conta-nos que, abrangendo todo o Ocidente além das Colunas de Hércules, o continente em que reinava Merope foi visitado por Hércules numa expedição que fez para Oeste, e que os seus companheiros ali apuraram a língua grega, que começava a adulterar-se. Segundo Heródoto, as origens gregas estariam na América. Ora, os indícios que as culturas de Cuzco, no Peru, de Yucatan, no México, de San Agustín, na Colômbia, apresentam na filologia é gritante. O prefixo car aparece em numerosas culturas ameríndias. Entre os indígenas das Honduras, figura a tribo dos caras. No centro e no sul de uma vasta região contígua vivem as tribos dos caricos, carihos, caripunos, carayas, caras, carus, caris, carais, caribos, cários, carannas, caribocas, cariocas, caratoperas, carabuscos, cauros, caricoris, cararaporis, carararis, etc. Isto pode não significar uma prova, mas é significativo que todas as tribos em cujo nome aparece o prefixo car chamem os brancos europeus de caras. Carioca, por exemplo, na língua guarani, significa terra dos homens brancos.”

Como é universalmente sabido, carioca é a alcunha dada aos habitantes do Rio de Janeiro. Isso porque durante o Brasil-Colónia os negros e mestiços, tanto os alforriados como os mandados por algum dono de menos posses, andavam pelas ruas vendendo refresco de café, apregoando o produto em plenos pulmões: “I… car… ioca!”. Daí ficou “carioca”, por se destinar aos “senhores brancos”, endinheirados. Portanto, o epíteto será anterior e poderá ter sido aproveitado. Ainda hoje, mesmo em Portugal, quem deseja um café fraco solicita-o pelo nome “carioca”.

Os cários mediterrâneos, obviamente pós-atlantes ou do início do Período Histórico, seriam parentes dos outros cáris antilhos (das Antilhas ou “Atlante-ilhas”) que haviam ficado para trás, na América Central, após o Dilúvio Universal da Atlântida. Estes, mais tarde, irão ser organizados na região do Peru pelo filho de Manco-Capac e Mama-Oclo, Sumer ou Sumé, na sua marcha daí ao Sul do Brasil, já não como cáris mas sob o designativo de tupis, ou os adoradores de Tupan, o Deus Único e Verdadeiro, não como o sumério Baal-Bey (“Senhor dos Senhores”) mas como o indígena local Ara-Tupan-Cabayu (“Aquele que ‘cavalga’ ou governa a Terra”).

De maneira que, segundo Ludwig Schwennhagen na sua obra citada, nas crenças e noções religiosas dos tupis os missionários jesuítas encontraram as seguintes palavras:

1.º) Com o nome de Tupan veneravam os tupis o Único e Omnipotente Deus, como Criador e Governador do Mundo, o Fohat dos Iniciados, como “Fogo Frio Celeste” (Electricidade);

2.º) Pelo nome de Tupana indicaram os tupis a Força Divina e Criadora, exactamente como se chamava a deusa Cibele e cujo correspondente, como Feminino de Deus, está na Virgem Maria, a Kundalini dos Iniciados, como “Fogo Quente Terrestre” (Electromagnetismo);

3.º) A palavra Tupan-Kere-Tan, explicam os padres Manuel da Nóbrega e Anchieta, conforme a interpretação dada pelos pajés, traduz-se como “Terra da Mãe de Deus”, logo, “Terra Paradisíaca”, o que levaria os portugueses cabralinos da primeira vaga a batizá-la de Terra de Vera Cruz, que D. Manuel I depois quis que fosse Santa Cruz, mas nunca pegou bem este segundo apelido, mesmo sendo ambos referência última ao Cruzeiro do Sul, como vera ou verdadeira Santa Cruz que celestialmente coroa o imenso Brasil. Não tendo a língua portuguesa a letra k, os escritores posteriores escreveram Tupan-Cere-Tan, e traduziram “Terra de Ceres”, respectivamente, da Mãe da Natureza. O autor explica a palavra Tupan-Kere-Tan como a “Terra da Mãe Divina” ou a “Mãe Divina na Terra”, hoje representada na Virgem Negra “A Aparecida”, Padroeira do Brasil, como a expressão velada do Espírito Santo no Seio da Terra em permanente Actividade Criadora, posto “o Espírito Santo ser a Vontade de Deus posta em Actividade”, o que corresponde ao Filho de Deus, o Portador do “Hálito Vital”, o Prana dos Iniciados;

4.º) Existe na língua tupi também os nomes Kerina (igualmente escrito Querina) e Kera-ima, indubitavelmente derivados de Kaerimona (donde a portuguesa “cerimónia”), da língua de Car. Os piagas (ou pajés iniciados) explicaram a palavra como nome da “mulher sem sono, que não dorme e fica vigilando para ajudar às mulheres doentes que a chamam”. Outros interpretaram Kerina como a “mãe da água”, que protege a criação de peixe contra aqueles que os envenenam usando timbó (a paulinia pinnata, planta cujo suco mata o peixe, muito comum na Amazónia). Os padres jesuítas alcunharam depois as mulheres que não pediam o batizado das suas crianças de Kera-ima, qualificando-as como “adeptas de Kerima”, que é dizer, da primitiva religião cária.

Essas quatro palavras da religião tupi (a original e verdadeira do Brasil, tal como a raça), apresentam para o historiador e filologista a prova dessa religião ter sido introduzida e propagada no Brasil pelos sacerdotes chamados piagas, respectivamente da Ordem de KAR. Com efeito, o nome oficial dos membros da Ordem de KAR era piaga. P.I.A. é uma palavra cabalística dos Magos da Ásia Menor, com o significado genérico de “religião”, cuja sigla lê-se em sumério PILESER IAR ASSURETH, “domínio do Plano Mental”. A.G.A. – AGARIT AGAD AGAROM, “que faz Bem, Bom e Belo” – é “servidor de Deus, trabalhador da Fé, guia do Povo, ministro de Deus e do Rei”.  Portanto, piaga é o “propagador da religião”. No tupi encontra-se a palavra pia para “coração, bom andamento (representado pela letra k = um homem caminhando adiante), caridade e obediência”. O mesmo significado tem a palavra pia na língua fenício-pelasga. No grego mudou o p em b: bia é a “força moral e física”, bios é a “vida”, movida pelo coração. No latim tem-se: pia, pius, piare, pietas (piedade) e muitos outros compostos.

Pode-se situar na época de 1800 a 1700 a.C. o momento em que saiu da Caldeia, como emissário da Ordem dos Magos, o progenitor, consequentemente, coordenador e legislador dos povos cários, chamado K.A.R. – KHA ASSURETH RISIL (“Espírito Universal do Fogo”). A sigla do nome é uma fórmula cabalística que pertenceu aos segredos da dita Ordem, que aqui revelo pela primeira vez. Kar ou Car fundou a confederação dos povos cários, com a capital Hali-Kar-Nassos (“Jardim Sagrado de Kar”) na ponta do sudoeste da Ásia Menor. Heródoto nasceu na mesma cidade e deixou à posteridade, na sua História Universal, os principais traços da vida e da grande obra civilizadora de Car.

A religião propagada por Car baseava-se na crença em um Deus Único Omnipotente, a quem ele chamou P.A.N., também uma palavra cabalística (PILESER ASSURETH NISAB), significando “Senhor do Universo”. Já TU-PAN, o mesmo Deus Omnipotente na religião tupi, significa “adorado Pan”. Na língua dos cários, fenícios e pelasgos, o substantivo thus, thur (respectivamente tus, tur e tu), significa “sacrifício da devoção” e “incenso”. Tudo o que o homem oferece a Deus é, na língua dos sacerdotes cários, T.U. (TUN UNA), igualmente sigla cabalística. O infinito do verbo sacrificar é, no fenício, tu-na; no grego, thu-ein e thy-ein; no latim, tu-eri. Thus, também no latim, é o incenso que se oferece a Deus e os seus respectivos deuses ministros. A origem de TUPAN, como nome do Deus Omnipotente, recua à religião monoteísta de Car, PAN, vulgarizado no grego antigo como indicativo da “Religião Natural” antecessora da “Religião Crença” que um dia, queiram os Deuses, haverá de dissolver-se para só ficar a “Religião Sabedoria”.

Esse carácter monoteísta do culto a TU-PAN, o Pai, não alterado – como sucede actualmente na religião cristã – pelo culto paralelo e complementar à Divindade Feminina, a Mãe, TU-PANA ou TU-KERA, como era reconhecida na adoração dos povos da Ásia Menor, nome depois adaptado para Kybele, Cibele e Ceres. O nome da deusa Ceres foi escrito no latim arcaico Caeres e Kaeres, cujo nome é uma forma feminina de Kar. Outras formas femininas são karmosa, karmina, kaermona, kaerimona e caerimona, donde vem a palavra portuguesa cerimónia, que antigamente significava “o gesto altivo da sacerdotisa de Vesta”. A Ordem das Vestais era uma filial da Ordem das Cariátides, cuja primeira líder foi Caria, filha de Car. No Brasil, encontram-se os cabayus e as goarás ou garás entre os tupis carijós; essas assistentes daqueles, tal qual a sacerdotisa assiste ao sacerdote completando-se ambos, numa androginia mística ao longo do rito sagrado.

De maneira que se poderá situar a religião tupi, aparecida no Norte do Brasil, na época de 1050 a 1000 a.C., precisamente no período dado à presença fenícia aí. Neste sentido, essa religião seria propagada por sacerdotes cários, emissários da Ordem dos Piagas, sob a direcção do seu chefe espiritual e temporal chamado Sumer, cujo nome mudou, pelo abrandamento da letra r, em Sumé, que depois os missionários jesuítas, desejosos de impor a fé católica aos autóctones, associaram à pessoa do apóstolo Tomé[12].

Portanto, a língua tupi será um ramo da língua suméria, formada e falada pela Ordem dos Magos, na Caldeia, desde os tempos do rei Urgana, isto é, 4000 anos a.C. Esse rei Urgana possuía o título de Sumer, como supremo chefe temporal e espiritual da nação e da Ordem dos Magos. Assim, Sumer é o título daquele que detém as duas funções, a real e a sacerdotal.

De maneira que, ainda segundo Schwennhagen, a emigração dos cários (sacerdotes e instrutores) acompanhando os fenícios (guerreiros e construtores) ao Hy-Brazil, terá se efectuado desde 1100 a 700 a.C. Posteriormente os exploradores europeus, destacadamente os portugueses, encontraram no Brasil numerosas populações que se chamavam cara, carara, caru, cari, cariri, cairari, carahiba, caryo e cariboca.

Aos missionários portugueses os pajés chamaram cara, cari, cário, que significa “homem branco”. A cor branca é no tupi tinga, também uma palavra pelasga, de cuja raiz vem o nosso termo tingir. A palavra tupi tabatinga significa “preparada de cal e argila branca”. Mais tarde transferiu-se o nome tabatinga à argila dessa cor. A palavra oca significa “casa”, e pertence também à língua fenício-pelasga. No grego mudou-se oka em oeka, oika, oikia; “administração da casa” é, no grego, oiko-no-mia, donde vem a nossa palavra “economia”. Então a palavra tupi tabatinga significa “casa branca”; mas cari-oca é a “casa dos brancos”, ou seja, dos cários.

É o próprio e insuspeitável Teodoro Sampaio, no seu valioso tomo O Tupi na Geografia Nacional, na página 218, declaradamente a vir ao encontro do que aqui se expõe, afirmando e defendendo:

“CARAY. O apelido do homem branco, europeu, entre os tupis significando o mesmo que carahyba, de que é forma contrata. CARIBOCA. Tirado ou precedente do branco, do europeu. CARIIÓ. O procedente do branco, europeu. CARIOCA. O mesmo que carió ou cariyó. O mestiço descendente de branco. Pode vir ainda de cary-oca, significando a casa do branco, a residência do europeu. CARIOS. Cariós ou caryós, grafia usada por autores espanhóis para o nome da nação tupi-guarani, habitando a costa do Brasil, de Cananeia para o Sul. PIAGA. É o feiticeiro ou pajé entre os caribas.”

Esses “cários ou cariocas brasileiros” serão, na verdade sem preconceitos, antropológica, arqueológica, histórica e filológica, os descendentes dos homens brancos que emigraram para o Brasil, nos navios dos fenícios, na época de 1100 a.C. em diante. A pátria desses emigrantes eram os países reunidos na confederação dos povos cários, que abrangia quatro divisões:

1.ª) Caru, que se estendeu desde o Promontório Carmelo até ao Monte Taurus; a grande metrópole desse país era a cidade de Tur (respectivamente, Tiro). Os gregos denominaram esse país de Fenícia, e hoje é chamado Síria[13].

2.ª) Cari, que abrangia a costa meridional da Ásia Menor, à qual os gregos chamaram Kilikia, respectivamente, Cilicia. Uma das maiores cidades dessa província era Taba, que lembra Taba-jaras, podendo significar “senhores de Tabas” ou “cidadãos de Taba”. Este último sentido parece mais razoável. Perto da cidade de Taba passa o rio Pinaré, o que lembra o rio Pinaré (não Pindaré) do Maranhão, onde o lago Maracu mostra ainda hoje as linhas de estejos petrificados, que parecem ser os restos dos pressupostos estaleiros dos fenícios.

3.ª) Cara ou Cária, com a esplêndida capital Hali-Car-Nassos, cuja situação geográfica rivalizava em beleza com a do Rio de Janeiro, onde os cários terão fundado uma colónia com o nome entusiástico: “Dos Cários Casa” (Cari-oca).

4.º) Caramania foi o vasto hinterland que se estendia atrás de Caru e Cari, até ao Eufrates. A capital dessa província era Carmana, e terá sido daí que supostamente vieram os pequenos comerciantes (caramanos, mas também caramaras) indo estabelecer-se no interior do Brasil. Se assim foi, eles terão viajado nos navios fenícios e neles estará a origem do nome Carcamano.

Creio deter autoridade e autonomia bastantes para decidir do que devo e não devo dizer ou escrever ante o muito que já foi dito e escrito por outrens, não raro com equívocos sobre imprecisões cimentados em plágios de outros plágios, tornando-se quase «normal» ou vulgar a ocultação das fontes consultadas. Assim, considero chegado o momento de levantar a ponta do véu da História Secreta do Brasil Fenício. O que irei descrever será em forma de narrativa muitíssimo sintetizada, mas com todas as linhas gerais dessa odisseia mais que histórica, iniciática, sem deixar de reiterar o apelo a alguns e algumas a que doravante desistam do péssimo hábito de plagiar o alheio, tomando por seu o que a outrem pertence.

Segundo o Professor Henrique José de Souza (a quem os seus pares consideram o Venerável Mestre JHS), a flotilha que foi armada para trazer o imperador e a imperatriz (sua jovem segunda esposa) depostos, Badezir ou Baal-de-Zir e Anazir ou Bel-de-Zir, o príncipe e a princesa, irmãos gémeos, Yet-Baal-Bey e Yet-Baal-Bel, assim como os sacerdotes, elementos da corte, do exército e do povo que lhes ficaram fiéis, e algumas dezenas de escravos núbios, era composta de seis navios: no primeiro vinham Badezir e Anazir ou Anamin, os dois filhos gémeos, oito sacerdotes, cujo primeiro ou oitavo, como sumo-sacerdote, tinha o nome de Baal-Zin (“o deus da Luz e do Fogo”, que iria dar início à fusão monádica Fenício-Inca-Tupi), e o segundo com o nome de Aza-Gadir (“o escriba de Gades”), seu assistente, dois escravos núbios fiéis aos seus senhores, os príncipes e a marinhagem, acompanhada de soldados que, em princípio, deveriam voltar depois à Fenícia… Nos outros navios, além de gente do povo vinham mais 49 militares de patente superior, também expulsos do país por terem ficado ao lado do rei Badezir e dos seus dois filhos mais velhos… e mais 222 que, como Assureths, a bem dizer, constituíam a elite desterrada da nação fenícia – os Macários ou Makaras, em sânscrito – e que iriam originar o nascimento da Raça de Tupan, a Tupi, ao mesmo tempo que, direi assim, “cartografavam” os pontos nevrálgicos dessa parte do continente americano, assinalando os que viriam a ser os Sistemas Geográficos de São Lourenço (Moreb), Itaparica (Airu) e Xavantina (Ararat)[14].

Esses 222 Makaras organizados em torno de seus 7+1 sacerdotes dirigentes, os Piagas, deram origem à Ordem dos Macários, ou simplesmente Ordem dos Cários, cuja função principal era darem protecção à família real e organizarem a geração de 777 criaturas que pudessem tornar-se a semente privilegiada da futura 7.ª Sub-Raça Ariana. O seu emblema configurava-se da seguinte maneira:

Para conseguirem os seus propósitos, firmaram um Sistema Geográfico Atlante-Ário na vasta região arredor da baía de Guanabara, na zona de Niterói (Nish-Tao-Ram, o “Caminho Iluminado pelo Sol”), tendo desembarcado na praia de Caraí (ou Cária), o qual hoje é conhecido como Sistema Geográfico de Teresópolis, cujo centro “geodésico” na Serra dos Órgãos ficou assinalado no maciço rochoso “Dedo de Deus” (Aca-Bangu). Terá dirigido a sua fundação o Manu ou Legislador cário-tupi que hoje se conhece como Mora Moratin, o qual e com o decorrer do tempo, a partir do reduto central desse Sistema Geográfico, conduziu o seu povo para a região de Ayuruoca, onde seriam lançadas as bases do actual Sistema Geográfico Sul-Mineiro. Esse primitivo Sistema Geográfico Atlante-Ário constituía-se das seguintes cidades:

8.ª Cidade – TERESÓPOLIS (Charma)
7.ª Cidade – NITERÓI (Nishtaoram)
6.ª Cidade – NOVA FRIBURGO (Kariçura)
5.ª Cidade – CANTAGALO (Smurga)
4.ª Cidade – SÃO FIDÉLIS (Nanara)
3.ª Cidade – PARAÍBA DO SUL (Balabana)
2.ª Cidade – MARQUÊS DE VALENÇA (Melkzir)
1.ª Cidade – BARRA DO PIRAÍ (Numbal)

Foi a partir desse Sistema Geográfico que o imperador fenício Badezir constituiu dois Governos, no que é hoje o actual Brasil (que dele herda o nome): o Temporal, abrangendo todo o Norte, desde o Amazonas até à Bahia, dirigido por ele próprio, e o Espiritual, com jurisdição sobre a parte Sul, que, limitando-se com a parte já citada, estendia-se até onde hoje se denomina Rio Grande do Sul, o qual era chefiado pelo seu filho Yet-Baal (“o deus branco”).

Ficava constituído o Sistema Geográfico de Teresópolis, Ário e Atlante, isto é, constituído dos fenícios ou cananeus desterrados à vanguarda, com os autóctones que os seguiam e de que veio a nascer a raça vermelha dos tupis, já de si descendentes dos caraíbas atlantes, ou seja, daqueles que atravessando o Mar das Caraíbas, na Época Atlante terra firme, em fuga da catástrofe continental, foram estabelecer-se na Alta Amazónia, donde depois foram descendo e, por diferenciação, deram origem às várias tribos, aos vários povos indígenas do Brasil. Esses indígenas que se encontram hoje, esses selvagens, são assim remanescentes degenerados de raças que tiveram grandes conhecimentos em outras épocas, como demonstram as suas elaboradas e singulares tradições religiosas que, na verdade, estão em desacordo total com o primitivismo dos seus hábitos.

Disse “ficava constituído” mas não firmado esse Sistema Geográfico, por ter sido interrompido pelo rompimento da tessitura psicofísica entre o Templo da Pedra da Gávea, no actual São Sebastião do Rio de Janeiro, ex-capital da República Brasileira, e o Centro Espiritual em Teresópolis, situada também no Estado carioca a norte da sua capital, na microrregião serrana.

Com efeito, além dos dois filhos primogénitos Badezir tinha mais outros cinco, três dos quais acompanharam o pai no desterro apesar do ódio que sentiam pelos irmãos mais velhos por ciúmes deles serem os preferidos de seu pai, e foram quem instigou o povo exilado à revolta conta a política estabelecida do velho monarca, desencadeando-se uma réplica fatal da anterior revolução político-social e militar sucedida entre os de Tiro e Sidon. Foi por essa altura, diz a narrativa teosófica, que a chamada “sombra astral” do Luzeiro de Marte, chamada pousou a sua Mão de Diabo no terceiro filho do imperador desterrado, passando a agir por ele, e foi assim que passou à História Iniciática e Secreta do Brasil com o nome de Mano Satanas, apodo perpetuado nas crónicas dos navegadores árabes.

A influência maléfica de Mano Satanas insinuou-se no seio do povo e inclusive de alguns mais notáveis da corte religiosa e militar de Badezir. Geraram-se divisões, houveram contendas, a anarquia e o desespero começaram a campear, foram apagando-se as luzes de civilização no retorno ao estado de selvagismo. O ponto crítico decisivo da ruptura e fracasso total desse projecto sinárquico de uma Novis Phoenicia, de uma Hy-Brazil Delenda Phoenicia, deu-se com o seguinte episódio:

Vindos numa barca de Niterói para o Rio de Janeiro, os Gémeos Espirituais Yet-Baal-Bey e Yet-Baal-Bel, acompanhados de dois escravos núbios que lhes eram apaixonadamente fiéis, juntamente com o seu tutor espiritual Azagadir, em plena baía de Guanabara, as forças maléficas de Mano Satanas desencadearam uma súbita e terrível tempestade, tendo a barquinha naufragado perecendo os dois irmãos e os escravos, salvando-se a custo o sacerdote que recolheu os corpos afogados.

Adianta a narrativa teosófica que depois os príncipes e os escravos foram mumificados e recolhidos no interior da Pedra da Gávea, então usada pelos fenícios como mirante, já de si se sabendo que a gávea é o mirante dos navios. No interior do rochedo colossal haviam escavado um espaço enorme destinado a funções de templo, que assim se transformou em túmulo. Templo-Túmulo ou Metaracanga foi a Pedra da Gávea, durante largos séculos assinalando o pesado débito ou karma de toda a cidade condenada e ainda assim maravilhosa do Rio de Janeiro.

Mano Satanas, o grande culpado da tragédia, por sua vez foi condenado pela Lei Suprema a que o corpo de sua alma de mago satânico ou Nirmanakaya Negro ficasse encarcerado vivo no interior do Paú Assu, vulgo penedo do Pão de Açúcar, na verdade o “Cárcere do Assura”.

Essa situação manteve-se até cerca de 1938, diz a Tradição Iniciática, ano em que a Grande Fraternidade Branca dignificou o Posto da Glória e a Pedra da Gávea, ambas no Rio, ordenando pouco depois que todo o recheio fúnebre no interior dessa última fosse transladado para um outro Templo no seio da Serra do Roncador, onde também está o túmulo de Badezir e esposa, esta falecendo pouco depois da sua chegada aqui, vítima de febre tropical, e aquele, por desgosto, poucos anos após a morte dos filhos mais amados.

O Posto da Glória está hoje assinalado e velado por uma igreja cristã, no topo de um outeiro lateral ao da Gávea, por onde se penetra por vasta galeria subterrânea, inicialmente descendo em caracol, levando ao seio profundo e quiçá jucundo da Terra, à região que as tradições secretas do Oriente chamam Badagas e as sul-americanas Sedotes.

O Outeiro da Glória da cidade do Rio de Janeiro, foi outrora denominado Morro do Laripe. A igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro aí construída (1714, finais do século XVIII) pela Irmandade do mesmo nome, deve-se ao culto do Orago que surgiu no século XVII.

Devo abrir um parêntesis para repetir a afirmação do respeito pessoal pelas ideologias e crenças alheias, nisto tendo a ver com os restos renitentes do chamado Karma Atlante do que é hoje o Brasil: nas regiões litorais do Rio de Janeiro e da Bahia, maioritariamente, assim como no Mato Grosso, Goiás e no litoral Amazónico, minoritariamente, campeiam as crenças e práticas animistas afro-ameríndias, avultando o psíquico e rareando o mental, ajuntando grande número de adeptos das classes média e baixa, incluindo alguns bons esoteristas parecendo terem começado bem e seguirem mal, alguns inclusive revestindo-se de “poses e títulos imaginários”, abraçando fantasias oníricas da chamada  “arqueologia fantástica” até subindo escarpas alterosas ou adentrando cavernas perigosas, em pretensões inocentes e desapuradas, podendo resultar, e não raro resulta, em acidentes graves e até fatais, isso tanto por falta de disciplina como de informação credível o que parece desaguar na pretensão falaz de “pôr-se o carro à frente dos bois”, isto é, pretender dar saltos por cima do curso natural da Evolução. Mais que não é de mais: ninguém entra em casa alheia sem ter sido convidado. Digo isto como pretexto de apelo à boa consciência a fim de se evitarem, doravante, mais tragédias psíquicas e físicas, pessoais e colectivas, e assim mesmo reiterando o devido respeito pessoal pelas crenças alheias, mesmo sendo afro-lemurianas ou no mínimo afro-atlantes, pois o que importa é o Homem e não aquilo que ele acredita e pratica, seja por que motivo for, desde a ingenuidade à alucinação… Sim, reitero o Mundo Iniciático ou Espiritual nada tem em comum com “psiquismos populares” e “ocultismos divinatórios”, isentos de Ordem e Regra de Tradição. Peço as maiores desculpas se com isto ofendo alguém crente de alguma crença mas tal não é a minha intenção, tão-só “separar o trigo do joio”.

Para finalizar esta história retirada aos pergaminhos dos Anais da Teosofia Brasileira: com a morte prematura da família imperial desterrada, os restantes componentes da sua comitiva abandonaram o projecto de Badezir, abandonaram mesmo a Taba Hy-Brazil. Os que restaram fizeram-se ao mar de largo regressando ao Médio Oriente, onde viriam a fundar o Sistema Geográfico de Jerusalém, de maneira a criar condições humanas e sobretudo espirituais de um dia poderem regressar a essa do Futuro.

Para trás, deixaram as sementes monádicas, frutificadas na Raça Tupi, de que se serviria Mora Moratim, no ano 1000 d.C., para fundar o Sistema Geográfico Sul-Mineiro, indo projectar a sua influência até ao Norte, de maneira a fundi-las com as sementes Incaicas, dando origem à Raça Inca-Tupi como “argamassa monádica” do Futuro Brasileiro que, afinal, já desponta na alvorada dos Tempos.

NOTAS

[1] Aluysio Robalinho, Bernardo Ramos, o “Champollion Brasileiro”. In revista Dhâranâ, Ano 76, Edição 236, Agosto 2000.

[2] Jornal A Crítica, Manaus, de 4, 6, 7 de Abril de 2000.

[3] A propósito, lembro que os fenícios acreditavam na vida além-túmulo e que para a mesma, tal como os egípcios faziam, levavam o “duplo” (astral) dos objectos que lhes foram mais caros durante a vida terrena. Sepultavam o morto com os seus objectos de uso corrente, tais como lâmpadas, vasos e joias. Para evitar os costumazes violadores de sepulturas, procuravam-se lugares escondidos e abrigados, como poços profundos e cavernas. Os fenícios adquiriram o hábito, certamente por influência egípcia, de mumificar pelo menos os cadáveres das pessoas mais importantes. Não é possível dizer com certeza a época em que tal costume foi introduzido na Fenícia, pois as condições climatéricas não favoreceram, como no Egipto, a conservação indefinida das múmias. Cf. Mário Curtis Giordani, História da Antiguidade Oriental, 10.ª edição, Editora Vozes, Ltda., Rio de Janeiro, 1969.

[4] Ludwig Schwennhagen, Antiga História do Brasil (De 1100 A. C. a 1500 D. C.). Tratado Histórico. Segunda edição. Introdução e notas de Moacir C. Lopes. Livraria e Editora Cátedra Ltda, Rio de Janeiro, 1970.

[5] A Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo, Vol. V, pág. 91 e segs., Lisboa, 1807.

António Pereira de Figueiredo (n. Mação, 14.2.1725 – m. Lisboa, 14.8.1797), era filho de António Pereira e Maria de Figueiredo, cujo apelido veio a adoptar quando abandonou o hábito religioso. A 1.4.1736 entrou no Colégio Ducal de Vila Viçosa, onde aprendeu Latim, Latinidade e Música. Em 1743, passou para Santa Cruz de Coimbra. No ano seguinte, veio para Lisboa e ingressou na Casa do Espírito Santo, da Congregação do Oratório (S. Filipe Néri), onde estudou Filosofia e Teologia e se aperfeiçoou em Latim e Latinidade. Em 1757, grave doença obrigou-o a seguir para o Norte. Esteve em Viseu e no Porto, e daí, já restabelecido, em 1759 regressou a Lisboa, onde na Casa Real das Necessidades, da referida Congregação, ensinou Teologia, Latim e Retórica. Em 1761, quando estavam cortadas as relações entre Portugal e a Santa Sé, Figueiredo tomou a defesa do Regalismo, da Corte Portuguesa, contra o Papismo, a Cúria Romana, dando-se de ligações à Maçonaria Bávara por intermédio do Marquês de Pombal a quem apoiou. Como tinha a confiança deste, foi eleito deputado na Real Mesa Censória, à data da sua criação (1768), e no ano seguinte provocou o maior dos “escândalos”, que até hoje a Igreja não o perdoou e por isso o ostraciza: abandonou abruptamente o hábito religioso para se casar com uma mulher com quem convivia desde alguns anos. E para piorar as coisas, dizia-se que ela era luterana! Após abjurar ao sacerdócio, passou a exercer as funções de oficial maior de línguas na Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Em 1779, entrou para a Academia Real das Ciências, recentemente instituída. Nos últimos anos de vida, foi tomado de forte neurastenia, pelo que em 1785 se recolheu, a seu pedido, como hóspede à Real Casa das Necessidades, que deixara anos antes. Esmoler e caritativo, Figueiredo era dotado de invulgar inteligência e possuía vasta cultura. Latinista de renome europeu, provocou uma revolução no ensino, com o seu Novo Methodo de grammatica latina (editado em Lisboa, 1752), adoptado no Reino de 1759 a 1834, ano da extinção das ordens religiosas em Portugal. Músico, devem-se-lhe motetos, lições para os ofícios da Semana Santa, etc. A sua obra musical tem interesse histórico por reflectir “a luta travada entre a Escola Napolitana”, que entre nós ia ganhando terreno, “e a tradição polifónica que, embora progressiva, predomina desde o século XVI até então” (in Mário de Sampayo Ribeiro). Mas o que mais lhe perpetuou a memória foi a tradução portuguesa da Bíblia segundo a Vulgata Latina (publicada em 17 volumes, Lisboa, 1783-1790), obra de grande mérito sob os pontos de vista literário e filológico. As notas exegéticas, contrárias ao parecer oficial da Igreja, foram, porém, criticadas por outro Oratoriano (in Reflexões theologicas). E em algumas edições posteriores, as notas condenadas foram até suprimidas. Imbuído de mentalidade regalista, à qual não escaparam até vários bispos da época, Figueiredo viu algumas das suas obras condenadas pela Congregação do Índex (especialmente as teses De suprema regnum e a Analyse da profissão de fé do S. P. Pio IV). A sua formal retratação que chegou a afirmar-se, foi desmentida por um sobrinho (in A Instrucção Pública, IV).

[6] Cândido Costa, As Duas Américas. Antiga Casa Bertrand, José Bastos – Mercador de Livros, Lisboa, 1900.

[7] Arthur Franco, A Idade das Luzes. Wodan Editora Ltda, Porto Alegre, 1997.

[8] Teodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional. 5.ª edição. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1987.

[9] Teodoro Sampaio, ob. cit. A 1.ª edição desta obra data de 1901. As 2.ª, 3.ª e 4.ª, respectivamente, de 1914, 1928 e 1955.

[10] Esteban Quatremére, Investigaciones históricas y criticas sobre la lengua y la literatura del Egipto. Paris, 1808.

[11] Heródoto, The History, Book I. Enc. Britannica, 1952.

[12] João Antenógenes Prudêncio da Costa, Purpúreo: as histórias do nome do Brasil. Edição do autor, São Paulo, Setembro de 2002.

[13] A Fenícia tinha o seu epicentro no norte da antiga Canaã, ao longo das regiões litorais dos actuais Líbano, Síria e norte de Israel. Caindo sob o domínio do Império Romano, a Fenícia foi incorporada à província romana da Síria que, curiosamente, recebeu esse nome pela corruptela da pronúncia grega do nome Tiro. Os seus habitantes eram tírios, por conseguinte, sírios. E a região, Síria, como é designada até hoje.

[14] Comunidade Teúrgica Portuguesa, Apostila 66 da Série Interna de Integração ou do Munindra.

Onde morreu D. Sebastião, Marrocos ou Limoges? – Por Vitor Manuel Adrião. Terça-feira, Nov 23 2021 

Alcácer-Quibir, Marrocos, 4 de Agosto de 1578. Dois exércitos em confronto. De um lado, gozando do apoio otomano, o poderoso exército saadiano comandado pelo sultão Mulei Moluco (que os portugueses alcunhavam de “Maluco”, como seja Abu Maruane Abdal Saadi I), composto por 50 a 60.000 homens de infantaria e cavalaria fortemente equipados, cuja artilharia contava com 26 canhões de grande porte[1]. Do outro lado, D. Sebastião I de Portugal liderava entre 15 a 20.000 homens mal equipados, famintos, sedentos e cansados na marcha pelo deserto adentro no pino do Verão, contando ainda com 36 peças de artilharia, várias delas tendo ficado inutilizadas após o primeiro disparo. A maior parte das forças portuguesas compunha-se de recrutados de última hora em todo o país, de mercenários ou aventureiros d´armas de várias nacionalidades, e ainda o melhor da nobreza nacional, cuja maioria ajuizada acompanhara contrariada a imponderada empresa do monarca[2], antevendo o insucesso político-militar dessa cruzada aventureira e o perigo que representava para a independência nacional com o esgotamento do exército e do erário público.

D. Sebastião não dava ouvidos a ninguém, vivia introvertido num mundo imaginário repleto de quimeras aventurescas há muito sonhando encetar cruzada a África, derrotar os infiéis saadianos e, quiçá, alcançar a Terra Santa, reconquistar Jerusalém e assim restaurar o empório da Cruz. Sonho delirante em breve tomando a forma de perdição nacional, quando o sultão Mulei Abu Abdala Mohammed Saadi II solicitou ajuda militar a Portugal para recuperar o trono que seu tio Mulei Moluco havia tomado. D. Sebastião abraçou a oportunidade, aprovou a Jornada de África e avançou com o seu projecto de cruzada, contra os conselhos prudentes da maioria da corte e do clero, inclusive de seu tio Filipe II de Espanha, que ainda assim enviou uma pequena força militar que fez parte do terço de espanhóis e italianos.

A batalha resultou na derrota portuguesa, mas também das pretensões otomanas de invasão da Europa pelo sul de Espanha. O combate intenso durou quatro horas, sendo derrotados os exércitos de D. Sebastião e de Mulei Saadi II, com quase 9.000 mortos e 16.000 prisioneiros, incluindo grande parte da nobreza portuguesa, de que talvez 100 sobreviventes tenham escapado, com custo, do local da batalha. D. Sebastião desapareceu liderando uma carga de cavalaria contra o inimigo, e também os dois sultões que se opunham morreram no combate, motivo deste ter ficado conhecido como Batalha dos Três Reis ou Batalha de Oued al-Makhazin, nome do rio Mocazim junto ao campo de batalha[3].

Adivinhava-se o desastre militar desde o início do combate. As forças marroquinas começaram investindo contra os cavaleiros e infantes portugueses, parados aguardando ordens para avançar, sendo dizimados a tiros de mosquetes e canhões enquanto os chefes de terços imploravam ao rei que desse ordem para atacar. Mas este calado, ausente, parecia deslumbrado com o espectáculo das manobras militares, e cada um por si foram eles a tomar a iniciativa de investir. Quando D. Sebastião caiu em si já era demasiado tarde: a investida portuguesa perdera o impulso inicial, os seus flancos estavam comprometidos pelo ataque da cavalaria saadiana que impediu o recuo estratégico português e das forças de Mulei Saadi, este morto quando atravessava o rio tentando escapar. Perante a derrota inevitável, D. Sebastião recusou os conselhos dos nobres oficiais-de-campo para que se rendesse, dizendo-lhes: “Senhores, a liberdade real perde-se com a vida”, e em resposta ao desabafo de D. João de Portugal, “que pode haver aqui outro que fazer, senão morremos todos?”, replicou: “Morrer sim, mas devagar!”[4].

E num impulso desesperado, esporeou o cavalo gritando: “Eia, eia, a eles!”, lançando-se na refrega seguido dos seus nobres e cavaleiros resultando no morticínio certo que terá sido total.

Contudo, há um documento anónimo do século XVII contrariando que o rei português tenha morrido em Alcácer Quibir. Trata-se da Relação da Batalha de Alcácer que mandou um cativo ao Dr. Paulo Afonso, onde diz o seguinte:

“Neste tempo vendo El-Rei que estava na vanguarda o seu campo desbaratado, se veio recolhendo pela banda do Duque de Aveiro, e o seguiu alguma gente de cavalo e a pé, cuidando que ia fazendo uma ponta para volver sobre os mouros, viu o campo já tão desbaratado que se retirou. Durou a batalha quatro horas sem se declarar a vitória.”

Nada mais se informa sobre o que ocorreu depois de terminarem os combates. O documento apresenta de seguida um esquema da disposição das tropas de D. Sebastião, tendo previamente o cativo descrito detalhadamente a sua composição, apontando D. Duarte de Menezes como “Mestre de Campo”[5].

Também Manuel de Faria e Sousa, historiador português seiscentista, reportou diversos testemunhos, como o de D. Luís de Brito Nogueira que acompanhou os últimos momentos do rei, que afirmavam tê-lo visto à distância no final da batalha sem ser perseguido[6].

D. Sebastião fora avistado perto do rio Mocazim, acompanhado de vários infantes e cavaleiros para onde se retirara, ou seja em termos de estratégia militar, recuara, devendo ter deparado com a via de fuga bloqueada pelo inimigo. Estará nisso a razão de lhe terem aconselhado a rendição e o último acto desesperado de lançar-se nos braços da morte afrontando o vultuoso adversário que o terá trucidado.

O espaço do campo de batalha transformou-se num lugar macabro repleto de milhares de mortos e feridos. O rei português desaparecera no combate. Os relatos dos autores portugueses não são unânimes: por uma parte, várias testemunhas terão afirmado ter ele conseguido escapar apesar de ferido; por outra parte, como na Crónica de frei Bernardo de Brito, é dito ter-se encontrado o corpo de D. Sebastião ferido cheio de sangue e que alguns alarves acabaram por o matar. Segundo Maria Lima Augusta Cruz (ob. cit.), “uma conclusão a tirar de todo este conjunto de relatos da batalha de Alcácer-Quibir é que nunca nenhum sobrevivente português declarou ter visto morrer o rei”. Ainda assim, a historiadora adianta que o verdadeiro cadáver do rei português foi encontrado no campo de batalha e reconhecido pelo seu criado de guarda-roupa, testemunho confirmado por um grupo de cativos portugueses – D. Duarte de Meneses, o capitão de Tânger, o corregedor Belchior do Amaral, D. Constantino de Bragança, D. Nuno Mascarenhas e João Rodrigues de Sá – que confirmaram a identidade do cadáver[7].

Outras testemunhas árabes, como a do autor anónimo da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D´El-Rei D. Sebastião, citado por Sales Loureiro[8], afirmaram, contra todas as evidências, que o cadáver de D. Sebastião fora sepultado em Tânger e negociado com os marroquinos o seu resgate. De outro modo, o corpo do rei português fora recolhido no campo de batalha na presença do capitão Belchior do Amaral e alcaide Mohamede Taba, sendo o cadáver transportado dentro de um caixão de madeira. Mas outras fontes portuguesas defendem que o rei português repousava em terras de África entre milhares de cadáveres.

A confirmação oficial da morte de D. Sebastião foi dada por Belchior do Amaral numa carta datada de 24 de Agosto de 1578, vinte dias depois da batalha, e quando essas notícias chegaram a Portugal de imediato estimularam dúvidas e semearam teorias desencontradas sobre o destino do jovem rei.

As dúvidas aumentaram sobre a morte do rei quando, ainda nesse ano, o cardeal D. Henrique – que estivera na batalha de Alcácer-Quibir, fora feito prisioneiro e solto após pagar a sua libertação – realizou as cerimónias fúnebres sem corpo presente. Seria D. Filipe II de Espanha a realizar novas exéquias em Lisboa, num cortejo feito com todo o alarido, com a presença do que dizia serem os restos mortais do seu sobrinho entretanto devolvidos pelas autoridades marroquinas[9].

Com efeito, em 10 de Dezembro de 1578 foi entregue às autoridades portuguesas de Ceuta o corpo muito desfigurado, quase ou mesmo irreconhecível, do que diziam ser de D. Sebastião, que foi deposto na igreja do Mosteiro da Santíssima Trindade dessa antiga praça portuguesa, como consta no Auto de Entrega do Corpo de D. Sebastião existente no Arquivo Geral de Simancas (Secção Estado, Leg. 396), Valladolid:

“Nós Dom Leonis Pereira Capitão e governador de Ceuta, frei Roque, e Dom Rodrigo de Meneses que abaixo firmamos nossos nomes damos fé e verdadeiro testemunho que André Gaspar Corço nos entregou o corpo del Rei Dom Sebastião Nosso Senhor (que Deus haja) quarta feira dez de Dezembro deste presente ano de mil quinhentos e setenta e oito, na porta desta Cidade às dez horas da manhã, dizendo as palavras seguintes na dita entrega. Eu André Gaspar Corço, Entrego o Corpo da Majestade del Rei Dom Sebastião Rei que foi de Portugal que Deus haja, ao muito Reverendo Padre Frei Roque do Espírito Santo, e aos Senhores Dom Leonis Pereira Capitão e governador desta Cidade de Ceuta, e a Dom Rodrigo de Meneses por mandado del Rei Muley Hamete, o qual me havia concedido o dito Real Corpo para que o apresentasse à Católica Majestade Filipe II de Espanha com tanta Liberalidade com quanta afirmou por juramento em sua lei que fizera o mesmo se o tivera vivo em prisão. E chegando uma carta da Católica Majestade, e outra da Majestade del Rei de Portugal em que lhe pediam o quisesse resgatar para o levar a Portugal me mandou que não o levasse a Castela, como primeiro me havia mandado, se não que eu o trouxesse a esta fronteira de Ceuta e nela o entregasse solenemente (como ao presente o entrego) toando por testemunho que o dito Muley Hamete concedeu e apresentou livre e graciosamente sem nenhum interesse este Real Corpo à Majestade del Rei de Portugal, a intercessão e petição da Majestade Católica del Rei Dom Filipe o qual depois de ser entregue, se trouxe com muita solenidade ao Mosteiro da Santíssima Trindade onde agora está: feita em Ceuta a dez de Dezembro de MDLXXVIII. Rubricam: Dom Leonis Pereira, Dom Rodrigo de Meneses, Frei Roque do Espírito Santo. Nós que abaixo e atrás assinamos viemos acompanhando o dito Real Corpo e somos presentes na entrega dele e como testemunhas assinamos no mesmo dia e a mando desta. Rubricam: Dom Miguel de Noronha, Dom Duarte de Castelo Luís César, Dom Jorge de Meneses.”

O reconhecimento do corpo como sendo de D. Sebastião foi feito procurando sinais naturais que o mesmo possuía[10], tendo posteriormente vários nobres admitido que ele estava tão desfigurado e mutilado que era impossível comprová-lo. Mas o interesse de Estado tinha força de lei e interessava a D. Filipe II calar as vozes dos patriotas portugueses que protestavam D. Sebastião não ter morrido em Alcácer-Quibir, tão-só desaparecera, que o monarca espanhol tinha pressa em apossar-se do trono português e das suas praças em África, o que de facto aconteceu. Convenientemente tinha um corpo para apresentar ao geral, mesmo assim não calando as suspeitas que cresciam indo tornar-se o mito sebástico maior que o rei Sebastião. A carta descrita acabava mostrando-se forçada, interesseira, tanto que a Ordem da Santíssima Trindade, encarregada de resgatar cativos em África, não foi tida nem havida e nem ouvida no caso da intercessão dos trinos na entrega dos despojos mortais do malogrado rei, em cujo mosteiro os mesmos ficaram quatro anos. Seria mais plausível admitir que ele desaparecera entre os milhares de mortos mutilados na sangrenta batalha e que por aí ficara, mas os interesses geopolíticos em jogo tinham força de lei, repito.

Em 1582, o rei ocupante de Portugal mandou trasladar de Ceuta para Lisboa os pressupostos restos mortais do seu real sobrinho. Chegou de barco ao porto de Faro (enquanto na ida a frota ancorou na baía de Lagos), fazendo-se a restante jornada por terra na companhia de oito nobres portugueses que tinham sido seus companheiros de armas em Alcácer-Quibir, convocados para o efeito. O préstito fúnebre teve a direcção do vedor Francisco Barreto de Lima e era composto pelos seguintes fidalgos: D. Francisco de Castelo Branco, Jerónimo Moniz de Luzinhano (Lusignan), D. João de Castro (sebastianista neto do grande vice-rei da Índia), Ruy Lourenço de Távora, Henrique Correia da Silva, D. Lucas de Portugal, D. Lourenço de Almada e Diogo da Silva[11].

Nesse mesmo ano de 1582, com o maior aparato convocando toda a Lisboa, o pressuposto corpo de D. Sebastião entrou no Mosteiro dos Jerónimos, em Belém, em cujo transepto da igreja foi sepultado. Em 1682, foi colocado no seu actual jazigo, na capela direita do mesmo transepto, onde até hoje se encontra, na qual se colocou uma lápide em latim, da autoria do poeta Diogo Bernardes, cuja tradução é a seguinte: “Se é vera a fama, aqui jaz Sebastião, / Vida nas plagas de África ceifada. / Não duvideis de que ele é vivo, não! / A morte deu-lhe vida ilimitada”.

A “vida ilimitada” do mito que ele já era ainda em vida, vizinho e conviva do messianismo hispânico que o faria confundir com o seu homólogo São Sebastião em diversas ocasiões, de maneira que a Batalha de Alcácer-Quibir viria a era ponto de partida para foros providenciais de Advento do próprio “Rei Pessoa” corporificando o “Rei Mito” em presença regressada da Ilha de Bruma em alguma manhã de nevoeiro, quiçá desembarcando no cais das colunas do Terreiro do Paço de Lisboa. Alcácer-Quibir foi o ponto do crescimento sebastianista incorporando o anterior messianismo. Como ainda em vida do jovem monarca os interesses do seu tio Filipe II ingeriam nos nacionais, esse foi o fermento com que se fez e cresceu depois o “messianismo nacional”, não tanto sebástico mas mais sebastianista. O sentido universal de Parúsia e Avatara atribuído ao Cristo, veio a ser contraído nas inflamações de “patriotismo transcendental” atribuindo a peanha nacional de indefinido “Quinto Império” ao totalitarismo realengo de um desejado rei encoberto, sem mais apuramento nem aprofundamento, crença nacionalista perdurando até à actualidade que recrudesce nos períodos de crises sociopolíticas.

Alcácer-Quibir tornou-se “chão sagrado” para os saudosistas adeptos do rei desaparecido ou “em dormência”, marco eterno do Império Português em África que recebeu civilização da Raça Lusa, o que não está incorrecto nas premissas amplas mas só nas intenções restritas. Isto levou a que no campo da Batalha de Alcácer-Quibir, junto à aldeia de Douar Souaken, fosse levantado um Memorial no ano de 1939, em pleno Protectorado Espanhol, por um grupo de universitários de Coimbra. Nele lia-se: “Em honra do Rei de Portugal Dom Sebastião, símbolo da Raça Lusíada, estímulo eterno dos moços sequiosos de ideal e votados à tarefa peregrina de engrandecer, num sonho de civilização, o Império Português” (em foto da Bibliothèque Général et Archives de Tetouan). O monumento seria depois destruído por patriotas marroquinos e hoje só sobram os seus restos, tendo, no entanto, levantado um outro em memória dos três reis tombados.

D. Sebastião nascera e crescera criança de aspecto delicado e frágil, acentuado pelos cabelos louros e a brancura da pele, diz Maria Augusta Lima Cruz (ob. cit.). Aos nove anos de idade foi afectado por problemas de saúde, falando-se em indisposição de rins, e aos doze anos padeceu de febres, tonturas e desmaios, e de “secreções”, colocando-se várias possibilidades para a doença que o afectava, desde uretrite, espermatorreia ou gonorreia, esta última, segundo Harold B. Johnson, da Universidade de Virgínia, transmitida sexualmente por um pedófilo[12], que para o autor seria nem mais nem menos que o seu preceptor e confessor, padre Luís Gonçalves da Câmara, da Companhia de Jesus, ideia de que discordo mas entendo atendendo ao anti-catolicismo norte-americano do referido e ao desconhecimento dos hábitos rígidos, quase ou mesmo castrenses, do clero na corte da época, muitíssimo mais na proximidade e educação do rei. Posso admitir traços de carácter efeminado em D. Sebastião, como também a prodigalidade da sua imaginação doentia como demonstrou diversas vezes, mas daí a ser vítima de pedofilia vai uma distância insuperável. Talvez esses sintomas se devessem à sua excessiva precocidade e abstinência sexual. Nessa altura instalou-se uma discussão tendo por base a convicção de que o rei teria uma vida curta, dividindo-se as opiniões sobre se deveria casar quanto antes, assegurando a descendência dinástica garante da independência nacional, ou se o casamento lhe abreviaria mais a vida[13].

Sem dúvida que a relação entre o educando real e o seu padre mestre foi determinante na formação da sua personalidade, isso independentemente das grandes dificuldades em relacionar-se com as mulheres que D. Sebastião aparentava ter, talvez por preferir ser só um casto e religioso cavaleiro como aqueles que lia sôfrego nos romances da Távola Redonda. Adiou sucessivamente os possíveis casamentos de Estado que lhe foram propostos ao longo da vida, com Isabel de Áustria, Margarida de Valois, Isabel Clara Eugénia e Catarina Micaela, filhas de Filipe II, a filha de Francisco de Médicis, Grão-Duque da Toscana, Maximiliana, filha do Duque da Baviera ou filha do Duque de Lorena.

Também não serve para confirmação de inconfessáveis actos indecorosos a morte do padre Luís Gonçalves da Câmara ocorrida em 1575, provocando grande desgosto em D. Sebastião que lhe tinha afeição quase ou mesmo filial, motivo do seu recolhimento choroso num quarto do Palácio Real de Évora durante três dias, e mais dez dias no Convento Jerónimo de Nossa-Senhora do Espinheiro, nos arredores dessa cidade. Convém também ter em conta que a maioria dos relatos das doenças de D. Sebastião foram feitos convenientemente por D. Alonso de Tovar, embaixador castelhano, que prometera a Filipe II de Espanha nunca abandonar o rei português[14].

Torna-se evidente que esse perturbador controlo, para não lhe chamar ingerência, de Filipe II não podia deixar de incrementar a animosidade já instalada contra a intromissão castelhana em assuntos internos portugueses. No mesmo ano fatídico de 1578 morreu o príncipe D. Carlos, único filho varão de D. Filipe II, situação que colocou o seu sobrinho, D. Sebastião de Portugal, em posição de lhe suceder na Coroa de Espanha, o que fez prever um aumento da já indesejada ingerência castelhana nos assuntos de Portugal.

Como se esperava, as consequências da campanha de Alcácer-Quibir foram catastróficas para Portugal. A maioria da nobreza portuguesa que participou na batalha ou morreu ou foi feita prisioneira, e os bispos e arcebispos nela presentes foram mortos. Para pagar os elevados resgates exigidos pelos marroquinos, o país ficou enormemente endividado e depauperado nas suas finanças. D. Sebastião desaparecera deixando como sucessor o seu tio-avô, o cardeal D. Henrique, falecendo dois anos depois sem deixar descendência. Ocupou o seu lugar D. António, prior do Crato, filho natural do infante D. Luís e neto de D. Manuel I, aclamado rei de Portugal em 1580 mas ficando a sua autoridade confinada a algumas ilhas dos Açores até 1583, gastando a sua fortuna em empreendimentos militares a favor da manutenção da independência nacional, como o da tentativa fracassada do desembarque de tropas nacionalistas ao largo do Cabo de S. Vicente, no Algarve, até que, em 1595, acabou os seus dias exilado no convento grande dos franciscanos de Paris. Não consta da lista dos reis de Portugal.

Com efeito, a disputa do trono português teve vários pretendentes: D. Catarina de Médicis, rainha de França, que se dizia descendente de D. Afonso III de Portugal; D. Catarina, duquesa de Bragança, infanta de Portugal, sobrinha do cardeal D. Henrique; Emanuel Felisberto de Saboia, duque de Saboia, e D. António de Portugal, prior do Crato, ambos sobrinhos do rei; Rainúncio I Farnésio de Parma, filho da infanta portuguesa D. Maria de Guimarães e sobrinho do cardeal-rei; por fim, Filipe II de Espanha, tio de D. Sebastião, que se tornaria Filipe I de Portugal ao ascender ao trono em 1580, período que ficou conhecido como o da crise dinástica.

A história poderia acabar aqui, mas não, antes é aqui que começa o seu enfabulamento com engenhosos argumentos e algum documental, sobretudo de trocas epistolares de fiéis à causa sebastianista: D. Sebastião não morrera em Alcácer-Quibir, conseguira escapar do campo de lide acompanhado de alguns cortesãos e clérigos leais, entre eles o cavaleiro Sebastião Figueira, indo embarcar em segredo e desaparecer das vistas de África. Invés de regressar a Portugal onde era desejado como assegurador da identidade nacional, ademais tendo a forte possibilidade de vir a ser o rei único da Península Ibérica quando ocupasse o trono vacante de Filipe II por falecimento deste, por ser o ascendente mais próximo, contudo o rumor diz ter preferido rumar incógnito para terras estrangeiras: chega à Ilha Terceira nos Açores, talvez para fazer aguada e provisionar-se, e depois toma o rumo de Veneza em cuja cidade dos doges aparece como pessoa pouco faladora e não falando português, mas que alguns portugueses patriotas aí residentes reconheceram pelos seus sinais corporais ser deveras o infeliz rei de Portugal, o “Cavaleiro da Cruz” (da Ordem da Flecha de S. Sebastião, por ele fundada no Algarve)[15]. O rumor tomou proporções tamanhas que o embaixador de Filipe I, por ordem deste, exigiu das autoridades venezianas a sua entrega. Para evitar conflitos diplomáticos assim fizeram, tendo o prisioneiro acabado por confessar chamar-se Marco Tulio Catizone e ser de origem calabresa[16].

Ora, Marco Tulio apareceu em Veneza em 1598, numa época tardia relativa ao período do desaparecimento de D. Sebastião, dizia-se ser este e que fizera o voto de não falar português durante um certo tempo. Foi preso e condenado às galés, mas D. João de Castro (1551-1623), patriota do partido sebastianista então exilado em Veneza, conseguiu a sua libertação. Insistindo o embaixador espanhol, o duque de Médicis fê-lo prender novamente, tendo-o entregue às autoridades espanholas que o enforcaram em San Lucar de Barrameda, província de Cadiz, em 1603[17].

A história também não acaba aí: diz-se que foi entregue às autoridades espanholas um falso Catizone parecido com o verdadeiro, que em vão reclamou a sua inocência. Enquanto isso, o verdadeiro Catizone, que seria D. Sebastião, escapou de Veneza para Florença até que reapareceu na Aquitânia, França, mais propriamente na cidade de Limoges, em cujo convento dos agostinhos encontrou refúgio terminando aí os seus dias, talvez em 1641 ou 1642, já depois da Restauração, segundo Manuel Joaquim Gandra que foi o primeiro a dar esta notícia em Portugal[18], prosseguido por outros que a abraçaram e divulgaram[19].

Manuel Gandra tomou por base da sua teoria um escrito do antiquário Jac-Rémi-Antoine Texier (1813-1859), arqueólogo amador e estudioso da arte monumental de Limoges, cidade onde terá nascido e morrido, e inclusive chegou a deslocar-se à cidade aquitanense na procura de provas da presença do rei português que pressupostamente se escondera nela. Acredita tê-las encontrado… Começa por transcrever parte de uma carta do referido antiquário, suposto abade e conservador da Biblioteca de Limoges, dirigida à Comissão dos Monumentos Históricos de França, a qual não chegou ao destino por morte do mesmo, fazendo parte de um opúsculo editado após o seu falecimento (que Manuel J. Gandra traduziria, com notas e foto suas)[20], onde revela:

“Quando se fizeram escavações na igreja do mosteiro dos Agostinhos de Limoges, que é hoje uma fábrica de porcelana, encontrou-se entre ossadas humanas uma medalha de ouro em volta da qual se lia: Sebastianus primus Portugaliae rex. Esta medalha representava uma estátua pedestre em trajo de monge. Vi-a, examinei-a, quis moldá-la, mas com o pretexto de que dela se obteria um ouro mais puro para pintar a porcelana, não consegui, apesar do preço que propus, obtê-la daquele vândalo, que preferiu fundi-la antes de eu poder tirar-lhe o molde, tal o medo de não poder fazer o que queria.”

Noutra passagem do opúsculo, Antoine Texier esclarece que “a medalha fora encontrada num túmulo de granito, ao lado de um esqueleto muito bem conservado”. Que isso corroborava a tradição local de que na capela de S. Sebastião da dita igreja jaziam os restos mortais de um rei homónimo. Manuel Gandra acrescenta que “os arquivos do Convento de Limoges levaram sumiço durante a Revolução Francesa, inviabilizando o acesso aos documentos que porventura pudessem existir com interesse para esta investigação”.

O dito convento agostinho de Limoges – que antes de ser cidade viu surgir nela, no ano 503, os eremitas de Santo Agostinho, depois constituídos em Ordem[21] – é antes a desaparecida abadia de São Martial (Marcial) fundada por monges beneditinos em 848, no reinado carolíngio de Carlos, o Calvo[22]. Lugar de peregrinação no caminho aquitanense para Santiago de Compostela e cuja enorme cripta continha o sepulcro de São Martial, padroeiro da Aquitânia, seria Carlos o Infante, filho do monarca apontado, aquando foi coroado rei em 855 na igreja do Salvador desta abadia, a consigná-la de real, momento em que a vida canónica se transferiu à vida monástica[23]. A abadia conheceu o auge da sua importância em 1065, quando foi incorporada aos bens de Abadia de Cluny. Em 1535 foi secularizada e depois, em 1791, durante a Revolução Francesa, a municipalidade de Limoges encetou a demolição do edifício, igreja e abadia, completada em 1807. A área foi nivelada e transformada num novo espaço público, a Place de la République, onde surgiu a Fábrica de Porcelana de Limoges estabelecida ainda em 1771 pelo intendente da cidade, Anne Robert Jacques Turgot, barão de Laune, nascido e falecido em Paris (1727-1781). Conhece-se como era a abadia e igreja de São Martial pelas plantas antigas, das quais a mais conhecida é a de 1784 atribuída ao abade Legros[24], que apresentarei mais adiante. Entre 1960 e 1967, durante a construção de um parque subterrâneo para automóveis nessa Praça da República, foram postos a descoberto os restos da capela de São Pedro do Sepulcro e os túmulos de São Martial e seus companheiros, cuja cripta aberta que é um dos mais importantes sítios arqueológicos visitáveis em Limoges, ocupando parte do primitivo espaço abacial que prefigurava ampla cidadela. Fora dela, estavam a sé-catedral de Saint-Etienne, padroeiro de Limoges, a igreja de Saint-Pierre du Queyroix e a igreja de Saint-Michel des Lions, joias monumentais subsistindo até hoje. Os jacobinos republicanos da Revolução Francesa no século XVIII apenas destruíram essa de Saint-Martial, por exclusivas razões de emancipação municipal do regime político-económico até então sujeitado ao domínio secular do abacial da mesma.

O recheio artístico, literário e religioso da abadia de São Martial não desapareceu com ela, foi retirado antes da demolição: a comunidade católica de Limoges transferiu as relíquias dos santos para a igreja vizinha de Saint-Michel des Lions, enquanto outra parte ficaria à responsabilidade da municipalidade e hoje integra o Museu de Limoges; o vastíssimo recheio literário – documentos, plantas, iluminuras e tomos – é conservado na Biblioteca Nacional de França.

A capela de S. Sebastião da igreja real e colegial de São Martial, onde repousariam os restos mortais do autodesterrado rei português homónimo do santo, como revelou Antoine Texier e divulgou Manuel Gandra, reparo não aparecer assinalada em qualquer das plantas antigas do desaparecido imóvel; elas assinalam todas as demais capelas mas não essa, é como se nunca tivesse existido: capela de Nossa-Senhora das Árvores; capela de Santa Ana; capela de Nossa-Senhora da Boa Confiança; capela de São Cláudio; capela de Santa Ágata; capela do Confessional; capela de Jesus Agonizante; capela dos Anjos da Guarda; capela de São Eutrópio; capela de Nossa-Senhora dos Sete Juízos; capela do Anjo da Guarda; capela de São Crispim, antanho de São Pedro do Sepulcro; capela de São Bento; capela do Crucifixo; capela subterrânea, cripta, do sepulcro de São Martial.

Igualmente no Obituário de São Martial de Limoges, do século XII ao século XVIII, não se detecta qualquer referência a essa capela nem a algum túmulo na mesma, tampouco a algum frade Sebastien falecido e sepultado nas datas estabelecidas entre 1578 e 1641-42, o que é deveras estranho[25].

Estranho e inquietante é igualmente o motivo de identificar uma floreira, aquando da deslocação do senhor Gandra a essa cidade francesa, como sendo originalmente o túmulo de D. Sebastião, ela que estava num recanto do museu de porcelana da fábrica e por inutilidade veio a ser posta defronte ao edifício servindo para decoração floral. Ora, é sabido existir o costume das sobras dessa e doutras fábricas de porcelana servirem para pavimentar as ruas e criar artes interessantes nos canteiros de flores, até mesmo criando canteiros de flores com as mesmas sobras assim dando-lhes utilidade, o que deixa Limoges com um estilo próprio muito formoso.

Por fim, a famosa e intrigante medalha de ouro de D. Sebastião com a legenda identitária deste ilustrada pela sua figura trajada de monge, a qual entretanto foi derretida, como descreve Texier.

Não sei se se trata de Dom ou de São Sebastião, como não sei explicar como uma pessoa que pretenda passar incógnita ostente medalha identitária. Isto em local permanentemente preenchido de gente de várias partes do continente aí chegada e partida em peregrinação, num espaço já de si real e, contudo, não haver notícia nenhuma de aí estar um rei português em reclusão monástica, num tempo em que as cortes europeias mantinham comunicações estreitas entre elas, muitas ligadas por laços de parentesco.

Não sei como definir tudo isso, mais parecendo inspirado no famoso providencialismo francês da Vendeia que tem no desaparecido delfim Luís XVII o seu D. Sebastião. Há algo com semelhança ao “diz que disse”, ao boato ou rumor de caso que se jura alguém ter visto e ainda existe, mas quando se chega ao sítio nada se encontra senão rumores. Assim parece acontecer nesse opúsculo de Texier, o qual como “arqueólogo e religioso” insiste em imprecisões e desconhecimentos muito óbvios até para um leigo nessas matérias, sobretudo no relativo a Limoges donde pressupostamente era natural, cidade que seria natural conhecer bem. Ademais, tendo vivido 46 anos, falecendo jovem, afinal com que idade o sobredito alcançou o cargo de “abade” (de qual abadia?), por norma assumido por pessoas mais idosas e idóneas na religião professada?

O opúsculo do autor, assinado com nome diferente do seu, aparentemente editado na capital francesa em 1904, no caso de não passar de elaborada blague providencialista, acaso terá se inspirado no quadro identificado de D. Sebastião descoberto em casa de particular na Itália, ou até mesmo na estátua de D. Sebastião infante da autoria do escultor Simões de Almeida que foi notícia na página 116 do primeiro número de 1878 da revista Occidente, ilustrada de Portugal e do Estrangeiro, publicada em Lisboa?

Essa estátua foi concebida em gesso por Simões de Almeida para integrar a exposição da Sociedade Promotora das Belas-Artes em Portugal, em 1874. A obra foi aclamada pelo público e fez tanto sucesso que foi encomendada em mármore de Carrara pelo rei D. Luís I, por dois contos de réis, passando a peça a integrar a coleccção real[26]. Foi ainda disputada por D. Fernando II que, na impossibilidade de a adquirir, convidou Simões de Almeida a leccionar aulas de escultura à condessa d´Edla[27]. A estátua foi depositada no Palácio Nacional da Ajuda em 1924, e hoje está em exposição pública no Museu Nacional de Arte Contemporânea no Chiado, Lisboa.

Ainda assim, é escultura pouco conhecida do público geral. Nela retrata-se D. Sebastião infante sonhador, futuro “rei de dormição”. De uma expressividade sensível claramente naturalista afim ao espírito romântico da época, vê-se o jovem monarca cabisbaixo e pensativo reflectindo sobre os destinos da nação, tendo nas mãos um livro de História de Portugal. O traje cortesão renascentista que usa, juntamente com um colar da Cruz de Cristo e uma adaga à cintura, acompanhado de uma capa encostada ao suporte, é pormenorizado nos pregueados que se ajustam ao corpo, nos calções e nos folhos da gola maneirista. A vivacidade do personagem, expressivamente decidido, parece ultrapassar o material marmóreo utilizado, indo dar vida a uma ideia e o conjunto a uma história.

Em suma, voltando ao pomo da questão intrigante, se D. Sebastião morreu em Marrocos ou em Limoges, após os factos apresentados, reservo ao leitor a conclusão, que da minha parte concluo campear o fascínio e inquietação no querer reescrever a História.

NOTAS

[1] David Lopes, A Expansão em Marrocos. Editorial Teorema, Lisboa, 1982. Publicação original em António Baião, Hernâni Cidade e Manuel Murias, História da Expansão Portuguesa no Mundo, 3 vols. Editorial Ática, Lisboa, 1937.

[2] Luís Costa e Sousa, A Batalha de Alcácer-Quibir 1578. Visão ou Delírio de um Rei?. Pedro de Avilez Editor, Tribuna, Lisboa, 2009.

[3] Maria Lima Augusta Cruz, D. Sebastião. Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa. Rio de Mouro, 2009.

[4] Miguel Leitão de Andrada, Miscellanea [1629]. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1993. Edição em fac-simile da 2.ª edição publicada pela Imprensa Nacional em 1867.

[5] Fr. Bernardo da Cruz, Chronica d´el-rei D. Sebastião, vol. I. Escriptorio, Lisboa, 1903. O Relatório ou Relação do cativo faz parte dessa obra pertencente à Colecção de vários Documentos para a vida d´el-rei D. Sebastião, constando no códice 443 da Livraria Manuscrita de Alcobaça.

[6] Manuel de Faria e Sousa, Epitome de las historias portuguesas. Francisco Martinez, impressor e mercador de livros, Madrid, 1628.

[7] Khalid Ben Omar, O relato de Alcácer-Quibir entre duas línguas e duas culturas. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Setembro de 2016.

[8] Sales Loureiro, Prefácio in Anónimo – Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D´El-Rei D. Sebastião. Heuris/Europress, Odivelas, 1987.

[9] João Francisco Marques, A Parenética Portuguesa e a Dominação Filipina. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, Fevereiro de 2010.

[10] José Agostinho de Macedo, Inventario da refutação analytica – O cadáver del Rei D. Sebastião foi enterrado em Ceuta com toda a solemnidade, e sinaes para se não equivocar com outros cadáveres. Lisboa, 1810.

[11] Henrique Salles da Fonseca, Coisas que poucos sabem. Elos Clube de Lisboa, 19 de Julho de 2011.

[12] Harold B. Johnson, Dois Estudos Polémicos. Ed. Wheatmark, Virgínia, 1.ª ed., 1 de Julho de 2004.

[13] J. M. de Queiroz Velloso, D. Sebastião 1554-1578. Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1935.

[14] Sofia Guimarães Barros de Sá, D. Sebastião. Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa, 2008/2009.

[15] J. Lúcio d´Azevedo, A Evolução do Sebastianismo. Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1918.

[16] João Carlos Gonçalves Serafim, Elevar um rei com vaticínios: textos e pretextos no caso do Rei D. Sebastião de Veneza (1598-1603). Revista Letras, Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, v. 24, n.º 49, Jul./Dez. 2014.

[17] Miguel d´Antas, Les Faux D. Sébastien – Étude sur l´histoire de Portugal. Auguste Durand, Libraire, Paris, 1866.

[18] Manuel J. Gandra, Sebastianismo. In Portugal Misterioso, Selecções do Reader´s Digest, Lisboa, 1998.

[19] Maria Luísa Martins da Cunha, Grandes Enigmas da História de Portugal, volume III. Ésquilo – Edições e Multimédia, Lisboa, Dezembro de 2011.

[20] Hubert Texier, Pesquisas históricas sobre Sebastião I, Rei de Portugal, ou de como o Desejado morreu no exílio, em Limoges. Paris, 1904.

[21] Carlos A. Moreira Azevedo, Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834). Edição da Colecção de Memórias de Fr. Domingos Vieira, OESA. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2011.

[22] Abbé Joseph Nadaud, Nobiliaire du Diocese et de la generanité de Limoges, quatro tomos. Editions Histoire & Patrimoine, Limoges, 1863-1882.

[23] Bernadette Barrière, Limousin médiéval, le temps des créations. Limoges, Outubro de 2006.

[24] Charles De Lasteyrie, L´Abbaye De Saint-Martial De Limoges. Alphonse Picard et fils, éditeurs, Paris, 1901.

[25] Abbé Joseph Nadaud, Pouillé historique du diocese de Limoges. Manuscrito de 1775 publicado por A. Lecler no Bulletin de la Société archéologique et historique du Limousin, t. 53, 1903. Société de l´historie de France, Chroniques de Saint-Martial de Limoges. Éd. H. Duplés-Agier, Paris, 1874. Abbaye Saint-Martial de Limoges (IXe siècle – 1790), reportório numérico por Martine Sainte-Marie, conservador do património. Limoges, 1976. Jean-Loup Lemaître, Le Limousin monastique: autor de quelques textes. Musée du pays d´Ussel – Diffusion de Boccard, 1992.

[26] Raquel Henriques Silva, Romantismo e Pré-Naturalismo. In História da Arte Portuguesa, volume III. Círculo de Leitores, Lisboa, 1995.

[27] José Augusto França, O Romantismo em Portugal: estudo de factos socioculturais. Livros Horizonte, Lisboa, 1974.

Do Sítio da Nazaré aos ‘Sanctus Venatores’ – Por Vitor Manuel Adrião Segunda-feira, Out 25 2021 

Sanctus venatores ou “caçadores santos”, monteiros na arte venatória transformada em requisito de demanda, de caçada da transcendência e encontro súbito com o Divino na sua forma primária ante-humana, como seja a animal que vai perigar o monteiro, prova derradeira de superação que a aparição súbita da Virgem ajuda a salvar de cair no precipício mortal da derrota.

Assim aconteceu com D. Fuas Roupinho no sítio da Nazaré, corria o século XII. Vindo em longa cavalgada na perseguição de um veado enorme, negro e estranho, que escapava veloz e escorreito, à frente dos servos que ficaram para trás na correria fatal, caçador e caça chegaram ao precipício sobranceiro ao mar deste sítio, indo o veado se precipitar no abismo e o cavalo empinando-se estacar mesmo à sua beira, com o brado do cavaleiro a clamar na aflição à Senhora da Nazaré. Ambos se salvaram miraculosamente, ficando as patas traseiras do cavalo gravadas no rochedo que ainda ali podem ser vistas, diz o povo. Entretanto o veado, que era o diabo tentador, desfez-se em fumo no ar. Em agradecimento à Virgem intercessora pela graça da sua salvação, D. Fuas Roupinho mandou construir no local uma pequenina capela cúbica – formato lembrando uma cuba arábica – que doravante ficou conhecida por Memória.

Na saliência lateral do sítio sobre o precipício alguém traçou uma cruz marcando-o como signa sancta do milagre, porventura durante o século XV quando se iniciou a sua difusão tomando forma de lenda, que depois frei Bernardo de Brito prosseguiria como o seu maior divulgador.

Mas quem era D. Fuas Roupinho? Nascido cerca de 1145 e falecido em 1184, foi o capitão de mar-e-guerra que deu a primeira vitória de batalha naval a Portugal, vencedor dos corsos almóadas estando ao serviço de D. Afonso Henriques e da Ordem do Templo. Apesar de não se saber o local exacto do seu nascimento, é provavelmente descendente dos condes da Galiza com o nome de Churrichano ou Churrichão, em luso-galaico, como aparece nos documentos da Catedral de Orense (de 1268 a 1271). Conforme Virgínia Almeida[1], o seu nome completo era Fernão Gonçalves Churrichão, o Farroupim, passado à História como D. Fuas Roupinho. De facto, é escassa e vaga a informação sobre o local exacto do seu nascimento, mas estou em crer que terá tido cargo importante em Óbidos – onde terá começado a sua perseguição ao veado da lenda – após se tornar alcaide-mor de Porto de Mós, nisto sabendo-se que em 1179 era alcaide-mor de Coimbra e se encontrava no castelo de Leiria donde partiu com as suas forças indo conquistar a Gamir, vizir de Mérida, a alcáçova de Porto de Mós, como consta na Crónica de 1419 [2] que o professor José Mattoso anotou[3]. Acerca da Crónica de 1419, possivelmente foi redigida pelo cronista Fernão Lopes, iniciador da Lenda da Nazaré pondo como personagem central o monteiro D. Fuas Roupinho, que seria prosseguida, em 1609, pelo cronista alcobacense frei Bernardo de Brito no volume II da Monarquia Lusitana.

Sabe-se igualmente que D. Fuas Roupinho foi aio do Infante D. Afonso, filho de D. Afonso Henriques, possivelmente tendo sido de afiliação à Ordem do Templo onde organizou a Marinha Templária introduzindo os “navios de bico” na frota, inovação militar que em 1180 levou à vitória portuguesa na batalha travada ao largo do Cabo Espichel, perseguindo o inimigo almóada até ao largo do Promontório de Sagres indo desbaratá-lo completamente. Com efeito, comandando nove galés templárias saídas de São Martinho do Porto, em 15 de Julho de 1180, defronte ao Cabo Espichel confrontou a frota de dez galés de corsos almóadas comandados por Gamim Ben Mardanis, vindos do saque na costa de Lisboa, desfechando com a retumbante vitória dos templários portugueses que afundaram uns e apresaram outros dos navios sarracenos que rumavam a Sevilha com o saque, trazendo os despojos e os prisioneiros para Lisboa onde D. Fuas e os bravos marinheiros templários foram triunfalmente recebidos por D. Afonso Henriques, vindo às pressas de Coimbra, e pelo bispo da cidade, além de inúmero povo gritando e cantando loas de vitória e glória.

D. Fuas Roupinho chegou a contar com uma frota de quarenta navios e inclusive fez surtida gloriosa a Ceuta, séculos antes do início do ciclo ultramarino português nessa mesma cidade mauritana com D. João I. Segundo o cronista árabe Ibne Kaldhun[4], o almirante português morreu em 17 de Outubro de 1184 durante a batalha naval contra a esquadra sarracena vinda de Sevilha, facto confirmado pelos cronistas e historiadores portugueses[5], onde vinte e dois navios lusos enfrentaram valorosamente cinquenta e quatro galés mouras que os derrotaram.

Quando D. Fuas Roupinho mandou construir a capela da Memória no sítio da Nazaré, o milagre ficou completo com a descoberta da pequena imagem de Santa Maria escondida entre as fragas, negra com o Menino ao colo, diz a lenda pela pena de frei Bernardo de Brito, em 1609, a qual fora talhada pelo próprio São José e pintada por São Lucas, indicativos de um ser mestre carpinteiro e outro evangelista mariano.

A pequena imagem de madeira, com cerca de 20 cm de altura, retrata uma Virgem do Leite, caríssima ao devocional templário, pois está amamentando o Menino Jesus sentado no seu colo. Virgem Negra com o rosto e as mãos pintados dessa cor, não tem costas nem lados da cintura para baixo, indiciando ter sido esculpida com a intenção de encaixá-la numa estrutura em forma de trono (trono de glória). Frei Bernardo de Brito relata ter encontrado no cartório do mosteiro de Alcobaça uma doação territorial datada de 1182, onde se descrevia a história desta imagem da Senhora, acrescentando que se tratava da transcrição de um pergaminho escrito cerca do ano 714. Conforme esse documento e de acordo com a tradição oral, a imagem terá sido venerada nos primeiros tempos do Cristianismo em Nazaré da Galileia, onde esta localidade portuguesa terá ido buscar o nome. Da Galileia foi trazida, no século VI, para um convento perto de Mérida, e daí, face ao avanço das invasões árabes da Península Ibérica, no ano 711 para este sítio da Nazaré, até ao momento da sua descoberta miraculosa – Virgem resgatada, segundo Paulo Pereira[6] – em 14 de Setembro de 1182, com círio a esta Nossa Senhora da Vitória celebrada anualmente na quinta-feira da Ascensão.

É muito possível que a imagem tenha sido escondida aí pelos monges da igreja de São Gião, exemplar visigótico dos raros sobreviventes no país, na quinta do mesmo nome situada cinco quilómetros a sul da Nazaré[7]. No interior da ermida da Memória estão duas lápides de mármore escritas em latim por frei Bernardo de Brito, que o doutor Rui Lourenço, provedor da comarca de Leiria, poucos anos depois traduziria para que todos soubessem do ocultamento e achamento da milagrosa imagem enegrecida da Senhora do Leite da Nazaré:

“A sagrada e venerada imagem da Virgem Maria que sendo trazida da Cidade de Nazareth, resplandeceo em tempo dos godos com milagres no Mosteiro de Cauliniana, junto à cidade de Merida, foy trazida a esta ultima parte do mundo pelo monge Romano, sendo-lhe companhia El Rey D. Rodrigo, no anno de Christo de 714, em que aconteceo a perda geral de Hespanha, e como [o] monge morresse e El Rey se partisse, ficou aqui escondida em huma pequena choça, posta entre estes dous escabrosos penedos, por espaço de 469 annos. E sendo depois achada por D. Fuas Roupinho, capitão de Porto de Mós, no anno de 1182 como ele testifica na sua doação, sucedeo que arremeçando inconsideradamente o cavalo no alcance de hum veado, que lhe fugiu e por ventura era fingido, e indo já para cair na ultima ponta deste despenhadeiro, invocando o nome da Virgem, foy livre da queda, e mais da morte, e Lhe dedicou esta primeira ermida. Finalmente foy tresladada por El Rey D. Fernando de Portugal a essoutro Templo mayor que elle mandou levantar desde os primeiros fundamentos no anno de 1377. E o douctor Fr. Bernardo de Britto dedicou esta obra à Virgem e à eterna lembrança, por voto que tinha feito.”

Dando por finalizada a tradução latina, encontra-se também o seguinte suplemento:

“Como consta da Monarchia Lusitana do mesmo Fr. Bernardo de Britto 2 p. fl. 391. E se acha conforme as tradições antíguas desta sacrossanta Imagem da Virgem de Nazareth obrada pelas mão de S. Joseph, na própria presença da May de Deos, e encarnada por S. Lucas, e que de Nazareth a trouxe Ciriaco Monge a S. Jeronimo a Belem adonde o dito santo a enviara a Santo Agostinho a Africa, sendo Bispo de Hipponia, e d’ahi este Santo Bispo a enviou ao Mosteiro Cauliniano, do qual a trouxe Romano na companhia del Rel Rey D. Rodrigo, ultimo dos Godos, ate aquelle monte de S. Bartholomeu té então monte Seão, onde acharão aquelle Crucifixo que está na Sacristia, e d’ahi a dias para este lugar, em que ficou debaixo da terra os ditos 469 annos em que apareceu ao tal cavaleiro D. Fuas no dito anno de 1182. O devoto que o letreiro traduzio pede hua Ave Maria a esta Senhora de Nazareth, anno de 1623.”[8]

A presença do elemento marítimo nesta lenda nazarena é constante: se D. Fuas Roupinho era marinheiro, a Virgem salvadora paira sobre o mar. É assim a Senhora do Mar, título com que desde o primeiro instante os marinheiros e pescadores se encomendam a Ela e Nela buscam refúgio nas horas de aflição nas águas revoltas. O próprio nome Nazaré, oriundo do turânio ou asiânico Natharata, que os semitas vozeiravam Nazarata, significa “Água da Mãe-Terra”. A aclamação Senhora do Mar é prerrogativa carmelita herdada do episódio bíblico ocorrido com o profeta Elias que invocou as “águas celestes” para caírem sobre Jerusalém num tempo de grande seca, sendo atendido pela Misericórdia Divina a quem apodou de Stella Maris, “Estrela-do-Mar”, apontada como sendo Vénus, planeta “feminino” por excelência, tal como o reconhece a Tradição. Santa Maria (Mariae, Maris, Mareum) acaba equivalendo ao Oceano da Vida sobre o qual sopra o Espírito Santo ou de Santidade trescalada da própria pessoa da Mãe Divina, assumida como designando as Águas Primordiais, o Mar da Criação.

Por essa razão, os antigos escritores judeus afirmam claramente que o Mar é uma criação de Deus (Génesis, 1:10), que Ele pode submetê-lo (Jeremias, 31:35), que Ele pode secá-lo para que a humanidade dos fiéis possa atravessá-lo com segurança (Êxodo, 14:15 s.) e suscitar ou acalmar as suas tempestades (Jonas, 1:4; Mateus, 8:23-27). O Mar foi assim feito símbolo da Criação, acreditando-se que o Criador o dominava enquanto o Homem era por ele dominado, mas que apelando a Ele o podia dominar. Era a derradeira prova: ou se precipitava nas funduras mortais das águas revoltas, ou estacava diante do precipício com a força da fé e da lucidez renascendo para uma nova vida, para uma nova condição de ser. Talvez por isso é que está no interior da ermida da Memória o silhar de azulejo com a fénix hermética portando a legenda latina Et vivam, “e viveu”, renasceu, venceu na derradeira iniciação marcada pelo hermetismo da arte venatória, no que bem se ajusta ao título dado aqui à Virgem Mãe, Nossa Senhora da Vitória.

Entre os místicos cristãos, o Mar simboliza o mundo e o coração humano, enquanto lugar de paixões revoltas contra a serenidade do sentimento de Amor. “Eu escapei do naufrágio da vida”, escreveu São Gregório Magno no ano 575 a propósito do seu ingresso na vida monástica (Morais sob Job, Carta dedicatória). Segundo Aelred de Riévaulx (século XII), o mar situa-se entre Deus e o Homem e designa o tempo presente. Uns se afogam, outros o transpõem, tanto valendo por vencer ou perecer na derradeira iniciação. Para atravessar o mar é necessário um navio (presente na iconografia do Milagre da Nazaré), e nisto o casamento corporal é como um navio frágil, enquanto a vida espiritual se compara a um navio robusto. Para que haja só navio robusto em ambos os casos, tem-se como Barca de Salvação a própria Virgem Maria que também foi esposa e religiosa, Mãe do Salvador sendo Mãe da Humanidade como Esposa do Verbo.

A Senhora de Nazaré por sua cor negra original revela estar-se na presença da Deusa Mãe Primordial, herança iconológica dos cultos primitivos celtas relacionados ao Útero gerador da Mãe Terra, dando-a como expressiva da fertilidade e fecundidade. Quando é fértil está manifestada, tem a cor branca (Assunção). Quando é fecunda encerra a semente ocultada, tem a cor negra (Conceição). Portanto, a condição de fecundidade antecede a de fertilidade, pois nada é fértil sem ser primeiro fecundado.

Com o atributo de fecundidade, para os alquimistas vem a ser a Matéria-Prima, a Negra primordial (Nigredo) ou ante-Manifestação, em conformidade à prerrogativa bíblica ao início do Génesis de que “antes da Luz (branca, dia) havia a Treva (negra, noite)”. Isto mesmo é corroborado pelo enigmático Jean-Julien Champagne (1839-1953) que se velou no pseudónimo Fulcanelli, alquimista francês autor de duas magníficas obras de Alquimia: O Mistério das Catedrais (1926) e As Mansões Filosofais (1930).

Famosa pelo seu grande poder de realizar milagres sempre relacionados à vida e a morte, tornando os lugares da sua aparição polos aglutinadores de grande poder devocional pela intensidade das peregrinações a eles, no contexto da sociedade rural medieval a Virgem Negra era sobretudo uma deusa agrária por cuja imagem devocionada se manifestavam os atributos benfeitores da Grande Deusa Mãe Primordial, culto original tendo encómios maiores que ao Deus Filho, por ser Ela a origem da fé fecunda revelada na natureza íntima do crente vendo a sua expressão na Natureza fértil, de cujas colheitas abundantes dependiam os povos. Quando a lenda diz que a sua imagem esteve muito tempo escondida na terra entre fragas à beira do precipício, é o mesmo que consigná-la Deusa Oculta, Negra, facto assinalada na Lua expressiva do Útero, da Matriz da Criação, cujas fases regulam os períodos agrários de semeadura e colheita, e igualmente o da gestação dos seres.

Por esse motivo a cor negra da Virgem é a mesma primordial indicativa do Grande Útero da Vida que se gera nele e a ele, no final da existência periódica, a mesma Vida se recolhe. Com isso, a Grande Mãe, com o seu potencial de gestação e geração, possibilita todas as manifestações, transformações e evoluções da Vida, a qual recolhe a si no fim de cada manifestação, seja ela a de um homem ou a de um mundo. Razão porque personifica a Magna Dea, a Grande Deusa, Maha-Shakti para o Oriente, a Força Vital que gera, mantém, anima e unifica, sendo Ela o Grande Oceano conduzindo aos seres imersos nas suas correntes pelos movimentos das suas Águas da Vida, donde ser apelidada de Conceição ou Concepção, sobreposta à Lua crescente que, como astro da noite ou do negro, representativo do Caos ou Noite Cósmica, o mesmo Pralaya assinalado nas escrituras do Oriente, assiste aos ciclos de vida e morte de todos os seres. O período de existência destes vem a ser o Cosmos ou Dia CósmicoManvantara para os orientais, marcado pela cor branca e a Lua Cheia, para todo o efeito, antecedido pelo negro primordial sinalético da ausência de cor, para aquele que é a síntese da cor.

Por essa razão, a Virgem Negra simboliza a Terra Virgem, ainda não fecundada ou povoada, pelo que vem a valorizar o elemento passivo do estado virginal. O escurecimento das imagens das Virgens, enaltecido na Europa ocidental na Baixa Idade Média, também se deveu à cor sombria dos ícones orientais da religião bizantina, nessa época exercendo grande influência na arte religiosa latina[9].

Por outro lado, no período medieval coincidente com a aparição de qualquer Virgem Negra, houve sempre uma reactivação social, artística e cultural no seio da sociedade pela aproximação do Ocidente ao Oriente, assim mesmo uma irrupção do elemento feminino, não só com o culto mariano mas igualmente na forma idealizada do amor cortês, a despeito das grandes discussões dos teóricos escolásticos sobre a natureza, a carne e o pecado, a alma e a virtude, semeando uma improdutiva disfunção entre o Espírito e a Matéria que chegou aos nossos dias.

Finalmente, para o Islão a virgindade de Deus como Mulher é a Luz Inviolada (Mater Inviolata na ladainha) que ilumina os Eleitos; a esse título, é chamada de Virgem-Mãe a hora da vida que é a primeira. Mas é também a última. É Ela quem abre o caminho da Iluminação e leva a termo o místico caminhar. A Virgem de Luz revela ao Eleito a forma espiritual que nele é o novo Homem, tornando-se seu Guia conduzindo-o às alturas da Morada Celeste. Assim, et vivam.

Como D. Fuas Roupinho, também o rei D. Dinis foi monteiro e se bateu em luta de morte com um javali para as bandas de A-da-Beja. Valeu-lhe Santa Maria. O episódio está esculpido no seu túmulo no antigo convento das bernardas de Odivelas. Igualmente o seu filho D. Pedro Afonso foi adepto da arte venatória, como se observa na ilustração de caçada no frontal do seu túmulo no mosteiro de São João de Tarouca, Lamego. Outros reis, príncipes e nobres portugueses seguiram a mesma arte que, no fundo, é expressão da dinâmica da iniciação guerreira, kshatriya, em tempos de paz.

Se D. Fuas Roupinho vinha em perseguição do demónio disfarçado de veado desde as bandas de Óbidos, e se tudo isso é alegórico de saberes ocultados, haverá nessa vila algum sinal indicador da proximidade ao hermetismo da Ordem do Templo na qual ele era afiliado? Sim, há. Está numa inscultura lapidar templária do século XIII, à entrada da igreja de São Pedro, de imediato remetendo para a geometria sagrada como ramo da Tradição Iniciática, de cujo conjunto simbólico pode extrair-se sugestivas conclusões.

A igreja de São Pedro de Óbidos (construída no gótico dos fins do século XIII e reconstruída no século XVIII) em Trezentos foi sede da Colegiada de São Pedro, com jurisdição sobre Santa Maria da Mouta (Moita) e visitação do Arcebispado da Lourinhã, que desde D. Sancho I estava aforada pela Coroa à Ordem do Templo.

A enigmática inscultura encontra na arquitectura tradicional uma proximidade que liga pela sua disposição de forte sentido simbólico a megalítica à medieval do Templo, como se regista principalmente na feitura dos kraks ou castelos deste, os quais originalmente englobavam a cidadela, tal qual os fortificados celtas incluíam a citânia, simbolismo denotado nas cidades lídias caracterizando-se por uma tríplice cintura de muralhas que, aquém do sentido iniciático, as protegiam das investidas inimigas, como se verificou naquelas gregas de Lerna, Tirinto, Micenas, etc., e nas portuguesas de Leiria, Tomar, Sintra, Lisboa, etc. Essa cintura muralhada tríplice entre os citas, que deram nos celtas, possuía um grande sentido simbólico, apresentando-se a disposição geral formada por três quadrados concêntricos ligados entre si por quatro linhas em ângulo recto, expressando as artérias principais.

Para Paul Le Cour e René Guénon, trata-se do simbolismo da “tríplice muralha” dos castros fortificados celtas cujo significado metafísico, além do utilitário imediato, os sacerdotes dessa raça, os druidas, vieram a propagar de tal maneira que acabou vulgarizando-se em várias formas de jogo, como o “jogo do moinho” e até, com menos traços mas não deixando de ser, na marcação dos campos de futebol. Com efeito, para os druidas a “tríplice muralha” representaria os três graus da sua hierarquia sacerdotal: druida, vate e bardo, ou seja, sacerdote, profeta e instrutor. O candidato ia subindo na hierarquia até chegar ao grau supremo, equivalente ao “Grande Centro” ou Pantheon dos Heróis dessa primitiva religião europeia, como já tive ocasião de dizer quando analisei figura idêntica a essa lapidada na parede lateral à entrada na Escola de San Rocco, em Veneza[10].

É assim que René Guénon classifica o significado esotérico das três muralhas expressivas dos três graus básicos do sistema de iniciação[11], de tal maneira que o seu conjunto pode muito bem ser, de certo modo, a representação da hierarquia druídica como expressão tradicional do ensinamento iniciático. Com essa mesma explicação, o sentido das quatro linhas dispostas em cruz, que ligam as três muralhas, torna-se de imediato muito claro: serão os canais por meio dos quais o ensinamento da doutrina tradicional se comunica de cima a baixo, a partir do grau supremo, que é o depositário legal desse mesmo ensinamento, repartindo-se hierarquicamente pelos demais graus. A parte central da figura corresponderá, portanto, à “Fonte da Tradição” de que falam Dante e os Fedeli d´Amore, e a disposição crucial dos quatro canais que dela partem identifica-se aos quatro rios do Pardes ou Paraíso. Nesse caso, o centro da figura, como “Fonte da Tradição”, corresponde à Autoridade Espiritual afim à Arte Sacerdotal, e os canais subalternos expressam o Poder Temporal correlacionado à Arte Real, onde a interacção entre os dois poderes é permanente, mas com o primeiro revelando-se pelo segundo, tal qual o Paraíso Celeste se expressa no Paraíso Terrestre, assim como o Centro Supremo do Mundo (Salém, Shamballah, Walhallah, etc.) se revela nos Centros Sagrados estrategicamente esparsos pelo mesmo Mundo.

Na Idade Média, um pouco por toda a Europa também foram construídos castelos com tríplice muralha, em lugares previamente assinalados pela Tradição Primordial como propícios a uma maior aproximação do Mundo Espiritual aproveitando a energia concentrada das correntes telúricas aí entrecruzando-se geradoras de nódulos, como igualmente as conjunções propícias dos astros influindo localmente, disposição geo-celeste característica dos assim consignados “lugares mágicos”, tudo conformado às primitivas regras geomânticas das “leys”.

A “tríplice muralha” medieval acabou assimilando o significado que tinha entre os celtas vindo a assinalar a hierarquia da Cavalaria: cavaleiro, escudeiro e pajem, cuja evolução do candidato à nobreza das armas começava do mais exterior para o “Grande Centro”, este representado pelo rei do país ou pelo governador do lugar.

Ainda na Idade Média, para a espiritualidade judaico-cristã essa figura geométrica resumia o sentido do bétilo, isto é, da “pedra sagrada, considerada como morada de um deus”. Assim aparece a figurar o próprio Templo de Salomão, em Jerusalém, como o descreve a Bíblia (I Reis, 7:12), com a sua tríplice cintura separando o povo dos levitas e estes do sumo-sacerdote, o único com acesso ao centro onde estava o “Santo dos Santos” (Sanctum Sanctorum), lugar reservado à Arca da Aliança. Como o Templo de Salomão representava o próprio Paraíso Terrestre, então o simbolismo geométrico da “tríplice muralha” será, em última análise, figurativo desse mesmo Éden original.

A haver Paraíso Terreal haverá Paraíso Celestial como seu modelo, indicado no Apocalipse como a Jerusalém Celeste com as suas doze portas, três em cada um dos lados. Para a figura geométrica a representar, coloca-se diagonalmente as quatro linhas em cruz em relação aos dois quadros extremos, a fim do espaço compreendido entre eles ficar dividido em doze triângulos rectângulos iguais, simbolizando as doze portas do Paraíso Celeste (Apocalipse, 21:12), no centro do qual está a Árvore da Vida (Apocalipse, 22:2) aqui assinalada pela flor-de-lis dúplice (“o que está em cima é como o que está em baixo”) ao lado da Cruz da Cristandade desde o século VIII, de palos páteos que a Ordem do Templo adoptaria no século XII.

Do ponto de vista do simbolismo numérico, o conjunto dos três quadrados forma o duodenário, e dispostos da forma assinalada por último em relação à Jerusalém Celeste, vêm a constituir a figura pela qual os antigos inscreviam o Zodíaco (como se vê numa inscultura junto às “escadinhas dos clérigos (trinos)”, em Sintra), o que vai muito bem por a mesma Jerusalém Celeste expressar o Universo inteiro, tal qual o Zodíaco.

Essa figura geométrica era igualmente considerada como expressiva da Jerusalém Celeste com as suas doze portas, três em cada um dos lados, pelo que possui uma relação evidente com o significado indicado para a figura quadrangular da tríplice muralha, a qual significa o Paraíso Terrestre. É exactamente essa formação geométrica de sentido astronómico que se repara na inscultura templária à entrada da igreja de São Pedro de Óbidos, onde terá começado a saga venatória de D. Fuas Roupinho[12].

Para denominarem as supracitadas muralhas, os latinos dispunham de um termo de origem iraniana: pari, o qual aparece no composto pari-daiza, ou seja, “cintura” (pari) e “modelo” (daiza). Paridaiza ou Paradhesa é a arquetípica das palavras hindu-europeias indicativas de Paraíso.

É de crer que dentro dos seus kraks os templários terão criado núcleos sinárquicos no esforço imediato de reproduzirem o Paraíso de Deus, falado pelo inspirado St.º Agostinho na sua magistral Civitas Dei, decerto por isso se regiam no seu meio por regras muito suas, independentemente do estatuto castrense, não dando satisfações detalhadas a ninguém do que faziam e pretendiam, incluindo ao papa e ao rei, apesar de a esses aparentemente renderem obediência pontifícia e vassalagem militar.

De maneira que a simbiose entre a Jerusalém Celestial e o Paraíso Terreal, representado no plano imediato da Tradição pela cidade de Jerusalém, tem a sua expressão efectiva no relacionamento entre a Autoridade Espiritual e o Poder Temporal, entre o Sacerdócio e a Realeza, esta encontrando a legitimação por aquela. Isto mesmo pode ser lido no Midrash Tankhuma, obra teológica judaica que trata da relação entre os dois Poderes Espiritual e Temporal, simbolizados pela Jerusalém “axis coeli” e pela Jerusalém “axis terris”, na qual São Bernardo acaso terá se inspirado para o seu Louvor à Nova Milícia (1130) e para a redacção da sua Regra. Diz esse texto judaico:

“Vós vereis que existe uma Jerusalém do alto que corresponde à Jerusalém de baixo. Por amor da Jerusalém terrestre, Deus fez uma no alto. Eu não entrarei na Jerusalém celeste antes de ter entrado na Jerusalém terrestre.”[13]

Por essa razão primaz da divindade e universalidade da simbólica jerusalemita, é que os templários cunharam moeda com a efígie do Templo de Salomão de que se assumiam, afinal, guardiães, certamente não tanto das suas ruínas mas mais da Tradição Primordial representada pelo mesmo, o que se reflectia no binómio sinárquico Autoridade-Poder, certamente conhecendo-o e exercendo-o, como se observa no testemunho deixado nas figuras decorativas de vários edifícios que construíram, por exemplo, na igreja de São Pedro de Rates, no Minho, onde junto à pia baptismal lavraram na pedra duas figuras: um bispo com o báculo na mão esquerda faz o sinal hierático com a destra a um rei coroado, com uma mão no peito e a outra empunhando a espada. Cena de sagração e investidura: bispo e báculo dominando = Autoridade Espiritual; rei e espada dominado = Poder Temporal. Algo idêntico a Purusha originando Prakriti, ou seja, o Espírito dar de si a Matéria, o que reverte novamente ao conceito da Jerusalém Celeste e da Jerusalém Terrestre, paradigmas máximos da Autoritas e da Potens.

Além de Portugal também na Escócia, na Bretanha, na Alemanha, na Itália, etc., houveram reis que igualmente foram “santos caçadores” (sanctus venatores), e no nosso país além de D. Fuas Roupinho também aparecem “caçadores” São Frutuoso de Braga, e até mesmo mais recentemente (1910) António Augusto de Carvalho Monteiro, que no seu Palácio da Regaleira de Sintra não se esqueceu de destacar a cabeça de um veado, e na capela particular da família retratar a lenda do Milagre da Nazaré. Tem-se ainda Saint-Thélo da Bretanha, David I da Escócia, São Conrado da Alemanha, Santo Eustáquio de Roma, Santa Genoveva, São Mamede e Santo Huberto das Ardenas, este o mais famoso dos santos “reis caçadores” (rex venatores).

A todos eles apareceu, durante as suas caçadas, um cervo ou veado imponente tendo entre as hastes uma cruz luminosa, assinalando o animal como mensageiro do Alto assim dando à caçada sentido transcendente, alegórico de demanda iniciática. Como a história de São Huberto é muito conhecida, ficarei pelas de David I da Escócia e de Saint-Thélo da Bretanha.

Segundo as lendas de fundação da abadia escocesa de Holyrood, uma delas conta que David I (em gaélico escocês Dabíd Mac Maíl Choluim, 1084 – 24 de Maio de 1153), rei da Escócia desde 1124 até à sua morte, no ano 1127 andava caçando nos bosques próximos de Edimburgo quando de repente foi atacado por um cervo furioso, ficando debaixo das suas hastes procurando trespassá-lo. Mas dois irmãos, Johannes e Gregan, do baronato de Crawford, em Strathclyde Alba, acudiram e salvaram o rei. Este, em agradecimento, fê-los cavaleiros e fundou a abadia de Holyrood no ano seguinte. Desse dia em diante, esse ramo da família Crawford adoptou como seu brasão a cabeça de um cervo com uma cruz de ouro entre as hastes, acompanhada do lema latino Tutum Te Robore Redam (“A nossa força te dará força”). A segunda lenda, que cola com a anterior, conta que esta abadia foi uma oferta de David I, em 1128, aos cónegos regulares de Santo Agostinho, talvez vindos de St.º Andrews, em agradecimento de ter escapado milagrosamente da galhada de um cervo quando caçava perto de Edimburgo no dia da Santa Cruz.

Com a Santa Cruz se liga o nome Holyrood, sendo rood antiga palavra gaélica para designar a cruz onde Jesus Cristo foi crucificado, enquanto holy assinala a sacralidade desse acontecimento bíblico. Portanto, etimologicamente Holyrood equivale a Cruz Sagrada ou Santa Cruz. Ainda hoje preserva-se na igreja de Holyrood, num relicário de ouro, o fragmento da Vera Cruz, trazido da abadia de Waltham, conhecido como Black Rood of Scotland. Tamanha foi a devoção a esta Cruz Negra da Escócia que nesta abadia a sua igreja só poderia ser cruciforme, tal qual é representada no selo de 1141 do seu primeiro abade Alwyn, confessor real, que está guardado nas Newbottle Charters.

David I morreu com fama de santidade e está deposto no panteão dos “santos caçadores”, isto por o cervo ou veado com a cruz resplandecente entre as hastes ser associado no antigo simbolismo judaico-cristão à Árvore da Vida, por causa da sua alta galhada, que se renova periodicamente. Simboliza a fecundidade, os ritmos do crescimento, os renascimentos. Com isto, o cervo é o anunciador da Luz tal como Cristo o foi, e assim guia os homens para a claridade do dia, cuja cruz entre as suas galhadas fá-lo a imagem do Cristo, o símbolo do dom místico, da revelação salvífica. De maneira que a arte venatória torna-se simbólica de Iniciação Real, Senhorial, Cavaleiresca, Guerreira ou Kshatriya, em sânscrito, pautada pela acção dinâmica da busca do Divino até o encontrar em alguma caçaria encantada que transformará o caçador num iluminado na Sabedoria de Deus, como o terá sido David I usufruindo dos conhecimentos superiores junto dos sábios agostinhos de Holyrood.

Santos caçadores ou perseguidores de Maria, Sophia ou a Gnose como Sabedoria Divina, Dona Sapienza, também terão sido os cavaleiros-monges da Ordem do Templo, cuja instalação na Escócia remonta ao encontro em 1128 entre David I e Hugues de Payens, fundador da Ordem, tendo o rei concedido a terra de Balantrodoch a ela, o que constituiu a sua primeira possessão escocesa. Em 1189, Alan Fitz Walter (1140-1204), o segundo senhor de High Steward da Escócia, tornou-se benfeitor da Ordem do Templo e participou activamente na sua expansão no território escocês, e tamanha foi a influência do Templo na sua pessoa que o seu selo pessoal possui todos os mesmos símbolos dos desta Ordem, sem faltar a sua cruz pátea.

Segue-se Saint-Thélo e o cervo de Daoulas em Finistére, na Bretanha Norte. Num recanto da igreja da abadia de Santa Maria de Daoulas, em Finistére, vê-se uma curiosa imagem dum bispo com báculo e mitra montando um veado, tudo em madeira policromada do século XIII, o que tem suscitado as mais variadas interrogações sobre quem seja e o que significa.

Trata-se de Saint-Thélo, um dos santos bretões mais ou menos míticos cuja santidade não é reconhecida oficialmente pela Igreja Católica. Thélo ou Théliau foi bispo de Landaff, no País de Gales, sendo filho de Ensic e de sua mulher, Guenhaff. Nasceu cerca do ano 485 na parte meridional de Inglaterra, perto da cidade de Monmouth, e acostou a Dol (Ille-et-Vilaine), na Bretanha, onde foi acolhido cerca de 549 pelo bispo Samson. A sua morte é comummente fixada nos anos 560 ou 565. De notar ainda que fora sagrado bispo de Landaff para substituir o seu mestre entretanto falecido, Saint Dubrice, no ano 520, e quando depois se retirou substituiu-o o seu sobrinho, Saint Oudocée.

O nome deste santo anda associado ao da cidade de Saint-Thélo, comuna francesa da região administrativa da Bretanha Norte, no departamento Côtes-d´Armor ou Costas da Armónia, nascida do desmembramento da paróquia primitiva de Cadelac, por causa da redução ou detrimento da floresta de Loudéac, onde os celtas tinham importante santuário dedicado ao deus Cernunnos, representado com cabeça de veado.

Sendo o cervo considerado animal de abundância e agilidade pelos celtas, sinal de exteriorização das próprias e divinizadas forças telúricas animando a Terra, só as poderia “montar” um Hommo-Teluricus, isto é, o próprio Thélo ou Thelos, familiar hagiográfico de São Telmo, nova versão cristianizada do primitivo deus da abundância Cernunnos, agora celebrado anualmente em 9 de Fevereiro, disposto assim no calendário litúrgico muito apropriadamente para não se confundir com o Imbolc ou Oilmec, que a cultura celta celebrava a 2 de Fevereiro como uma das suas principais festas agrícolas, celebrando a recuperação da terra do Inverno e o Sol fortalecendo-se para a Primavera. Era a época de início do processo de aragem da terra e do plantio, processo cujo êxito punham sob a protecção da deusa Brígida (Brigith ou Briga, que veio a ser a Brigite cristianizada), que era quem abençoava as semeaduras para frutificarem e darem boas colheitas.

Igualmente não deixa de ser significativo o facto dos antigos cavaleiros da Ordem do Templo terem uma especial veneração por Saint-Thélo, inclusive aparecendo o nome deste (Saint Theliaut) numa acta de 1182 enumerando os bens dos templários na Bretanha, particularmente em Saint-Thélo cujo primitivo mosteiro de Daoulas, fundado no século VI, foi substituído pela abadia de Santa Maria cerca de 1167-1173, dos cónegos regulares de Santo Agostinho. Esta casa religiosa esteve sob a protecção directa do Templo, podendo até aventar-se a hipótese da imagem de Saint-Thélo montando o cervo ser produção templária.

Ao par da arte da volataria ou falcoaria, anda a do monteiro ou montaria, ambas a ver com o ideal cavaleiresco desenvolvido em dois grandes momentos. Por um lado, na corte, envolto num conjunto de símbolos e normas, que permitiam ao nobre um divertimento fora do tempo de guerra. Por outro lado, na floresta, com toda a sua dimensão e perigo. Tal como refere Georges Duby[14], a floresta era “de facto na orla das planícies, o vasto campo das emboscadas, da montaria e dos torneios: domínio do selvagem, do indomável, dos perigos estranhos (…)”. De maneira que esse sítio impregnado de mistério e de desafio representava a imagem do palco guerreiro e do inimigo, que poderia atacar, a todo o momento. Franco Cardini reporta-se às Ordens fundadas ao século XII, apresentando o ideal do cavaleiro templário em oposição ao cavaleiro leigo[15]. Enquanto este ostentava atributos de riqueza no seu percurso, mostrando a vanidade e exuberância, aquele, só e endurecido na lide e na gesta, “caça apenas animais ferozes (…). Este exercício (…), para além de ser símbolo da pugna spiritualis, dado que, na ciência alegórica da época, as feras são frequentemente símbolo e figura do demónio – lhe é também útil para a guerra”.

A mutação do cervo de mensageiro do Cristo em demónio tentador é indispensável à iniciação do monteiro, de maneira que ao perseguir a Palavra o animal signífero, em correria demoníaca e fatal, punha à prova a sua firmeza d´alma, até finalmente o caçar, equivalente da purificação espiritual, tendo por evoco a assistência da Mãe Divina e meta última o alcançar a Cristificação, isto é, o tornar-se um Iluminado portador da signa de Cristo, enfim, sanctus venator.

Assim aconteceu com D. Fuas Roupinho no Milagre da Nazaré.

NOTAS

[1] Virgínia de Castro e Almeida (1874-1945), Dom Fuas Roupinho. Secretariado de Propaganda Nacional, Lisboa, 1943.

[2] Os feitos de D. Fuas Roupinho na Crónica de 1419. Revista Portuguesa de História, tomo XLIII, Universidade de Coimbra, 2012. Tiago João Queimada e Silva, Os feitos de D. Fuas Roupinho na Crónica de 1419. Revista Portuguesa de História, tomo XLIII, Universidade de Coimbra, 2012.

[3] José João da Conceição Gonçalves Mattoso, A Nobreza Medieval Portuguesa: a Família e o Poder. Editorial Estampa, Lisboa, 1994.

[4] Citado por Tiago João Queimada e Silva, ob. cit.

[5] António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe: História. Editorial Caminho, Lisboa, 1989.

[6] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal – Cabos do Mundo e Finisterras. Círculo de Leitores, Lisboa, Janeiro de 2005.

[7] Adriano Figueiredo, Igreja de São Gião. In Portugal: Património, volume VI. Coordenação de Álvaro Duarte de Almeida e Duarte Belo. Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2007.

[8] D. Manuel de Brito Alão (1554-1638), administrador das rendas do Santuário da Nazaré, Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré. Edições Colibri, Lisboa, 2001. Reedição da versão original na oficina de João Galram, Lisboa, 1684, obra antecedida na edição por outra do mesmo autor, Prodigiosas historias, e miraculosos sucessos acontecidos na Casa de Nossa Senhora de Nazareth. Parte segunda. Na Oficina de Lourenço Crasbeeck, Impressor del Rey, Lisboa, 1637.

[9] Vitor Manuel Adrião, Bretagne Nord Insolite et Secrète. Editions Jonglez, Versailles, 2011.

[10] Vitor Manuel Adrião, Venise Insolite et Secrète. Editions Jonglez, Versailles, 2010.

[11] René Guénon, Os Símbolos da Ciência Sagrada. Editora Pensamento, São Paulo, 1984.

[12] Vitor Manuel Adrião, Portugal Templário (Vida e Obra da Ordem do Templo). Euedito, Lisboa, 2020.

[13] Bernard H. Mehlman, Seth M. Limmer, Medieval Midrash: The House for Inspired Innovation. Ed. Brill, Hardcover, November 2016.

[14] Georges Duby, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Editorial Estampa, Lisboa, 2002.

[15] Franco Cardini, O Homem Medieval. Editorial Presença, Queluz, 1990.

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